Fábrica de Leis

A ciranda do veto: tradicional, meio-veto, desveto, reveto e não veto

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14 de fevereiro de 2023, 8h00

Na coluna de hoje, analisaremos o que tenho chamado de "a ciranda do veto", isto é, o conjunto dos vários "movimentos" que os chefes do Executivo têm feito — ou tentado fazer — para exercer de forma criativa (às vezes até demais) a prerrogativa de vetar projetos de lei.

Spacca
Nessa "ciranda", além do veto "tradicional", têm sido tentadas, às vezes já de há muito tempo, formas alternativas e por vezes esdrúxulas de exercício desse poder de negar a sanção a projetos: nessa categoria incluem-se o criativo veto parcial ("meio-veto") e seus filhotes "desveto" e "reveto", assim como a peculiar figura do "não veto". De tédio não se morre no Brasil.

Veto
Menelick de Carvalho Netto, em obra renomada sobre o tema, ensina que remonta já a Montesquieu a defesa de que o Chefe do Executivo tenha uma "faculdade de impedir" determinados tipos de normas produzidas pelo Parlamento [1]. Kamila Rosenda, analisando especificamente o instituto, registra que sua origem remonta ao Direito Romano, quando os tribunos da plebe possuíam a faculdade de proibir (vetar) determinadas normas contrárias ao interesse dos seus representados [2]. Tanto assim, que José Afonso da Silva anota que o termo "veto" vem do latim e significa, literalmente, "eu proíbo" [3].

Nesse sentido, o veto representa a discordância do presidente da República. Por meio do veto, o chefe do Executivo nega-se a participar da criação da lei junto com o Congresso Nacional, remetendo o projeto novamente à Casa Legislativa, para que esta, por sua conta e risco, decida se o projeto deve ou não se transformar em lei. Atualmente, essa "proibição" na verdade não é absoluta, podendo ser rejeitada pelo Congresso Nacional, por um quórum (maioria absoluta) geralmente mais exigente que o de aprovação das proposições (maioria simples).

Meio-veto
A experiência brasileira, no entanto, trouxe novas possibilidades – e problemas – para essa figura da “oposição executiva” ao conteúdo do projeto de lei. Ao se instituir o veto parcial, em 1926, complexificou-se bastante a situação, abrindo-se possibilidades várias de concerto entre o Executivo e o Legislativo.

Fabrício da Cruz, José Leocádio da Cruz e Vinícius Dalazoana noticiam que o instituto do veto parcial nasceu da tentativa de, especialmente em projetos de leis orçamentárias, retirar trechos incluídos pelos parlamentares e estranhos ao objeto original da proposição (as chamadas "caudas orçamentárias"):

"A fim de abolir as 'caudas', as Constituições Estaduais dos Estados Unidos da América passaram a prever o veto parcial. O selective veto espalhou-se, depois, para Estados da América Latina, sendo recepcionado pelas Constituições da Argentina e do Brasil, por exemplo" [4].

O veto parcial é adotado também em algumas províncias argentinas. Nos Estados Unidos, vários presidentes tentaram adotá-lo, por meio de emendas à Constituição, mas nenhum deles obteve sucesso [5].

Desde a Reforma Constitucional de 1926, o Brasil permite ao presidente da República vetar apenas algumas partes do projeto de lei. O que variou, ao longo desse período, foi a extensão do poder de veto parcial.

Antigamente, adotava-se o chamado princípio da parcelaridade, segundo o qual era lícito ao presidente vetar apenas algumas palavras dentro de um dispositivo. Teoricamente, o que não podia haver era o desvirtuamento do sentido do enunciado.

A prática, porém, mostrava quadro diverso. A doutrina narra situação em que o governador do estado de São Paulo, em 1963, deparou-se com projeto de lei ao qual queria dar eficácia imediata, mas a Assembleia redigira que "Esta lei entra em vigor após 90 dias de sua publicação". O Chefe do Executivo não se fez de rogado: vetou a expressão "90 dias de" e a redação restou a seguinte: "Esta lei entra em vigor após (vetado) sua publicação". Violou-se, obviamente, o conteúdo original aprovado pelo Legislativo [6].

