Opinião

PECs 113 e 114 são verdadeiro assalto ao sistema de Justiça e à Constituição

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1 de fevereiro de 2023, 12h18

1. É falsa a classificação das dívidas originárias de decisões judiciais como "gastos públicos" passíveis de integrarem as despesas primárias, submetidas a um teto pela Emenda 95. Tal designação visou justificar o seu "corte" como necessidade para abertura de espaço fiscal, supostamente para o pagamento da renda básica. A expropriação ilegal seria, por esta via, legitimada como um suposto gesto humanitário.

As Emendas 113 e 114/2021 fixaram um teto anual para pagamento de precatórios com vigência de 2022 a 2026, em patamar muito inferior aos montantes que vinham sendo pagos nos últimos anos e ao que seria pago em 2022. Tais emendas produziram, no primeiro ano, a retenção ilícita de valores de dezenas de bilhões de reais requisitados pelos Tribunais, já pertencentes aos vencedores das ações, em face do trânsito em julgado das decisões judiciais contra a União. 

Com o objetivo espúrio de tornar imperativa a retenção dos valores de precatórios habilitados, o governo e os parlamentares criaram a premissa não demonstrada de que faltava espaço fiscal no orçamento, para inclusão de gastos sociais com a renda básica e, secundariamente, para custeio da seguridade social. Naturalmente que o corte, se realmente necessário, deveria ser dirigido para qualquer gasto discricionário – que são despesas primárias na dicção da Emenda 95, jamais para dívidas da União,  oriundas de  decisões judiciais, que têm a mesma classificação das demais dívidas, sejam as dívidas habituais com fornecedores, com o custeio de obras públicas e pagamento de permissionárias. 

Belluzzo (2023), em artigo intitulado A bomba da dívida,[1] denuncia essa manobra enfatizando que os precatórios não são despesas primárias; são ordens de pagamento emitidas pelo Judiciário contra o Executivo, que se torna devedor. Assim, precatórios devem ser classificados como dívida até mesmo para que se possa dimensionar o tamanho do passivo público, como exige a lei de responsabilidade fiscal. Foi para direcionar o corte para a verba destinada ao pagamento da dívida representada por precatórios que foi adulterada a sua classificação, que era – segundo toda a doutrina e experiências pregressas — uma dívida da União, enquadrando-a como gasto público. 

A narrativa dos poderes, por ausência de conhecimento ou manobra, adulterou conceitos do direito e da legislação financeira nos próprios enunciados normativos das emendas, designando estas dívidas da União como gastos, para considerá-los submetidos ao teto geral de gastos fixado pela Emenda 95: o que integra as despesas primárias, submetidas ao teto pela Emenda nº 95/2016, são os gastos públicos. Cabe observar que a doutrina considera incluídos nos gastos, em sentido lato, os benefícios fiscais, pois prevalece a ficção de que os tributos ingressaram na Fazenda Pública e "saíram" como despesa. Este, portanto, deveria ser o primeiro "foco" para o corte dos poderes constituídos.

2. A retenção de valores dos credores da União não é calote, mas apropriação indébita de bens de centenas de milhares de pessoas pobres
A aplicação imediata das emendas, no exercício de 2022, operou a retenção de dezenas de bilhões de reais já pertencentes a mais de cem mil pessoas. A propriedade dos valores litigiosos, com o trânsito em julgado das decisões judiciais, já tinha sido transferida aos autores das ações contra a União, a maioria deles credores alimentares, como os aposentados da previdência. Até 2026, haverá retenção de valores de requisições carimbadas com os dizeres "sem previsão de pagamento", podendo se acumular até meio trilhão em 2026.

A operação perversa promovida por meio da emendas tem sido chamada impropriamente de calote pela imprensa e até por autoridades ministeriais, habitualmente, relacionando-o ao aperto financeiro da União para compor um discurso de justificação. Calote, diz o dicionário, significa "dívida não paga, por quem não podia ou não tinha intensão de pagar", ato que chega a ser tipificado como um crime leve no Código Penal (artigo 176), somente praticado por consumidores contra restaurantes, hotéis ou transportistas.

