Opinião

Justiça penal negociada: Supremo precisa rever Súmula nº 696

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10 de fevereiro de 2023, 18h18

A Súmula nº 696 do Supremo Tribunal Federal diz que "[r]eunidos os pressupostos legais permissivos da suspensão condicional do processo, mas se recusando o promotor de justiça a propô-la, o juiz, dissentindo, remeterá a questão ao Procurador-Geral, aplicando-se por analogia o artigo 28 do Código de Processo Penal".

No presente artigo buscaremos fundamentar a reanálise de duas questões específicas, justificadas tanto pelo estudo do leadind case que originou a súmula, como pela evolução legislativa e jurisprudencial sobre o papel de cada ator do processo, bem como direitos e garantias fundamentais. São elas: 1) uma vez preenchidos os requisitos objetivos para a propositura do acordo, seria este um direito subjetivo do acusado?; e 2) como ou quem pode recorrer da negativa do Ministério Público em propor o acordo de suspensão condicional do processo.

Do direito subjetivo do acusado
Em apropriado artigo sobre o acordo de não persecução penal (ANPP), Antonio Suxberger, Dermeval Filho e Danilo Dias, abordando a questão da discricionariedade (ou não) do Ministério Público para propor um acordo, faz uma importante diferenciação do que seriam os pressupostos, requisitos e condições do acordo [1].

Traçando um paralelo com o que dizem os autores, podemos afirmar que são pressupostos para o acordo de suspensão condicional do processo, em resumo, o que disposto no artigo 89 da Lei nº 9.099/1995. Os pressupostos para este acordo são, assim, o que a doutrina chama de "requisitos objetivos".

Por outro lado, em que pese a justiça penal negociada (seja a suspensão condicional do processo, a transação, ou mesmo o ANPP) preveja como pressuposto as circunstâncias judiciais, tal qual prevista no artigo 59 do CP (culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e consequências do crime), podemos dizer, seguramente, tratar-se de condições para a negociação do acordo. É o que se tem chamado de "requisitos subjetivos".

Ainda com os autores acima, aproveitamos: "A distinção entre o que sejam os pressupostos e os requisitos, em face do conteúdo negociável do acordo, busca aclarar justamente os espaços de controle da discricionariedade persecutória do Ministério Público na formulação do acordo. Ao se compreender com mais clareza o que antecede o acordo, o que se verifica no momento do acordo e o que se constrói de maneira dialogada e fundamentada, busca-se justamente indicar bases mais seguras ao controle da atuação do titular da ação penal para manejo do instituto negocial".

Nesse sentido, em que pese não seja estritamente discricionária, o cotidiano forense mostra que a recusa do Ministério Público em propor um acordo se fundamenta em duas bases:

a) na visão subjetiva de seu representante sobre o suposto crime cometido: ora, trata-se de verdadeira afronta às Leis e ao direito "objetivo" do acusado. Quando o Congresso Nacional debateu e aprovou a Lei nº 9.099/1995, traçou suas balizas. No presente caso, previstos no artigo 89 da Lei dos Juizados Especiais.

Exemplo comum se dá na acusação pelo crime do artigo 288 do CP. O preceito secundário prevê a pena mínima de um ano, de forma que, preenchidos os demais pressupostos, não há que se falar em negativa de proposta por não ser suficientemente adequado ao caso.

Não raras vezes, todavia, o membro acusador faz uso de jargões e conceitos abstratos para justificar o seu desconforto (recalcitrância) em propor o acordo. No caso do crime previsto no artigo 288 do CP, diz-se que o acusado faria parte de um grupo criminoso, destinado a cometer ilícitos, que seria seu meio de vida etc. Ocorre que essa avaliação não está no âmbito de discricionariedade do Ministério Público, porquanto o filtro já foi discutido e imposto pelo legislador (quanto ao suposto crime, basta verificar a pena mínima cominada).

Se o delito (e sua pena) está dentro do âmbito de aplicação do instituto da suspensão condicional do processo, não cabe ao Ministério Público tecer considerações genéricas sobre a gravidade abstrata do crime.

A bem da verdade, tampouco sobre a gravidade concreta, posto que isso dá margem para o eterno subjetivismo de ocasião. Ou bem os fatos preenchem os requisitos objetivos para a propositura, ou não.

b) que as circunstâncias judiciais a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social, a personalidade do agente, os motivos, as circunstâncias e consequências do crime) não indicam o acordo: aqui, mais uma vez, recaímos na visão subjetiva e singular do membro acusador, que, em geral, já tendo oferecido uma denúncia, não deseja ver outro fim que não a condenação do acusado.

Ora, em que pese a recusa em se propor um acordo por tais circunstâncias esteja prevista, no nosso caso em estudo, no artigo 77, inciso, II do CP, mais uma vez tem-se larga abertura e subjetivismo para a pessoa que já fez uma denúncia e, logo, não quer ver, em regra, solução diversa para o seu caso.