Para evitar tais abusos, a Constituição de 1988 passou a prever que "O veto parcial somente abrangerá texto integral de artigo, de parágrafo, de inciso ou de alínea" (artigo 66, § 2º). Perceba-se: ainda se dota o veto parcial no Brasil? Sim. Mas esse poder é ilimitado? Não. Se o presidente desejar vetar apenas um inciso, poderá fazê-lo? Sim, mas terá que vetar todo o inciso, e não apenas as palavras ou expressões que lhe desagradem.

Ocorre que o veto parcial também pode trazer consequências sérias do ponto de vista da Legística, afetando até mesmo a qualidade do texto "sobrevivente", retalhado. De acordo com a Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998 (lei que regulamenta a redação e consolidação de lei), o veto parcial deve atender aos requisitos da boa técnica legislativa. Por exemplo: não se pode (em tese, pelo menos) vetar o caput (cabeça) de um projeto de lei, mas deixar os incisos ou parágrafos "voando". Isso atenta contra a lógica e contra a técnica legislativa, pois o acessório segue o principal. Não obstante, é prática um tanto quanto comum que o veto gere labirintos legísticos (v.g., veto aposto pelo Presidente ao inciso II do artigo 2º da Lei nº 9.882/99, deixando, porém, incólume o § 1º, que começa com "Na hipótese do inciso II…"). Sobre essa folclórica figura dos "artigos sem cabeça", assim como outros problemas de Legística decorrentes do veto parcial, voltaremos a esse tema em colunas futuras, se a paciência dos leitores não estiver de todo esgotada.

Resta ver, agora, além do veto e do "meio-veto" (veto parcial), as outras estrelas dessa estranha constelação de bailarinos da ciranda do veto: o desveto, o reveto e o não veto.

Desveto
Diz-se que o veto é irretratável, porque, uma vez aposto, não pode mais ser desfeito. Assim, quando o presidente da República veta um projeto de lei, não é possível "desvetá-lo". O máximo que pode fazer é rogar ao Congresso para que rejeite o veto do qual ele (presidente) se arrependeu.

Parece, à primeira vista, um problema meramente teórico, mas não o é. Já houve caso, na década de 50, em Pernambuco, em que o governador vetou o projeto de lei — mas, tempos depois, arrependeu-se. Pediu, então, que a Assembleia devolvesse o projeto ao Executivo.

Ao analisar o caso, o Supremo Tribunal Federal julgou inconstitucional esse "desfazimento do veto". Determinou, então, o retorno do projeto à Assembleia Legislativa, para que deliberasse sobre o veto como entendesse de direito (rejeitando-o ou acatando-o) [7]. Nesse sentido, ficou decidido que: "O poder de veto, se usado pelo executor, não pode ser retratado" [8].

Muito mais tarde, o STF reafirmou esse vetusto entendimento:

"Processo legislativo: veto mantido pelo Legislativo: decreto-legislativo que, anos depois, sob fundamento de ter sido o veto intempestivo, desconstitui a deliberação que o mantivera, e declara tacitamente sancionada a parte vetada do projeto de lei: inconstitucionalidade formal do decreto-legislativo, independentemente da indagação acerca da validade material ou não da norma por ele considerada sancionada: aplicação ao processo legislativo — que é verdadeiro processo — da regra da preclusão — que, como impede a retratação do veto, também obsta a que se retrate o Legislativo de sua rejeição ou manutenção" [9].

No mesmo sentido, Pontes de Miranda ensinava que "o fato de se comunicar ao Senado Federal o veto, por si só, exaure o poder de aquiescer e integrar o projeto" [10].

Em suma: a tentativa de "desveto" foi considerada inconstitucional pelo STF, por uma aplicação do princípio geral da preclusão.