Não se trata aqui de calote: a operação instituída pelas emendas foi a de apropriação indevida de muitos milhares de pequenos valores retidos pela Fazenda Pública, embora já pertencentes a terceiros, a saber os vencedores de ações contra a União. Essa operação está tipificada no artigo 168 do Código Penal como crime de apropriação indébita, que é praticado por quem detém e retém bem alheio, usando recursos ilegítimos: "Art. 168 – Apropriar-se de coisa alheia móvel, de que tem a posse ou detenção: Pena – Reclusão de um a quatro anos e multa".

Os valores representados por precatórios já estavam internalizados nos patrimônios individuais dos exequentes em face do trânsito em julgado das decisões judiciais que lhes atribuíram o direito sobre o bem litigioso. Observa-se que os credores lesados pela União estão em situação oposta à dos credores lesados pelos calotes[2], que hoje têm controle da situação: (I) nos restaurantes, guardas na portaria, esculturas humanas representando o Estado ausente e, (II) nos hotéis, com a exigência prévia de cartões de crédito. Na expropriação imposta pelos poderes constituídos, todavia, a ameaça aos lesados é incontrolável porque o autor do ilícito detém o monopólio da força.

A aplicação das emendas expropriatórias ao longo de vários anos vai promover a expropriação de valores de centenas de bilhões de uma coletividade dissolvida no território nacional. Seus numerais que poderão aproximar-se de um milhão de pessoas da base da sociedade, incapazes de formar um grupo de pressão para manifestar-se politicamente na esfera pública, discriminada que foi entre todos os demais credores da União.

3. O ingresso dos bens litigiosos nos patrimônios dos exequentes por efeito da coisa julgada
Na maturidade do Estado de Direito, as constituições fizeram da coisa julgada uma garantia institucional para guarnecer os direitos individuais substantivos daqueles a quem a sentença favoreceu (artigo artigo 468 do CPC): "A sentença que julgar total ou parcialmente a lide tem força de lei nos limites da lide e das questões decididas". Ela confere à parte favorecida pela sentença, na medida fixada, a titularidade do bem litigioso e o poder de exigir a sua entrega, com uso da força quando necessário. Este poder de exigir o valor retido está expresso no § 6º do artigo 100 da Constituição:

§ 6º As dotações orçamentárias e os créditos abertos serão consignados diretamente ao Poder Judiciário, cabendo ao Presidente do Tribunal que proferir a decisão exequenda determinar o pagamento integral e autorizar, a requerimento do credor e exclusivamente para os casos de preterimento de seu direito de precedência ou de não alocação orçamentária do valor necessário à satisfação do seu débito, o sequestro da quantia respectiva. (Redação dada pela Emenda Constitucional nº 62, de 2009).

A garantia institucional da coisa julgada é consagrada pela Constituição no artigo 5º, que enuncia os direitos e garantias individuais, dispondo: "XXXVI – A lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada". A diferença da garantia institucional da coisa julgada, para a garantia do direito adquirido e a do ato jurídico perfeito, consiste em que a coisa julgada opera a transferência do bem litigiosa para a parte favorecida pela sentença, enquanto as outras duas garantias necessitam de ação judicial para se fazer valer.

Campos Batalha (1980) leciona que "a coisa julgada se considera unicamente a afirmação ou a negação de uma vontade do Estado, que 'garanta a alguém um determinado bem da vida no caso concreto'" e "a incontestabilidade do bem reconhecido ou negado"[3]. E Afonso da Silva (2008) assinala que "tutela-se a estabilidade dos casos julgados, para que o titular do direito aí reconhecido tenha a certeza jurídica de que ele ingressou definitivamente no seu patrimônio"[4].

A violação do direito de propriedade dos exequentes se evidencia pelo boqueio das faculdades de que conformam o conteúdo do direito, enunciadas no artigo 1228 do Código Civil que conceitua o conceitua: "Art. 1228 – O proprietário tem a faculdade, gozar e dispor da coisa, e o direito de reavê-la do poder de quem quer que injustamente a possua ou detenha."