Além disso, a recusa com base nas circunstâncias judiciais pode abrir porta para um outro problema: e se, no momento da sentença condenatória, ao fazer a dosimetria da pena, o juiz não reconhecer nenhuma das circunstâncias do artigo 59 do CP como negativas? É a prova de que a recusa em se propor o acordo, lá atrás, teria sido arbitrária, ou, no mínimo, temerosa. Nessa hipótese, seria o caso de aplicação extemporânea do acordo?

Lembremo-nos que são exatamente os pressupostos e as condições que buscam "aclarar justamente os espaços de controle da discricionariedade persecutória do Ministério Público na formulação do acordo" [2].

Assim, uma vez que o instituto da suspensão condicional do processo (assim como a transação e o ANPP) constitui elemento despenalizador, cujo cumprimento acarreta a extinção da punibilidade (mantendo-se, inclusive, a primariedade), a oportunidade do acordo, cumpridos os requisitos objetivos, deve ser mandamental. Tratar-se-ia, assim, de verdadeiro direito subjetivo do acusado [3].

Frise-se: o direito subjetivo a que o acusado faz jus é sentar-se à mesa e debater, com a acusação, as possíveis medidas que, proporcionalmente ao caso, satisfaçam ambas as partes.

Em última instância, ou as partes chegam à um consenso, e o acordo se firmará; ou não, e o juiz poderá verificar a proporcionalidade da proposta do Ministério Público (formalmente fundamentada), sob pena de propostas esdrúxulas serem tidas como tentativa de burlar o direito do acusado. Nesse caso, novas tratativas devem ser feitas. Ou, mesmo, aplicar-se-ia o artigo 28, para que Procurador-Geral (ou o órgão competente) delimite, em última instância, as balizas na visão da acusação.

Mais uma vez: não é que o acusado tenha direito subjetivo à um acordo, mas, sim, a tratar de um possível acordo. Tendo recusado algo que o juiz entenda plausível e pertinente, formalmente motivado, não restará outra alternativa que buscar sua visão de direito por outros meios (quem sabe, aquele proposto no tópico seguinte).

Mas, ainda que assim não o seja (direito subjetivo), é preciso dar-lhe a oportunidade de recorrer da recusa ministerial, independentemente da visão do juiz.

Do recurso quanto à negativa de propositura do acordo
A súmula nº 696 tem origem, basicamente, no julgamento do habeas corpus nº 75.434/MG. Em que pese sua redação indique que o juiz remeterá a questão ao Procurador-Geral tão somente quando ele "dissentir" do membro do Ministério Público, deixando de fazer a remessa e prosseguindo com a ação penal em caso de concordância, não parece ter sido este o posicionamento (ou a linha de pensamento) adotado pelo Supremo, quando do julgamento daquele leading case.

Primeiramente, basta olhar o quanto ficou resumido na ementa do julgado:

"EMENTA: Suspensão condicional do processo (L. 9.099/95, artigo 89): natureza consensual: recusa do Promotor: aplicação, mutatis mutandis, do artigo 28 C. Pr. Penal. A natureza consensual da suspensão condicional do processo  ainda quando se dispense que a proposta surja espontaneamente do Ministério Público  não prescinde do seu assentimento, embora não deva este sujeitar-se ao critério individual do órgão da instituição em cada caso. Por isso, a fórmula capaz de compatibilizar, na suspensão condicional do processo, o papel insubstituível do Ministério Público, a independência funcional dos seus membros e a unidade da instituição é aquela que – uma vez reunidos os requisitos objetivos da admissibilidade do sursis processual (artigo 89 caput) ad instar do artigo 28 C. Pr. Penal  impõe ao Juiz submeter à Procuradoria-Geral a recusa de assentimento do Promotor à sua pactuação, que há de ser motivada." 

Em que pese os votos dos ministros Octavio Gallotti (relator) e Nelson Jobim (posteriormente retificado) pela impossibilidade de aplicação analógica do artigo 28 do CPP, venceu o voto do ministro Sepúlveda Pertence, para quem tal aplicação "é o que serve melhor à compatibilização entre o papel insubstituível do Ministério Público na suspensão condicional do processo, a independência funcional de cada um dos seus membros e a unidade que se quer da instituição, que, aí, sim, pode fazê-la, com muito maior legitimidade, o agente criativo e não arbitrário de uma política penal, que, nos limites da lei, seja variável conforme as circunstâncias de tempo e de espaço a considerar".

Não menos importante é a fundamentação usada pelo ministro Carlos Velloso, para quem "a lei quer o pronunciamento não do Promotor, mas do Ministério Público. Assim, parece-me razoável a interpretação no sentido de que, existindo as condições objetivas para que o Órgão do Ministério Público, incumbido da denúncia, proponha a suspensão do processo, e não a fazendo, deve o juiz ouvir o Chefe do Ministério Público, porque este fala em nome da Instituição, e a lei, conforme vimos, não se refere ao Promotor, nem ao Procurador, mas, sim, ao Ministério Público".

