Observatório Constitucional

Presidencialismo brasileiro será fortalecido a partir de 2023?

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4 de fevereiro de 2023, 8h00

Um dos aspectos mais interessantes do processo eleitoral de 2022 foi a instantânea transferência do poder presidencial, ocorrida logo após a proclamação do resultado do segundo turno das eleições para o cargo de presidente da República. O imediato retorno de Luiz Inácio Lula da Silva ao centro gravitacional da política no Brasil, assim como o seu sucesso em praticamente todas as batalhas políticas vivenciadas desde a vitória eleitoral, fizeram ressurgir no cenário nacional questões importantes sobre as atuais mutações das práticas governamentais e, dessa forma, do próprio funcionamento do sistema de governo presidencialista brasileiro.

Após mais de dez anos protagonizados por figuras presidenciais notoriamente fracas perante as forças políticas congressuais, uma delas afastada por impeachment, será o presidencialismo brasileiro fortalecido a partir deste ano de 2023? Quais as implicações das atuais mudanças nas conhecidas discussões sobre a necessidade de alteração formal do sistema de governo e adoção de modelos semipresidencialistas?

Em conhecido estudo sobre o funcionamento do sistema presidencialista de governo, Giovanni Sartori diagnosticou, com acurada precisão, que o problema dos presidencialismos da América Latina costuma resultar da dinâmica da separação dos poderes, que mantém uma perene e instável oscilação entre o abuso e a ausência do poder presidencial [1].

De fato, os presidentes latino-americanos acabam ficando marcados na história pela intensidade dos seus poderes em face de partidos e legislativos. Quando conseguem manejar grandes coalizões políticas de governo, exercem com plenitude todas as competências e prerrogativas que as Constituições lhes conferem, tornando-se figuras presidenciais extremamente fortes. Mas quando carecem de capacidade política para a negociação com partidos dominantes no Congresso, tornam-se reféns das forças de oposição e, não raro, sucumbem em processos de impeachment ou golpes de Estado.

No Brasil, a intensidade da força política presidencial sempre esteve muito atrelada, além de outros fatores, à popularidade do presidente, que pelas próprias características culturais e sociais do país (neste aspecto não muito diferentes dos demais países latinos), é diretamente proporcional à quantidade de carisma que ele é capaz de cultivar e preservar perante camadas majoritárias da população. Altos níveis de popularidade permitem sustentar elevados graus de poder político e geram capacidade suficiente para formar e controlar coalizões partidárias necessárias para um governo sem sobressaltos. A popularidade presidencial, nesse sentido, está umbilicalmente conectada às características pessoais do presidente.

O personalismo é um dos fatores mais marcantes do presidencialismo brasileiro. A popularidade e a respectiva força política presidencial sempre foram condicionadas, em grande medida, pelas diferentes personalidades daqueles que ocupam o cargo. Notórias figuras registradas na história brasileira como alguns dos presidentes mais populares, como Getúlio Vargas, Juscelino Kubitschek, Fernando Henrique Cardoso e o próprio Luiz Inácio Lula da Silva, conquistaram essas posições históricas, entre diversos outros fatores, muito devido às suas distintas personalidades, as quais os dotaram de carisma e capacidades políticas incontestáveis. Seus governos ficaram assim marcados historicamente como exemplos do presidencialismo forte no Brasil.

Ao longo dos últimos dez anos, o cargo de presidente da República foi ocupado por personalidades despidas de grande carisma (amplamente majoritário) e, assim, carentes dos percentuais de popularidade suficientes para que seus governos fossem dotados da necessária capacidade de fazer impor os poderes presidenciais em face das forças políticas congressuais.

Em rápido olhar retrospectivo sobre a última década da política brasileira, parece evidente que ela está caracterizada pelo desenvolvimento de um presidencialismo fraco, cuja instabilidade política pode hoje ser vista como um dos principais fatores para o ressurgimento das teses que defendem reformas do sistema de governo e, especialmente, a adoção de novos desenhos institucionais aproximados ao parlamentarismo ou ao semipresidencialismo.

O retorno de Luiz Inácio Lula da Silva à Presidência da República, especialmente os fatos políticos que marcaram os processos eleitoral e de transição governamental de 2022, colocam no cenário político atual novas questões sobre o futuro próximo do presidencialismo brasileiro.

Em um sistema de governo acostumado a funcionar condicionado às personalidades presidenciais, a volta de um notório líder carismático e popular, já historicamente reconhecido por sua capacidade política de manejar grandes coalizões congressuais, suscita a hipótese bastante plausível do retorno do presidencialismo forte no Brasil. Alguns indícios dessa tendência podem ser verificados no cenário político atual.

