Embargos Culturais

Biografia Não Autorizada do Direito, de Fábio Ulhoa Coelho

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP e advogado consultor e parecerista em Brasília ex-consultor-geral da União e ex-procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

17 de dezembro de 2023, 8h00

Biografias autorizadas são bem comportadas, enfatizam as qualidades do biografado. Protagonizam feitos atribuídos aos heróis e aos puros. Uma chatice. São hagiografias: contam a vida de santos. E não somos (e nem queremos ser) santos. Biografias não autorizadas, por outro lado, enfrentam a vida real, são desconcertantes, e revelam uma nada perversa relação do biógrafo com o biografado. É o mundo do “cala boca já morreu”, mote da decisão da ministra Cármen Lúcia, nesse tema crucial.

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É o que pode explicar nosso fascínio para com os livros de Ruy Castro, Lira Neto, Jorge Caldeira e alguns outros. O Mané Garrincha, na pena de Ruy Castro, saiu mais humano, mais real, dribla até melhor. Procurem saber os motivos pelos quais o escritor mineiro radicado no Rio de Janeiro escreveu sobre nosso inesquecível ponta. Uma lição de vida. Todo mundo tem um problema assim na família.

Biografias autorizadas do Direito estão contidas numa lista interminável de livros de Introdução ao Estudo do Direito, de Teoria Geral do Estado e de História do Direito. Outra chatice. Descrevem uma ordem perfeita (num mundo imperfeito), qualificando o Direito como uma única opção para a vida em sociedade. O Direito só estaria onde há sociedade, e esse mantra é o abre-te-sésamo justificativo da disciplina. Essa carochinha é completada com exposições galantes sobre contrato social ou, em versão mais próxima de nosso tempo, com ilações sobre supostos véus de ignorância estrategicamente colocados em posições ditas originais. Rawls aqui e Rousseau acolá.

O Direito, no entanto, é apenas uma forma de administração e tratamento de conflitos e não um instrumento definitivo de pacificação. Não é uma ordem estabilizadora triunfante. Parece-me que é esta uma das lições que se extrai de Biografia Não Autorizada do Direito, fascinante livro de Fábio Ulhoa Coelho. O adjetivo é do prefácio do ministro Barroso. Todo leitor atencioso (e eu sou um deles) subscreverá a apreciação, que é absolutamente realista, em forma de elogio.

O autor problematiza o presenteísmo e o anacronismo, que são formas de pensamento histórico que contaminam a narrativa da trajetória jurídica. Um pecado original historiográfico. Biografias autorizadas do Direito sugerem que Estados, juízes e leis sempre existiram, ainda que em formas ligeiramente distintas das formas presentes. Um engodo, que Fábio desconstrói com fortíssima base argumentativa: é equivocado afirmarmos que o Direito sempre foi assim.

O autor explica que o Estado é um fato do século 16, que leis (como conhecemos hoje) são concebidas e formuladas no século 19 e que o poder dos juízes é circunstância do século 20. Ilustra o poder dos juízes com os dois casos Lebach (o primeiro deles é de 1972, ilustra o tema do direito ao esquecimento). Explica a concepção de lei com a construção, o escopo e os propósitos do Código de Napoleão (cuja formulação não foi limitada ou pautada por nenhuma Constituição). O Código do pequeno caporal é de algum modo uma resposta aos desmandos da turma do Robespierre. Nesse passo, o autor desmonta a bomba relógio conceitual que os aficionados com a carnificina da guilhotina insistem em manter ligada, pronta para justificar um avanço de uma agenda de direitos que suspeitamos que nada cresceu no meio de tanto sangue.

O livro de Fábio Ulhoa Coelho é radical. Assusta. Mas convence, comove até. O autor demonstra o equívoco que há na (falsa) atribuição de uma teoria dos três poderes ao Barão de Montesquieu. Conta exatamente a origem da expressão “ainda há juízes em Berlim”, demonstrando que referência recorrente a essa passagem é artifício de retórica (assunto que conhece muito; é o autor da sublime introdução ao livro de Chaim Perelmann na tradução brasileira).