Cabe-nos explicitar, ainda, que a proposta de aplicação analógica do artigo 28 do CPP pelo ministro Sepúlveda Pertence se contrapôs a uma ideia, relativamente usual à época, de que o juiz, entendo presentes os requisitos, poderia, ele próprio, formalizar o "acordo". Deveras, como explicou o ministro, "[p]osso chegar, para não consagrar o arbítrio, até a dispensar a espontaneidade ou a originalidade da proposta. O que não posso, num instituto claramente definido como mecanismo da Justiça Criminal transacional ou pactuada, é subtrair da formação desse acordo, é expulsar dessa transação uma das partes do processo, a parte acusatória, o Ministério Público, ao qual, literal e expressamente, a lei teria dado mais, porque lhe reservou a iniciativa da proposta".

Com razão. Porém, tal qual elaborada a súmula nº 696/STF, possibilitando tão somente ao juiz a remessa dos autos ao Procurador-Geral, apenas quando ele dissentir da recusa ministerial, terminou o Supremo Tribunal Federal por subtrair a outra parte, o polo mais frágil da relação processual: o acusado.

Esta a razão principal para que ou 1) a remessa ao Procurador-Geral, presentes os requisitos objetivos, seja automática, ou, ao menos, 2) que se permita à defesa recorrer e requerer este envio.

Mas não é só.

Com a evolução jurisprudencial e legislativa, a aplicação analógica que faz mais sentido hoje certamente se daria em relação ao artigo 28-A, §14, do CPP, que prevê justamente a possibilidade de recurso aos órgãos superiores no caso de recusa de proposta por parte do Ministério Público. Referida norma faz parte dos avanços que vieram com a Lei 13.954/2019 e institui o ANPP.

Vinicius Vasconcellos [4] explica bem o intuito dessa inovação (artigo 28-A, §14): "Consolida-se, portanto, um sistema negocial limitado, para delitos sem violência ou grave ameaça com pena mínima abstrata de até quatro anos, em que a decisão do órgão acusador deve ser determinada pelos requisitos da lei e controlada internamente no Ministério Público".

Firma-se, mais uma vez, a ideia de que não cabe ao promotor singular, subjetivamente, impor sua vontade na recusa do acordo. Deve, este, ser um entendimento da instituição Ministério Público, cujas balizas, até mesmo ideológicas, são traçadas pela corporação, pelo colegiado.

Nesse sentido, precisas são as palavras no ministro Edson Fachin, para quem, julgando a inteligência do artigo 28-A, §14, no HC 164.677, registrou que o envio ao órgão superior do Ministério Público, a pedido do acusado, quando da recusa na proposição do acordo pelo MP, tratar-se-ia de "genuíno direito subjetivo e potestativo do investigado ao reexame da negativa do Parquet que atuou em primeira instância".

Conclusão
Este ano a súmula nº 696 do Supremo Tribunal Federal completa 20 anos. É tempo de revisitá-la, adequando-a aos avanços da legislação e da jurisprudência, seja para considerar, uma vez preenchido os requisitos objetivos pelo acusado, um direito subjetivo seu, nos termos acima propostos; seja para adequar a aplicação analógica, correspondendo ao artigo 28-A, §14 do CPP, permitindo-se, assim, o recurso pela defesa em caso de negativa de proposta pelo Ministério Público.

 


[1] SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano; GOMES FILHO, Dermeval Farias; DIAS, Danilo Pinheiro. Discricionariedade persecutória no ANPP: afinal, o que se negocia? Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, nº 50, p. 183-202, dez. 2022.

[2] SUXBERGER, Antonio Henrique Graciano; GOMES FILHO, Dermeval Farias; DIAS, Danilo Pinheiro. Discricionariedade persecutória no ANPP: afinal, o que se negocia? Revista da Faculdade de Direito da UFRGS, Porto Alegre, nº 50, p. 183-202, dez. 2022.

[3] Nesse sentido, precisas são as palavras no voto do Ministro Marco Aurélio, quando do julgamento do leading case HC 75.434/MG: "Apenas, considerada uma política de persecução criminal, cuja fixação não cabe ao Ministério Público, mas ao legislador, pressupõe, para os crimes de menor repercussão, nos quais a pena mínima cominada seja igual ou inferior a um ano, a formalização da proposta visando a suspender o processo. Entender-se que se está diante não de um poder-dever do Ministério Público, balizado por regras legais a direcionar não ao princípio da oportunidade regrada, mas à atuação livre, no que presentes critérios de mera conveniência, é olvidar que o Órgão atua segundo os parâmetros legais, objetivando, com isso, colaborar para a indispensável segurança jurídica. Implica admitir que a aplicabilidade do disposto no artigo 89 ganha contornos relativos, ditados, como ressaltou, na obra referida, Luiz Flávio Gomes, por convicções particulares de cada representante do Ministério Público, variando de comarca a comarca, de vara a vara, conforme as concepções mantidas sobre o momento vivido e a necessidade de implementar-se rigor maior. (…) A margem da recusa em se formular a proposta está dada pela lei: são os requisitos da suspensão".

[4] VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Acordo de não persecução penal e a expansão da justiça criminal negocial: natureza, retroatividade e consequências ao descumprimento. Boletim Revista dos Tribunais Online, vol. 27/2022, Maio/2022.

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