As emendas estabelecem a faculdade de receber da União o pagamento no exercício seguinte, mas com redução mínima de 40%, ampliável pela negociação, e é facultada cessão para terceiros, com perda superior a 70%, que revendem próximo do preço de face. O recebimento integral dos créditos bloqueados ficou ostensivamente sem prazo fixado pelas emendas.

4. A criminalização dos atentados contra os direitos individuais e contra o cumprimento das decisões judiciais
O texto da Constituição de 88 institui garantias reforçadas para assegurar o efetivo exercício dos direitos individuais e sociais – que surge no seu preâmbulo como primeira missão do Estado democrático que será por ela instituído. Dessa missão, decorreram as garantias reforçadas para uma tutela jurisdicional efetiva visando assegurar o livre exercício do Poder Judiciário e o cumprimento das decisões judiciais, até mesmo a criminalização dos atos do Presidente que atentam contra estas garantias.

A supremacia da Constituição sobre os poderes constituídos é formalmente estabelecida no seu texto e assegurada em última instância pelo Tribunal Constitucional instituído pelo constituinte. O artigo 78 impõe a prestação do compromisso do presidente "de manter, defender e cumprir a Constituição". Igual compromisso prestam os congressistas. 

O artigo 85 criminaliza os atos do Presidente da República que atentam contra a Constituição, os direitos e garantias fundamentais e o cumprimento das decisões do Poder Judiciário instituindo os crimes de responsabilidade, que são regulados em lei: "Art. 85 :II – o livre exercício do Poder Legislativo, do Poder Judiciário, do Ministério Público e dos Poderes constitucionais das unidades da Federação".

A criminalização dos atos do governo que atentam contra o exercício dos direitos políticos, individuais e sociais, o livre exercício do Poder Judiciário e o cumprimento das decisões judiciais significa que eles mereceram do legislador constituinte a mais severa das garantias conferidas aos bens valorizados pelo direito. Trata-se de bens jurídicos de relevância máxima no Estado Constitucional de Direito.

Constitui-se crime de responsabilidade do presidente, sancionado com a perda do cargo, tais atentados contra a Constituição podem se converter em atos legítimos quando consumados com o apoio da maioria dos parlamentares?  A observância dos procedimentos formalmente previstos para as emendas na Constituição seria suficiente para legitimá-las, mesmo com a conspirata pública e notória promovida pelo Executivo com a distribuição de vantagens espúrias a parlamentares, instaurando um vistoso sistema de botim, camuflado pelo dito orçamento secreto?

5. Os fins anunciados — cobertura da renda básica[5] e custeio da seguridade social — não poderiam justificar o uso de Emendas atentatórias contra a Constituição, que objetivamente promovem a apropriação indébita.
Para a obtenção de receita necessária ao pagamento do benefício da renda básica e o custeio da seguridade social – que são despesas obrigatórias e permanentes — a Constituição confere competência à União para imposições tributárias e, em situações emergenciais, o empréstimo compulsório. Por outro lado, os valores atribuídos aos titulares dos precatórios por decisão judicial que fez coisa julgada são merecedores de tutela penal e da proteção de cláusulas pétreas. Observe-se que a Exposição de Motivos da PEC 23, que deu origem às Emendas 113 e 114 de 2021, recomenda a emenda proposta pela necessidade de abertura de espaço fiscal no orçamento de 2022, afirmando que: A inclusão do montante necessário a honra das sentenças judiciais ocupara espaço relevante que poderia ser utilizado para realização de relevantes investimentos, bem como aperfeiçoamentos de programas e ações do Governo Federal e provimento de bens e serviços públicos.

Trata-se, evidentemente, de funções normais do Estado, cujo custeio é assegurado com a competência que é atribuído ao ente federado para a imposição de tributos permanentes ou empréstimos compulsórios em situações emergenciais.

 Assim sendo, a União podia, exemplificativamente, tributar os dividendos isentos desde a década de noventa, um privilégio estamental que só sobrevive no Brasil e em mais três ou quatro países do quinto mundo. Caberia, também, o empréstimo compulsório, que incidiria sobre uma base muito mais ampla, em vez de recair sobre o universo dos seus credores por precatórios, recortados na base da sociedade.