Desde a sua eleição, Lula assumiu o centro do jogo político brasileiro e até o momento teve habilidade para vencer todos os difíceis obstáculos impostos ao seu governo. No dia seguinte ao resultado das urnas, o presidente eleito já havia sido reconhecido como tal pelos chefes do Legislativo (Senado e Câmara) e do Judiciário, por líderes das principais potencias mundiais, e na inegável condição de principal liderança política do país, iniciava negociações exitosas com os maiores partidos em torno do projeto de emenda à Constituição (a famosa PEC da Transição) [2] considerada crucial para o seu primeiro ano de governo, a qual, em menos de dois meses, seria aprovada com ampla maioria nas duas casas do Congresso Nacional, mesmo antes de sua posse no cargo presidencial. O silêncio e a ausência no espaço público do candidato à reeleição perdedor (naquele momento presidente ainda formalmente no cargo) contribuíram, além de outros diversos fatores, para que o processo formal da transição fosse convertido, na prática, em antecipada assunção ao poder do presidente eleito. Uma semana após a posse, o grande respaldo político-institucional ao novo governo tornou possível a sobrevivência à intentona bolsonarista e a rápida superação, com ainda mais poder, dos deploráveis acontecimentos do dia 8 de janeiro de 2023. Os episódios seguintes demonstraram um aparente sucesso na resolução das relações de poder com os comandos faz Forças Armadas, preservada a autoridade presidencial e de seu ministério da Defesa (de caráter civil) em face da cúpula militar.

Mas as vitórias a todas as investidas contra o novo governo não teriam sido suficientes se não fossem acompanhadas da necessária formação de uma ampla coalizão parlamentar, crucial para o regular funcionamento do presidencialismo brasileiro. A eleição dos candidatos apoiados pelo governo às presidências do Senado Federal e da Câmara dos Deputados, no último 1° de fevereiro, parecem assim ter configurado um quadro político favorável à governabilidade e à sustentação política do presidente da República.

Apesar de não integrarem os partidos formadores do núcleo da base parlamentar do governo — neste ponto, ressalte-se que compromisso partidário e apoio parlamentar são distintos quanto à intensidade do pacto político que podem gerar —, os eleitos presidentes das casas legislativas deram mostras suficientes de que trabalharão para a governabilidade e a sustentação presidencial. O governo estará submetido a desafios diuturnos para manter esse apoio ao longo da legislatura, mas no momento há uma indicação de que o cenário político está preparado para a aprovação dos projetos governamentais, especialmente de emendas constitucionais para grandes reformas.

Após a decisão do Supremo Tribunal Federal que declarou a inconstitucionalidade do denominado "orçamento secreto" [3], provavelmente haverá uma reconfiguração das relações de poder entre o Executivo e o Legislativo, com possíveis condições políticas favoráveis para a reassunção dos plenos poderes presidenciais na definição do orçamento, um instrumento importante para o controle da coalizão de governo.

O provável fortalecimento dos poderes presidenciais no primeiro ano do governo poderá impactar os debates (especialmente os acadêmicos) sobre reformas do sistema presidencialista no Brasil. Se a instabilidade causada pelo fraco presidencialismo da última década instigou novas teses sobre a reformulação dos desenhos constitucionais do sistema governamental, é plausível supor que o desenvolvimento de um presidencialismo forte poderá novamente enfraquecer a discussão.

Assim como o conturbado ano eleitoral de 2022 tornou necessário o congelamento das teses sobre o semipresidencialismo (como defendi em artigo publicado nesta coluna em abril daquele ano), o presidencialismo forte que poderá marcar o ano de 2023 suscitará novas reflexões teóricas em torno do tema e fará repensar sobre outros momentos oportunos para o revigoramento do debate.

Em um cenário político de constantes ataques à democracia constitucional, é sensato pensar que atualmente não existem condições políticas propícias para um debate mais aprofundado sobre reformas constitucionais do sistema de governo no Brasil.

O desenvolvimento de um presidencialismo forte pode ser atualmente importante para a estabilidade governamental, o regular funcionamento do sistema político e, portanto, a proteção do regime democrático em face de novas intentonas antidemocráticas.

A resiliência das instituições tem sido fundamental para a preservação da democracia constitucional fundada em 1988. Nesse contexto, é possível vislumbrar que o fortalecimento do presidencialismo como sistema de governo pode contribuir para o robustecimento e defesa das instituições democráticas.

As forças antagônicas ao presidente da República, porém, serão igualmente potentes e imporão muitos obstáculos à governabilidade. O fortalecimento do presidencialismo certamente enfrentará muitos desafios. Em 2023, o regular funcionamento do sistema político brasileiro permanecerá dependendo da resiliência das instituições democráticas.

 


[1] SARTORI, Giovanni. Ingeniería constitucional comparada: una investigación de estructuras, incentivos y resultados. Trad. de Roberto Reyes Mazzoni. 3ª Ed. México: Fondo de Cultura Económica; 2003, p. 110.

[2] Projeto de Emenda à Constituição nº 32, de 2022, aprovado e promulgado como Emenda Constitucional nº 126, de 2022.

[3] A expressão foi criada para denominar a prática de emendas do próprio parlamentar relator do orçamento para inclusão de novas despesas ou programações no projeto de lei orçamentária da União, retirando poderes do Poder Executivo para essa definição orçamentária. STF-ADPFs nº 850, 851, 854 e 1.014, rel. min. Rosa Weber, julg. Em 19/12/2022.

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