Não se trata, porém, de exclusividade brasileira: Kamila Rosenda noticia que, nos Estados Unidos, o presidente Grant, em 1876, solicitou ao Senado a retirada de um veto… [11]

Reveto
Por razões semelhantes às que justificam a refutação do "desveto", também não tem sido aceita entre nós a figura do "reveto". É que não pode o presidente da República, caso exerça o poder de veto parcial, vir a, num segundo momento, vetar outros dispositivos antes não vetados (ou seja, sancionados), promovendo uma espécie de "segunda rodada de vetos", ou "exercício renovado do poder de veto".

Não que já não se tenha tentado. Esse caso concreto já foi abordado no julgamento pelo STF da ADPF nº 714/DF, assim ementada:

"1. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental. 2. Veto presidencial em projeto de lei que determinava a utilização de máscaras em locais fechados. 3. Novo veto, após sanção parcial, contra dispositivo anteriormente sancionado, que determinava a utilização de máscaras em presídios. 4. Admissibilidade de ADPF contra veto por inconstitucionalidade. 5. Impossibilidade de arrependimento ao veto. 6. Precedentes. 7. Medida cautelar deferida em parte para suspender os novos vetos trazidos na “republicação” veiculada no Diário Oficial da União de 6 de julho de 2020, a fim de que seja restabelecida a plena vigência normativa do § 5º do art. 3º-B e do art. 3º-F da Lei 13.979/2020, na redação conferida pela Lei 14.019, de 2 de julho de 2020" [12].

A frieza técnica da ementa, contudo, esmaece a dor e a delícia de conhecer as minúcias desse esdrúxulo "reveto".

É que o Congresso Nacional aprovara modificação (Projeto de Lei nº 1.562, de 2020) na Lei de Combate à Pandemia (Lei nº 13.979, de 6 de fevereiro de 2020), para, entre outras medidas: a) tornar obrigatório o uso de máscaras em locais fechados (artigo 3º-A, III); b) obrigar estabelecimentos a fornecer máscaras aos colaboradores (artigo 3ª-B, caput); c) obrigá-los, ainda, a informar da obrigatoriedade do uso desse instrumento (artigo 3º-B, § 5º); e d) dispor que o artigo 3º-B era extensível a presídios e estabelecimentos socioeducativos.

Ocorre que o Presidente da República vetou o disposto em "a" e "b" (Mensagem nº 374, de 2 de julho de 2020), esquecendo-se, no entanto, de vetar as disposições conexas "c" e "d", que foram promulgadas e chegaram a integrar a publicação da Lei nº 14.019, realizada no mesmo dia da mensagem de veto. Dias depois, em 6 de julho, é publicado novo veto ("reveto"), desta vez ao § 5º do artigo 3º-B e ao art. 3º-F, e realizada "retificação" da publicação da Lei nº 14.019, na qual esses dispositivos simplesmente… sumiram! Até hoje, o site do Planalto registra na Mensagem nº 374 a exposição de motivos da "segunda rodada de vetos", como se ela tivesse sido contemporânea à primeira… Ou seja, além de se ter praticado um inconstitucional "reveto", ainda se tentou realizar uma espécie de "prestidigitação constitucional", "escondendo" dispositivos já sancionados, promulgados e até publicados…

Felizmente, como visto, o STF declarou a inconstitucionalidade dessa tentativa de "reveto".

Não veto
Até porque, quando o presidente da República opta pelo veto parcial de um projeto de lei, está logicamente sancionando os demais dispositivos: ocorre uma cisão do PL em duas partes — uma, vetada, deverá ser submetida à apreciação do Congresso Nacional; a outra, sancionada, deve seguir à promulgação e publicação [13]. Mesmo que ainda dentro do prazo constitucional de 15 dias úteis, o presidente da República não pode, por incidir preclusão lógica, vetar novamente dispositivos que ele antes havia vetado, ainda que de forma não expressa. Se o veto é irretratável, a sanção também o é. Ou, para arrematar: o não veto é a sanção.