Teriam os poderes constituídos discricionariedade para rejeitar as fontes de receita previstas na Constituição, optando por uma "‘expropriação criminosa" dos bens de milhares de pessoas pobres, situadas na base da sociedade?
Esta opção sinistra era habitualmente praticada no Estado Absoluto pelos Monarcas que podiam fazer voos rasantes para assaltar qualquer pessoa ou grupo social, menos os nobres, no território do Reino. No Estado de Direito, que é um Estado de competências definidas na Constituição, não subsiste tal discricionariedade. E o controle dos abusos destas competências está assegurado pelo Tribunal Constitucional, concebido justamente para controlar os excessos das maiorias contingentes.

6. A autoridade administrativa tem o poder de rejeitar as Emendas   inconstitucionais, já declaradas pelo Tribunal Constitucional
É incontroverso na doutrina que a Administração Pública não pode ordinariamente rejeitar a aplicação de leis (ou atos legislativos como as emendas à Constituição), que acredita serem inconstitucionais, em obediência ao princípio da separação e independência dos poderes, que implica na divisão de funções. Na nossa Constituição, o princípio da legalidade da administração está no caput do artigo 37 e é interpretado como um mandato de obediência às leis oriundas do Parlamento, seja cumprindo o que ela determina, abstendo-se de fazer o que ela proíbe ou atuando em conformidade com ela.

No entanto, como observa Nascimento Gomes (2002), a rejeição de leis inconstitucionais pela Administração será extraordinariamente legítima: "[…] estando defronte de uma lei que ofendesse grosseira e literalmente o núcleo essencial de um determinado direito fundamental", porquanto isto "equivaleria dizer afrontar o direito, maculá-lo em seu íntimo". A jurista lusitana encontra fundamento na Constituição Brasileira no § 1º do artigo 5º: "§1º – As normas definidoras dos direitos e garantias fundamentais têm aplicação imediata". "Em seu magistério:[a] qualificação do poder de rejeição de leis inconstitucionais pela autoridade administrativa como extraordinariamente legítimo pode se compatibilizar, simultaneamente, com o conteúdo do princípio da separação dos poderes hodiernamente constante da CRP e da CF e com a excepcionalidade da situação na qual deverá ser exercido este poder."[6]

E logo trata de formular algumas hipóteses concretas: 1ª Hipótese – Leis que já tenham sido objeto de decisão de inconstitucionalidade por parte da Corte Constitucional (Tribunal Constitucional ou Supremo Tribunal Federal) oriunda de uma fiscalização preventiva de constitucionalidade ou de uma fiscalização concreta, valendo a jurisprudência constitucional como fonte de Direito Administrativo e, via de consequência, da juridicidade administrativa.  […] 3ª Hipótese – Leis inconstitucionais violadoras da essência dos Direitos, Liberdade e Garantias. Isto porque os preceitos constitucionais que consagram os direitos, liberdades e garantias (art. 18/1, da CRP, e art. 5º, parágrafo único da CF) têm aplicabilidade imediata, vinculando diretamente a Administração Pública. Por causa deste regime jurídico reforçado, tal hipótese é aquela que tem sido correntemente referenciada pela doutrina, designadamente pela doutrina portuguesa.   

É notório que emendas que suspendem o pagamento de precatórios — que são atos legislativos emanados do Parlamento — têm sido, muitas vezes, declaradas inconstitucionais. No caso concreto, elas estão formalmente bloqueadas pelas cláusulas pétreas, inscritas no § 4º do artigo 60.

