Direito Digital

Digital Services Act: uma nova fase para a internet?

Autor

  • Carolina Xavier Santos

    é mestranda em Direito Constitucional pela Universidade de Lisbo pesquisadora no Legal Informatics Laboratory (DTI-BR) e no Instituto Legal Grounds e advogada.

14 de fevereiro de 2023, 9h04

É inegável a centralidade que as plataformas digitais assumem hoje na execução das mais básicas atividades do dia a dia de grande parte das pessoas — fenômeno intensificado pela pandemia do coronavírus, que forçou vários serviços a passarem para o digital. As chamadas big techs são hoje fundamentais para nos guiar no espaço online, bem como para nos garantir bens essenciais. Estar conectado significa, inevitavelmente, estar submetido ao serviço dessas empresas, que controlam, ativamente, os novos fluxos comunicacionais[1]. Ou seja, o conteúdo que se pretenda circular online passa, em maior ou menor grau, pelo crivo desses atores, por meio de uma complexa estrutura privada que envolve meios humanos e automatizados.

ConJur
O desenvolvimento dessas empresas e das suas estruturas privadas de gestão do conteúdo que circula online está diretamente relacionado à racionalidade libertária dominante nos primeiros anos da internet[2]. A resistência a qualquer tipo de intromissão estatal nas promessas de inovação que acompanharam o período fez com que, seja pela ausência de regulação, seja pelo estabelecimento de regimes de imunidade de responsabilização legal[3], o exercício de liberdade econômica encontrasse um terreno fértil para definir como seria a arquitetura do espaço online[4]. Como resultado, as plataformas criaram complexas estruturas de governança que envolvem: (i) a definição, nos Termos de Uso, de regras que prescrevem como poderão ser exercidos os direitos dos usuários naqueles espaços, (ii) o estabelecimento de estruturas técnicas que permitem a implementação de tais regras, de modo que certas ações podem ser impedidas por algortimos antes msmo de ocorrerem, e (iii) mecanismos internos de resolução de conflitos envolvendo a moderação de conteúdo.

Tamanho poder sobre o exercício de direitos e as externalidades negativas fruto do modelo de negócios dessas empresas têm estado no centro do debate público, especialmente na União Europeia que, em 2020, apresentou a proposta do Digital Services Act que, juntamente com o Digital Markets Act, compõe um pacote regulatório de iniciativa da Comissão Europeia, com dois objetivos principais: criar um espaço digital mais seguro em que os direitos fundamentais de todos os usuários de serviços digitais sejam protegidos; e estabelecer condições equitativas para promover a inovação, o crescimento e a competitividade, tanto no mercado único europeu quanto globalmente[5]. As iniciativas visam adaptar o Direito a um novo contexto social, no qual ganha centralidade uma nova economia, baseada em dados e algoritmos[6], com uma dinamicidade própria. Desse modo, contrariando os movimentos libertários da década de 1990 e alterando, em parte, a lógica adotada por legislações do início do século, estabelece-se, agora, uma robusta supervisão pública para o desenvolvimento das atividades das empresas, com foco na observância dos direitos fundamentais.

O Digital Services Act, que busca regular, especificamente, os serviços digitais, entrou em vigor em 16 de novembro do ano passado e será diretamente aplicável em toda a União Europeia a partir de 2024. Embora oficialmente uma emenda à Diretiva do Comércio Eletrônico de 2000, o DSA é considerado um ponto de virada na compreensão e no reconhecimento da dimensão social da regulação exercida por operadores de plataformas e da tentativa de restrição dessa atuação privada. Aprofundando o modelo adotado pela Lei Alemã para a Melhoria da Aplicação da Lei nas Redes Sociais (NetzDG), o diploma utiliza-se do instituto da autorregulação regulada, que se baseia em duas características principais: o estabelecimento de parâmetros, advindos do interesse público, a serem seguidos; e a participação do objeto a ser regulado (os atores privados) na implementação desses parâmetros, considerando sua posição privilegiada quanto à expertise e ao domínio da tecnologia[7].

