Opinião

CVM julga conflito de interesses formal e de interesses material

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2 de setembro de 2022, 21h24

Agosto coincidiu com uma decisão  ou ao menos parte de uma  que poderá acarretar em mudanças significativas para o mercado de capitais. Em 16/8/2022, o diretor da Comissão de Valores Mobiliários (CVM) Alexandre Costa Rangel pautou dois processos administrativos sancionadores (PAS) que versam sobre o conflito de interesses, incendiando o sempre aquecido debate sobre qual afeição do instituto deve ser adotada: o conflito de interesses formal ou o conflito de interesses material.

Contudo, qual é a diferença entre o conflito de interesses formal e o conflito de interesses material? Porque esse posicionamento da CVM possui tamanha relevância? Em primeiro lugar, cabe-se destacar quais normas estão em discussão. Os dois principais dispositivos que lidam com o tema são os artigos 115 e 156 da Lei nº 6.404/76 (LSA). Em síntese, os dispositivos buscam evitar que acionistas e administradores, respectivamente, deliberam quando possuem um interesse conflitante com a sociedade.

Sobre o tema, Nelson Eizirik nos explica que existe conflito de interesses quando o sujeito "é portador, diante de determinada deliberação, de um dúplice interesse: o social e o seu particular, sendo esta duplicidade de tal monta que um dos interesses não pode ser satisfeito sem sacrificar o outro" [1].

Quanto a distinção entre o conflito formal e material, essa reside, principalmente, no momento que a análise acerca da existência do conflito é feita. No caso do conflito de interesses material a averiguação é realizada a posteriori, ou seja, de forma casuística e após a deliberação ocorrer. Portanto, a deliberação não é nula, podendo ser anulada caso seja comprovado que determinado acionista ou administrador, ao realizar uma deliberação, sacrificou o interesse social em virtude de seu interesse pessoal, já que, nas palavras de Luiz Antonio Campos, "a invalidade apenas terá lugar se comprovado o dano" [2].

Essa é a posição adotada pela imensa maioria dos doutrinadores. Além de Luiz Antonio Campos e Nelson Eizirik, Carvalho de Mendonça, Miranda Valverde, Pontes de Miranda, Ruy Carneiro Guimarães, Cunha Peixoto, Eduardo de Carvalho e Aloysio Lopes Pontes pleiteiam pela análise a posteriori do conflito de interesses. "O principal autor que defende a posição minoritária do conflito formal é Modesto Carvalhosa" [3].

Contudo, mesmo possuindo uma ampla rejeição da doutrina, historicamente, a CVM vem adotando a interpretação formal do conflito de interesses. Essa interpretação impõe uma vedação absoluta à deliberação "não dependendo do mérito da decisão ou das circunstâncias de fato em que foi adotado. Essa interpretação acarreta na nulidade da deliberação, independentemente de ela ter ou não causado prejuízo a sociedade" [4]. Visto isso, a análise acerca da situação conflituosa é feita a priori, ou seja, antes mesmo do indivíduo poder deliberar acerca de determinada matéria.

Até o começo do século 21 a CVM ainda entendia o conflito de interesses como um conflito de natureza material. Porém, durante a última década, a comissão continuou, de forma reiterada, sancionando o entendimento de que o conflito de interesses deve ser apenas interpretado em sua afeição formal. Alguns casos que ressaltam esse posicionamento são o PAS CVM nº 19957.010833/2018-45, o PAS CVM Nº 12/01 e o Processo CVM RJ 2004/5494.

Tanto que, em seu voto, no PAS CVM nº 19957.010833/2018-45, a Diretora-Relatora Flávia Perlingeiro determinou que "independentemente do exame de mérito da operação, reforçando o posicionamento historicamente adotado pela CVM, de que o conflito de interesses de que trata o artigo 156, caput, da LSA, é de natureza formal e, portanto, o impedimento do administrador deve ser verificado a priori". Nesse mesmo PAS, o diretor Alexandre Costa Rangel, que teve seu voto tido como vencido, divergiu da relatora, pleiteando pela interpretação material do conflito de interesses.

Aparenta-se que a CVM está prestes mudar esse posicionamento histórico, pois, em 16/8/2022, Costa Rangel pautou o PAS CVM 19957.004392/2020-67 e o PAS CVM 19957.003175/2020-50. Utilizando como fundamento a interpretação sistemática da LSA, o princípio majoritário e a presunção da boa-fé, o diretor votou pela condenação dos acusados no PAS CVM 19957.004392/2020-67, afirmando que, nos casos referentes ao artigo 115,§1º, III e IV A interpretação da lei "corrobora a conclusão de que deve haver, necessariamente, uma avaliação da essência e substância do benefício particular e dos interesses do acionista em conflito com os da companhia para que se avalie a regularidade do voto proferido na assembleia geral", portanto a "violação do dispositivo somente pode ser adequadamente investigada ex post".

Os fundamentos utilizados no PAS CVM 19957.003175/2020-50 foram os mesmos, mas, nesse PAS, o diretor votou pela absolvição dos acusados. Ambos os votos do relator foram acompanhados pelo presidente da CVM, João Pedro Nascimento, e pelo diretor Otto Lobo. A diretora Flávia Perlingeiro pediu visto do processo, enquanto o diretor João Accioly já sinalizou que irá acompanhar os demais diretores em favor do conflito de interesses material.

Caso esse julgamento seja confirmado, isso irá finalmente encerrar  ou ao menos silenciar por um tempo  um longo e árduo debate. Seria esse um dos primeiros atos da CVM que parece estar cada vez mais liberal. Aguardaremos para ver, mas os primeiros sinais já apontam nessa direção.

[1] EIZERIK, Nelson; GAAL, Ariádna; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus. Mercado de Capitais e Regime Jurídico. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2008.p.468.

[2] CAMPOS, Luiz Antonio. Deveres e Responsabilidades. In: BULHÕES PEDREIRA, José Luiz; LAMY FILHO, Alfredo (Org). Direitos das Companhias. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2009, 1ª edição. Pp. 1160. 

[3] EMARTINS, Fran. Comentários à Lei das Sociedades Anônimas. 4ª edição. Rio de Janeiro: Editora Forense. 2010. pp.513 e 514

[4] EIZERIK, Nelson; GAAL, Ariádna; PARENTE, Flávia; HENRIQUES, Marcus. Mercado de Capitais e Regime Jurídico. 3ª edição revista e ampliada. Rio de Janeiro: Editora Renovar, 2008.p.470.

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