O STF já decidiu duas vezes, declarando a inconstitucionalidade de emendas que concediam mais prazo para pagamento de precatórios devidos por estados e municípios, que haviam deixado de pagar por vários anos precatórios regularmente habilitados. Esclarecedor o voto da ministra Rosa Weber, relatora na Adin 4.357: "Pode o constituinte reformador interferir na efetividade da jurisdição, nesse poder de realizar o Direito com plena eficácia vinculativa em lides já solucionadas por decisões com trânsito em julgado, ao abrigo, portanto, da autoridade da coisa julgada? Para mim, com todas as vênias, a resposta é negativa. Compartilho da compreensão dos que conferem exegese ampla às cláusulas pétreas do art. 60, § 4º, do nosso texto magno. Entendo que também o poder constituinte derivado ou reformador – e não apenas o legislador ordinário — está submetido ao postulado da irretroatividade consagrado no art. 5º, XXXVI —  a lei não prejudicará o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e a coisa julgada. Assim, a meu juízo, a lei a que o constituinte originário veda prejudique o ato jurídico perfeito, o direito adquirido e a coisa julgada não é apenas a norma infraconstitucional, mas também a emenda constitucional. E interpreto a dicção do art. 60, § 4º, da CF — não será objeto de deliberação proposta de emenda constitucional tendente a abolir, os direitos e garantias individuais —, no sentido de que também se encontram vedadas restrições equivalentes a uma efetiva supressão. Ora, o acesso à Justiça, a efetividade da jurisdição, a efetividade do processo como instrumento de tutela de direitos, a irretroatividade da lei frente ao ato jurídico perfeito e à coisa julgada estão contemplados em nossa Constituição como garantias individuais, garantias fundamentais, e nessa medida foram erigidos à condição de cláusulas pétreas no texto constitucional. Todos esses postulados, com a devida vênia, foram atropelados pela Emenda Constitucional 62, em vários de seus ditames, como ontem já se decidiu, e, a meu juízo, da mesma inconstitucionalidade material se ressente o parágrafo quinze do artigo 100 da CF, com a redação da Emenda 62. Subscrevo na íntegra os fundamentos do eminente Relator, Ministro Ayres Britto, quando conclui que os dois modelos de regime especial para pagamento de precatórios instituídos no ADCT, art. 97, afrontam a ideia central de Estado Democrático de Direito, violam as garantias do livre e eficaz acesso ao Poder Judiciário, 5º, XXXV, do devido processo legal, 5º, LIV, e da razoável duração do processo, 5º, LXXVIII, e afrontam a autoridade das decisões judiciais, ao prolongar por mais de quinze anos o cumprimento de sentenças judiciais com trânsito em julgado, já prorrogado por um decênio pela Emenda Constitucional 30, de 2000,"

Em outra decisão, oriunda do controle concreto de constitucionalidade, o relator Celso de Mello demonstra ser incontornável para os poderes públicos o cumprimento das decisões judiciais transitadas em julgado. É por essa razão que o Supremo Tribunal Federal, por mais de uma vez, já fez consignar advertência que põe em destaque a essencialidade do postulado da segurança jurídica e a consequente imprescindibilidade de amparo e tutela das relações jurídicas definidas por decisão transitada em julgado:

O CUMPRIMENTO DAS DECISÕES JUDICIAIS IRRECORRÍVEIS IMPÕE-SE AO PODER PÚBLICO COMO OBRIGAÇÃO CONSTITUCIONAL INDERROGÁVEL.
A exigência de respeito incondicional às decisões judiciais transitadas em julgado traduz imposição constitucional justificada pelo princípio da separação de poderes e fundada nos postulados que informam, em nosso sistema jurídico, a própria concepção de Estado Democrático de Direito.
O dever de cumprir as decisões emanadas do Poder Judiciário, notadamente nos casos em que a condenação judicial tem por destinatário o próprio Poder Público, muito mais do que simples incumbência de ordem processual, representa uma incontornável obrigação institucional a que não se pode subtrair o aparelho de Estado, sob pena de grave comprometimento dos princípios consagrados no texto da Constituição da República.
A desobediência a ordem ou a decisão judicial pode gerar, em nosso sistema jurídico, gravíssimas consequências, quer no plano penal, quer no âmbito político-administrativo (possibilidade de ‘impeachment’), quer, ainda, na esfera institucional (decretabilidade de intervenção federal nos Estados-membros ou em Municípios situados em Território Federal, ou de intervenção estadual nos Municípios). (RTJ 167/6-7, Rel. Min. CELSO DE MELLO, Pleno).