Desmonta uma imaginária antinomia (inexistente) entre o common law e o direito da tradição continental. A diferença é de forma, e não de fundo. Ao tratar do problema da colisão de princípios e da antinomia de regras, explica, com destreza pedagógica, a diferença entre esses dois conceitos.

Advogado militante na área de direito privado, Fábio compreende e explica que parte de problemas forenses são tentativas de tradução de intrincadas questões econômicas (que ele chama de nuances) em termos jurídicos. Lembro-me, na minha trajetória na burocracia, de uma resolução da Anvisa que tratava sobre rótulos de alimentos com gorduras saturadas. Era na verdade um problema de custos de aquiescência. As empresas deveriam mudar os rótulos. Na liça jurídica a discussão foi dirigida para o tema da liberdade de expressão. Fábio enfatiza que um problema jurídico tratado não significa um conflito terminado.

Biografia Não Autorizada do Direito é uma aula de História e de Antropologia Jurídica. O autor indica momentos nos quais os dissensos são tratados de formas distintas: a lei do mais forte; depois, a lei do talião, mais tarde, a lei das 12 tábuas e, mais tarde ainda, o Código de Napoleão. Trata-se de uma exposição inusitada de inegáveis saltos civilizatórios (expressão do autor).

A discussão sobre o Código de Hamurábi é encantadora, alavancando complexidades nesse texto antigo, que eu nunca suspeitei. Fábio é tão diferente, que inclusive indica onde se encontra essa pedra, que a tradição teima equivocadamente de chamar de código: Paris, Museu do Louvre, Ala de Richelieu, sala 220. Um lugar que todo dono de anel de rubi deve chorar, ou fingir que está chorando. No livro há também excertos interessantíssimos de Antropologia Jurídica. O tema da escassez e do conflito é exemplificado com a trajetória dos Rapanui, habitantes da ilha de Páscoa.

Há no livro uma história interna do Direito, a propósito da explicação do tema da responsabilidade. A princípio, indicativa de uma retaliação (em termos, dependendo da classe social, no caso da Mesopotâmia). Mais tarde, responsabilidade subjetiva (aquiliana), tendo como pressuposto a comprovação da culpa. Posteriormente, a responsabilidade objetiva, como alternativa para enfrentamento de imputações complexas, a exemplo dos chamados acidentes de consumo e das indenizações por perda de uma chance.

O tema do Direito Romano é explicitado de forma também desconcertante. Era um mundo distinto do nosso. Segundo Fábio, as leis eram meros registros de decisões e soluções do passado. Para o autor, esse paradigma foi quebrado com o esforço normativo de Napoleão. A expressão “lei” como hoje a conhecemos, não faz nenhum sentido até então.

O raciocínio é ilustrado também com a problematização de várias questões contemporâneas. O autor trata da questão da vaquejada (ADI 4.983 e Emenda Constitucional 96), entre outros temas atuais. Defende que a desilusão com a globalização deve ser enfrentada, precisamente, com mais globalização.

O livro é divido em três partes: trajetória, salvaguardas e arremates. A linguagem (como em todos dos livros de Fábio) é direta e precisa. A influência de Tércio Sampaio Ferraz Jr. é inclusive reconhecida na seção sobre as fontes. Há uma deliciosa referência a uma cerimônia ocorrida da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, cujos protagonistas em algum momento (final) são identificados.

Biografia Não Autorizada do Direito, de Fábio Ulhoa Coelho, é um livro definitivo. É um livro que acerta a rota de iniciados. É um livro que aponta o caminho para iniciantes. O autor confessa, no fim, que num mundo de pessoas razoáveis seria arquiteto ou biólogo. Em qualquer mundo, penso, Fábio é um esteta, um mestre da palavra. Enxerga, com absoluta clareza, o que teimamos não ver. O autor é uma expressão não metafísica dos mitos platônicos da Caverna e do Er, que explica nesse livro, com graça, autoridade, cultura e simplicidade, que lhes são reconhecidamente peculiares.

 

 

 

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