Nessa situação (veto parcial), a parte não vetada é, portanto, sancionada, devendo ser promulgada e publicada, podendo mesmo entrar logo em vigor; a outra parte, vetada, deve ser submetida à apreciação do Congresso Nacional: se este mantiver o veto, as partes vetadas estarão arquivadas; se este rejeitar o veto, as partes originalmente vetadas estarão transformadas em lei, serão promulgadas e publicadas e passarão a integrar a mesma lei das partes originalmente sancionadas.

Daí decorre que uma mesma lei, no direito brasileiro, pode ter vigência assíncrona, com partes que entraram em vigor antes e partes que entraram em vigor depois: dois casos concretos são a Lei nº 8.112, cujas partes sancionadas entraram em vigor em 11 de dezembro de 1990, mas as partes cujo veto foi rejeitado entraram em vigor em 18 de abril de 1991, promulgadas pelo presidente do Senado (artigo 66, § 7º), Mauro Benevides; e, mais recentemente, a Lei nº 14.133 (Lei de Licitações), cujas partes sancionadas entraram em vigor em 1º de abril de 2021, mas as partes vetadas cujo veto foi rejeitado entraram em vigor em 10 de junho do mesmo, após promulgadas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro.

Mas e então, como fica a vigência das partes vetadas e cujo veto foi rejeitado?

Ah, isso já é tema para uma outra ciranda…

 


[1] Cf. CARVALHO NETTO, Menelick de. A Sanção no Procedimento Legislativo. Belo Horizonte: Del Rey, 1992. Cf. na origem: MONTESQUIEU, Charles-Louis de Secondat, barão de La Brède e de. O Espírito das Leis. Tradução de Fernando Henrique Cardoso e Leôncio Martins Rodrigues. Brasília: UnB, 1982, pp. 192-193.

[2] TORRI, Kamila Rosenda Rodrigues. O Veto como Atividade Legislativa no Direito Constitucional Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, pp. 5 e seguintes.

[3] Cf. SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 215.

[4] CRUZ, Fabrício Bittencourt da; CRUZ, José Leocádio da; DALAZOANA, Vinícius. Técnica e Processo Legislativo Previdenciário. Salvador: JusPodivm, 2016, p. 128.

[5] Cf. FERREIRA FILHO, Manoel Gonçalves. O Veto Parcial no Direito Brasileiro. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; BARROSO, Luís Roberto. Doutrinas Essenciais: Direito Constitucional, volume IV. São Paulo: RT, 2011, p. 535.

[6] Cf. SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 223.

[7] Cf. análise minuciosa em: SILVA, José Afonso da. Processo Constitucional de Formação das Leis. São Paulo: Malheiros, 2006, p. 228.

[8] STF, Pleno, Representação nº 432/PE, Relator Ministro Ari Franco, DJ de 07.04.1960.

[9] STF, Pleno, ADI 1254/RJ, relator ministro Sepúlveda Pertence, DJ de 17.03.2000.

[10] MIRANDA, Francisco Cavalcanti Pontes de. Comentários à Constituição de 1967, com a Emenda n. 1, de 1969, tomo III. São Paulo: RT, 1973, p. 189.

[11] TORRI, Kamila Rodrigues Rosenda. O Veto como Atividade Legislativa no Direito Constitucional Brasileiro. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2021, p. 27.

[12] STF, Pleno, ADPF nº 714/DF, relator ministro Gilmar Mendes, DJe de 25.02.2021.

[13] Nesse sentido: BASTOS, Celso Ribeiro. Do Processo legislativo da Lei Complementar. In: CLÈVE, Clèmerson Merlin; BARROSO, Luís Roberto. Doutrinas Essenciais: Direito Constitucional, volume IV. São Paulo: RT, 2011, p. 131.

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