Qualquer decisão, em qualquer processo, de qualquer natureza, que julgar a constitucionalidade das PECs 113 e 114/21 e que, por amor à dialética, as julgaram constitucionais — o que evidentemente não o são — deve, na sua modulação, ressalvar diretamente os precatórios expedidos e devidamente habilitados, cujo inadimplemento não é um mero "calote": é um verdadeiro assalto ao Sistema de Justiça e à Constituição.


[1] BELLUZZO, Luiz Gonzaga. A bomba da dívida. Jornal O Globo. Opinião. Rio de Janeiro, 24 jan.2023, p. 2. Disponível em: https://oglobo.globo.com/opiniao/artigos/coluna/2023/01/a-bomba-da-divida-sobre-o-brasil.ghtml

[2] Art. 176. Tomar refeição em restaurante, alojar-se em hotel ou utilizar-se de meio de transporte, sem dispor de recursos para efetuar o pagamento:

Pena: detenção, de 15 dias a 2 meses, ou multa.

*A consolidação da Emenda dos Precatórios, a 114 de 2001, pela Emenda da Transição nº 126, de dezembro de 2022. A PEC da TRANSIÇÃO teve acréscimos no Congresso que consolidaram o teto de gastos com precatórios positivado pela Emenda 114 no artigo 107-A, acrescido nas disposições transitórias,  norma que destinou o espaço fiscal aberto  “ao programa previsto no parágrafo único do art. 6º e à seguridade social, nos termos do art. 194, ambos da Constituição Federal”. E, nos incisos, fixou as formas de cálculo ano a ano. Com efeito, o artigo 2º da EMENDA da TRANSIÇÃO 126, repetiu o artigo 107-A do ADCT, que fora introduzido pela Emenda 114, em dezembro de 2021: Art. 107-A. Até o fim de 2026, fica estabelecido, para cada exercício financeiro, limite para alocação na proposta orçamentária das despesas com pagamentos em virtude de sentença judiciária de que trata o art. 100 da Constituição Federal, equivalente ao valor da despesa paga no exercício de 2016, incluídos os restos a pagar pagos, corrigido, para o exercício de 2017, em 7,2% (sete inteiros e dois décimos por cento) e, para os exercícios posteriores, pela variação do Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA), publicado pela Fundação Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, ou de outro índice que vier a substituí-lo, apurado no exercício anterior a que se refere a lei orçamentária, devendo o espaço fiscal decorrente da diferença entre o valor dos precatórios expedidos e o respectivo limite ser destinado ao programa previsto no parágrafo único do art. 6º e à seguridade social, nos termos do art. 194, ambos da Constituição Federal […].

A EMENDA DE TRANSIÇÃO 126 repetiu também a norma posta pela Emenda 114 no parágrafo único do artigo 6º da Constituição, instituinte da renda básica obrigatória: “Parágrafo único. Todo brasileiro em situação de vulnerabilidade social terá direito a uma renda básica familiar, garantida pelo poder público em programa permanente de transferência de renda, cujas normas e requisitos de acesso serão determinados em lei, observada a legislação fiscal e orçamentária."

[3] CAMPOS BATALHA, Wilson. Direito Intertemporal. Rio de Janeiro: Forense, 1980, p.197.

[4] AFONSO DA SILVA, José. Comentário Contextual à Constituição. São Paulo: Malheiros, 2008, p.135.

[5] Dito benefício corresponde à Bolsa-família instituída no primeiro governo Lula, transformada no último ano do Bolsonaro (2022) em Auxílio Brasil por meio de emenda que colocou a seu custeio fora do teto geral de gastos da União, instituído pela Emenda-95. E, em dezembro de 2022, foi aprovada a PEC da Transição, convertida na Emenda 126, voltando a chamar o benefício de Bolsa Família, colocado o seu custeio fora do teto geral de gastos da EC-95, teto que será substituído por outra âncora fiscal por proposta de lei complementar apresentada pelo atual governo no ano corrente de 2023.

[6] NASCIMENTO GOMES, Ana Claudia. O poder de rejeição de leis inconstitucionais pela Autoridade Administrativa no Direito português e no Direito brasileiro. Porto Alegre: Sérgio Antônio Fabris, 2002, p. 117 e seguintes.

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