Em resumo, o documento legal prevê regras gerais de responsabilidade desses intermediários do fluxo comunicacional, mantendo as limitações colocadas pela Diretiva do Comércio Eletrônico quanto ao conteúdo gerado por terceiros. No entanto, institui um complexo regime de compliance, com obrigações escalonadas de acordo com os riscos das atividades exercidas pelas empresas, que foram separadas em quatro categorias principais: os provedores de serviços de transporte, os provedores de serviços de armazenamento, as plataformas online (conceituadas como aquelas que armazenam e divulgam informações ao público, de acordo com o artigo 3(i) e as plataformas online de grande dimensão (as Vlops, que acumulam um número médio mensal de usuários ativos dentro da União Europeia igual ou maior a 45 milhões[8]). No caso das plataformas digitais, a maior preocupação é prever regras harmonizadas para o gerenciamento do conteúdo ilegal online. Para isso, o Digital Services Act cerca essa atuação privada por duas frentes: uma substantiva e uma procedimental.

Quanto à frente substantiva, apesar de não detalhar o que constitui um conteúdo ilegal — tarefa que é deixada a cargo do direito da União e dos estados-membros — o regulamento inclui, dentre os possíveis parâmetros para definição da ilegalidade, a Carta de Direitos Fundamentais da União Europeia e, a nível dos estados, o direito penal e o direito privado, no qual estão incluídas proteções de direitos de personalidade. Um destaque deve ser dado ao artigo 14 do texto, que determina que a aplicação dos Termos de Uso deve levar em conta "direitos e interesses legítimos de todas as partes envolvidas, incluindo os direitos fundamentais dos destinatários do serviço, como a liberdade de expressão, a liberdade e o pluralismo dos meios de comunicação social e outros direitos e liberdades fundamentais, tal como consagrados na Carta". Quanto à frente procedimental, o Digital Services Act desenvolve um sistema de mecanismos de notificação e ação, sistemas de reclamações e instrumentos de resolução de conflitos, que devem ser observados por todas as plataformas, a fim de que princípios como transparência, publicidade e contraditório sejam, daqui pra frente, parâmetros de sua atuação, correspondendo à importância e ao risco que oferecem ao exercício de direitos fundamentais.

Ou seja, o que a Comissão Europeia propõe com o Digital Services Act é uma infraestrutura jurídica que define um quadro no qual as regras e a tradição europeia devem servir de parâmetro à atuação das empresas que, por sua vez, mantêm um espaço de manobra para delinear, no exercício de sua liberdade econômica, como utilizarão de sua expertise e domínio técnico para cumprir com as novas obrigações. Cabe a nós, diante disso, acompanhar os interessantes desdobramentos que essa nova etapa do desenvolvimento da Internet trará não só para o contexto europeu, mas seguramente para todo o mundo.


[1] KLONICK, Kate, The New Governors: the People, Rules, and Processes Governing Online Speech, Harvard Law Review, v. 131, 2017, p. 1661. 

[2] GOLDSMITH, Jack; WU, Tim, Who Controls the Internet? Illusions of a Borderless World, Oxford: Oxford University Press, 2006, p. 13.  

[3] DENARDIS, Laura. The Global War for Internet Governance, Yale University Press, 2014, p. 157.

[4] CAMPOS, Ricardo. Metamorfoses do direito global: Sobre a interação entre direito, tempo e tecnologia. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 300.

[6] CAMPOS, Ricardo. Metamorfoses do direito global. São Paulo: Contracorrente, 2022, p. 256.

[7] CAMPOS, Ricardo; MARANHÃO, Juliano. Fake news e autorregulação regulada das redes sociais no Brasil: fundamentos constitucionais, in: ABBOUD, CAMPOS, NERY JR. (Orgs.) Fake News e Regulação, 2ª ed., 2020, p. 326.

[8] No texto final do Digital Services Act, a plataforma online ou o mecanismo de busca que possua um número de usuários ativos igual ou maior que 45 milhões por mês não é mais automaticamente categorizada enquanto VLOP (very large online platform ou very large online search engine). Agora, de acordo com o artigo 33(4), deve haver uma decisão da Comissão Europeia, em cooperação com outras autoridades, que designe a plataforma enquanto tal.

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