Opinião

A vagueza e a ambiguidade da norma jurídica na perspectiva de Ralf Poscher

Autor

  • Otto Manoel Rufino Pereira

    é acadêmico do curso de Direito em Recife/PE pesquisador de Iniciação Científica e autor de textos nas áreas de epistemologia jurídica Filosofia do Direito Estudos Clássicos entre outros temas.

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22 de dezembro de 2023, 20h49

A ciência jurídica, desde muito, se depara com uma problemática constante, que influencia no progresso metodológico-hermenêutico do Direito: trata-se da indeterminação linguística ocasionada pela vagueza e pela ambiguidade da norma jurídica. As faculdades e os tribunais buscam, a cada pesquisa e julgamento, uma resposta contra esta preocupação, que é igual a todos do ambiente jurídico.

Para alguns juristas, este é o tópico central da hermenêutica jurídica enquanto disciplina. Herbert L. A. Hart assemelha-se a este pensamento, lecionando que os estudos hermenêuticos em torno da incerteza linguística da norma são “o pão de cada dia das faculdades de Direito” (1958, p. 615).  Ainda, observa-se a relevância destes estudos na afirmação de Ralf Poscher que “não seriam necessárias instituições com estruturas altamente desenvolvidas se a lei contivesse apenas regras claras com deveres e direitos exatos para cada caso” (2016, p. 273).

Na visão de Poscher, dentre estes institutos, a ambiguidade é o fenômeno mais acessível em estudos de linguagem. Na explicação do autor, a ambiguidade possui “significados múltiplos, como no caso do homônimo bank (banco), o qual pode significar tanto river bank (margem de rio) quanto Comercial bank (banco comercial)” (2016, p. 273).

Em outras palavras, a ambiguidade, em um contexto geral, pode ser constatada quando da presença de uma expressão que dá margem a interpretações distintas da mesma passagem textual, com uma escrita que apresenta mais de um entendimento. Sobre esta questão, Ralf Poscher diz que:

Normalmente conceitos que contêm expressões ambíguas são tão distintos que o contexto proporciona a desambiguação necessária. Se a lei determina que um depósito seja feito em um banco, é muito improvável supor que ela requeira que o dinheiro seja jogado em um rio. No Direito, é mais frequente deparar-se com problemas envolvendo a ambiguidade ou anfibolia sintática. Por exemplo, um código da Califórnia que trata da demissão de professores a permitia em casos de “condenação por um delito grave ou por qualquer crime envolvendo depravação moral”. (2016, p. 273).

Adentrando na compreensão conceitual de vagueza normativa, é extremamente necessário explicar que toda expressão vaga possui “casos limítrofes” em sua estrutura semântica, estes que “nos quais simplesmente não se sabe se a expressão é aplicável ou não, e a incerteza não é causada por uma ignorância dos fatos” (GRICE, 1989, p. 177).

Assim, a vagueza é ocasionada por uma incerteza no ato de aplicação, por conta de um vício hermenêutico no momento da interpretação do texto, [1] juntamente com a observação do referente. Poscher expõe um exemplo didático, ao mostrar que “não temos problemas em classificar pedras, madeira, aço, etc. como objetos sólidos; apenas casos como o pudim nos causam dúvida” (2016, p. 273).

Neste sentido, compreende-se que a ambiguidade se manifestará em situações de múltiplos significados, enquanto que a vagueza se relaciona com os casos limítrofes, ou seja, uma dificuldade na integralização do significado ao seu significante. Ainda nota-se que a ambiguidade e a vagueza são termos distintos de generalidade, mesmo sabendo que “tanto para a ambiguidade quanto a vagueza, a distinção da generalidade pode ficar obscurecida” (POSCHER, 2016, p. 274).

