Interesse Público

Inquietações sobre ensino jurídico e políticas públicas

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2 de fevereiro de 2023, 8h00

Em texto primoroso publicado há duas semanas neste mesmo espaço, a professora Vanice Valle defendeu que a avaliação de políticas públicas, no início de uma nova gestão governamental, é premissa para a formulação de decisões de descontinuidade ou reformulação dessa mesma estratégia de enfrentamento de problemas públicos [1]. O texto tem vários méritos; dentre eles destaco a importância de se insurgir jurídica e politicamente contra a cultura de descontinuidade administrativa, como se cada novo gestor público estivesse inaugurando, com sua posse, um novo município ou uma nova estrutura qualquer da administração. Essa cultura possui forte relação com a visão de políticas públicas como se compostas de etapas autônomas, segmentadas, que devessem ser consideradas de forma isolada, e não em seu dinâmico ciclo total. Essa visão — que considero inadequada e ultrapassada — possui forte amparo na tradição de nosso ensino jurídico, notadamente no ensino do direito público.

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O imaginário popular que consagra a visão de um estudioso do direito isolado, soberbo e autorreferente talvez encontre guarida na formação jurídica tradicional que consagra uma ciência que possui como uma de suas pretensões a resolução de conflitos, mas que paradoxalmente se desenvolve muitas vezes longe dos fatos reais e também distante de outras áreas do conhecimento.

A pretensão de transformar a realidade e cumprir as muitas promessas sociais feitas pela Constituição de 1988 exige, primeiro, que se conheça a realidade; que sejam identificados os problemas; que esses problemas sejam incorporados à agenda pública para que, então, seja planejada uma solução a ser implementada, monitorada e avaliada. No que se refere ao direito público, pensar com o mindset das políticas públicas é reconhecer que o trabalho do jurista é, talvez, o mais fácil — o mais difícil será compreender a dinâmica dos movimentos, os papéis dos diferentes atores e o grau de institucionalização necessário. Políticas públicas não se confundem com as normas que lhes dão suporte, tampouco têm nas leis os seus exclusivos instrumentos. Organização, planejamento, ação, acompanhamento, controle, aprendizado — palavras soltas que podem ser consideradas como etapas impostas ao Estado para desenvolver suas muitas atividades utilizando a regulação jurídico normativa, mas não se limitando a ela [2].

No que se refere ao ensino jurídico do direito público, a discussão teórico-conceitual sobre políticas públicas encontra obstáculos na tradicional organização curricular; em consequência, nesse particular a ciência jurídica se encontra relativamente atrasada com relação a muitas outras. Interdisciplinaridade, formação de um repertório próprio na graduação e na pós-graduação foram alguns dos desafios discutidos, na série de webinários realizados pela Faculdade de Direito da USP intitulado "Direito e Políticas públicas na sala de aula", sob a coordenação da professora Maria Paula Dallari Bucci, uma das pioneiras na identificação dos desafios e na percepção de sua relevância.

Uma primeira conexão interdisciplinar necessária para a abordagem jurídica das políticas públicas pode ser visualizada na compreensão de categorias que estão "na moda", por assim dizer, em razão de sua relevância e de sua origem em outros campos: refiro-me às categorias accountability, governança e compliance. Outra conexão resulta de componentes que possuem natureza sócio-política, muito embora juridicamente regulados, e que demandam novas reflexões quando visualizados no contexto dinâmico das políticas públicas, a exemplo da discricionariedade, participação democrática, procedimentalização e dos instrumentos de deliberação e controle social.

A consideração das políticas públicas como processo à disposição do Estado para realização de suas finalidades reacende a importância da discussão do ferramental disponível para consecução dos direitos fundamentais e dos objetivos da República. Como lidar, juridicamente, com os muitos compromissos do Estado social, com a existência de políticas de governo legitimadas pelo voto e ainda assim respeitar escolhas e prioridades alocativas que já foram feitas (como, por exemplo, a aplicação de um valor mínimo em educação)?

Não existem respostas prontas. Nestas considerações é possível perceber a necessidade de enfocar a categoria políticas públicas de forma transversal para, no ensino jurídico, estruturar adequadamente os muitos pontos de contato entre as disciplinas tradicionais. Como exemplo, no Direito Constitucional é preciso compreender adequadamente a distribuição de competências legislativas e administrativas, direitos fundamentais e controle social; no Direito Administrativo há o necessário contato com o estudo dos agentes públicos, organização administrativa, vias técnico-jurídicas de atuação e atividades da administração pública; no Direito Financeiro e Direito Tributário, finalmente, é importante considerar o federalismo fiscal, tributos, renúncias de receitas, restrições fiscais e leis orçamentárias, dentre outros.

Além disso, habilidades que já são objeto de atenção em outras ciências talvez já mereçam abordagem que incorpore elementos jurídicos: construção de consensos, articulação, comparação e avaliação de alternativas, prototipagem de projetos e soluções e modelagem jurídica institucional são exemplos que se encaixam em momentos variados do ciclo de políticas públicas. Como treinar habilidades diferentes no cumprimento de currículos tradicionais?

O leitor e a leitora mais antigos talvez tenham se lembrado do saudoso Chacrinha, o Velho Guerreiro, quando dizia que "eu não vim para explicar; eu vim para confundir". Este texto é mais propriamente intuitivo e opinativo do que científico, e não pretendo, pelo menos por enquanto, apresentar respostas. Basta-me, por enquanto, compartilhar a inquietação de quem entende necessária alguma mudança para que tenhamos políticas públicas que contribuam para os objetivos do Estado Social, com um grau mínimo de institucionalização jurídica que lhes assegure eficiência, eficácia e aprendizado.

 


[2] As ideias deste parágrafo foram desenvolvidas na elaboração do prefácio da obra A ineficiência da execução fiscal no Estado de Goiás como situação-problema na abordagem direito e políticas públicas, de Raimundo Nonato Pereira Diniz, no prelo.

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