A generalidade é um elemento que verifica o grau de expressões gerais em detrimento de sua aplicação em eventos. Ademais, é interessantíssima a preocupação da ciência constitucional germânica com a diferenciação doutrinária de vagueza e generalidade. Objetivamente, Ralf Poscher informa que “a ambiguidade pode ser vaga em sua relação com a generalidade. Pode haver casos limítrofes nos quais é difícil dizer se um conceito geral compreende certas nuances de significado ou se uma palavra denota conceitos diferentes” (2016, p. 274).

Continuando com a exposição quanto à definição de vagueza e ambiguidade na obra de Ralf Poscher, segue-se, neste próximo ponto de discussão, para a apreensão dos elementos técnicos que diferenciam esses fenômenos.

O jurista alemão, preocupado com a sistematização da sua proposta, elenca três questões técnicas que diferenciam a vagueza da ambiguidade, as quais são nomeadas de “individualidades técnicas da vagueza e da ambiguidade”. A primeira individualidade técnica diz respeito ao objeto linguístico propriamente dito (nesta definição, Poscher é altamente influenciado por R. Sorense [2]). Aqui, a ambiguidade caracteriza-se “como uma questão que se refere a sentenças e palavras — como pré-proposicional […]” enquanto que a vagueza é entendida “[…] como uma questão que se refere a proposições e conceitos como o significado de palavras e sentenças” (POSCHER, 2016, p. 273).

A segunda questão técnica remete-se a uma peculiaridade exclusiva da vagueza, que é o caráter reflexivo. Na visão de Poscher, a ambiguidade não consegue gerar reflexões, pois esta não apresenta caso(s) limítrofe(s). Para o jurista, as vaguezas “têm casos limítrofes e casos limítrofes apresentam questões de alta controvérsia porque pode ser duvidoso se um caso ainda constitui um caso limítrofe” (POSCHER, 2016, p. 274).

Por fim, como terceira e última individualidade técnica, tem-se uma controvérsia envolvendo os interlocutores destes fenômenos. Na constatação do autor, a ambiguidade pode ser resolvida através do contexto vivenciado, contudo este interlocutor não tem poder ou autoridade sobre os casos limítrofes, tendo em vista que, “por definição, interlocutores competentes não sabem se caem na extensão de uma expressão” [3] (POSCHER, 2016, p. 274).

Neste sentido, fora possível compreender as distinções técnicas entre vagueza e ambiguidade a partir de suas manifestações na norma jurídica. Seguindo esta perspectiva, mostra-se, com clareza, a divisão que abarca os limites de significação de cada um dos fenômenos, colaborando na identificação e no estudo do problema.

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Bibliografia
GRICE, H.P. Studies in the way of words. Cambridge, Harvard University Press, 1989.

HART, H.L.A. Positivism and the Separation of Law and Morals. Harvard Law Review, 71:593-629, 1958.

POSCHER, Ralf. Ambiguidade e vagueza na interpretação jurídica. Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito (Rechtd), São Leopoldo, v. 8, n. 3, p. 272-285, 2016.

SORENSEN, R. Vagueness Has No Function in Law. Legal Theory, 2001.

STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de Hermenêutica: 50 verbetes fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. 2. ed. Belo Horizonte: Letramento; Casa do Direito, 2020.

[1] Aqui, segue-se a terminologia gadameriana ao falar de “texto”, tendo em vista que, na visão de Gadamer, o texto deve ser entendido como quaisquer eventos: objetos, atos, etc. são textos (STRECK, 2020, p. 21).

[2] Ralf Poscher referencia-se na obra Vagueness Has No Function in Law (SORENSEN, R. 2001. Vagueness Has No Function in Law. Legal Theory.).

[3] Novamente, Poscher é intensamente influenciado pelas obras de Sorensen ao desenvolver este terceiro requisito.

Autores

  • é acadêmico do curso de Direito em Recife/PE, pesquisador de Iniciação Científica e autor de textos nas áreas de epistemologia jurídica, Filosofia do Direito, Estudos Clássicos, entre outros temas.

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