Opinião

Decreto inconstitucional do RJ institui cobrança do adicional de 2% para FECP

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12 de dezembro de 2023, 15h19

O governador do Rio de Janeiro editou, em agosto deste ano, o Decreto nº 48.664/2023, que instituiu a cobrança do adicional de 2% ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação (ICMS) para ser destinada ao Fundo Estadual de Combate à Pobreza e às Desigualdades Sociais (FECP). A cobrança começa a valer a partir de 1º de janeiro de 2024 para diversas atividades que não podem ser consideradas supérfluas, ao contrário do que prevê a Constituição de 1988 (CF88).

Criado em 2000 por meio de emenda constitucional (EC), que acrescentou novos dispositivos ao Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição, o FECP corresponde a uma alíquota adicional do ICMS que estados, Distrito Federal e municípios devem instituir para serem geridos por entidades que contem com a participação da sociedade civil.

Entre os dispositivos acrescentados ao ADCT, destaca-se a determinação de que o adicional de até 2% seja cobrado sobre produtos e serviços supérfluos, conforme prevê § 1º do artigo 82. Além disso, destaca-se o artigo 83 do ADCT, também acrescentado pela emenda constitucional que criou o FECP e que dispõe que: “Lei federal definirá os produtos e serviços supérfluos a que se referem os arts. 80, II, e 82, § 2º”.

O decreto do Rio de Janeiro, no entanto, prevê que, entre as atividades sujeitas à cobrança, estão: comércio varejista de caráter eventual ou provisório em épocas festivas; fornecimento de alimentação; refino de sal para alimentação; e as demais relacionadas no Livro V do Regulamento do ICMS (prestação de serviço de transporte rodoviário intermunicipal de passageiro; prestação de serviço de transporte aquaviário de passageiro, carga ou veículo; e comércio varejista de produtos de padaria, laticínio, doces, balas e semelhantes).

Numa breve leitura desse decreto, verifica-se que o estado do Rio de Janeiro exigirá o adicional ao FECP sobre operações que não podem ser consideradas supérfluas, tal como determinada o § 1º do artigo 82 do ADCT.

O Supremo Tribunal Federal (STF) já se manifestou por diversas vezes no sentido da possibilidade de cobrança do FECP mesmo antes da edição de lei complementar federal que estabelecerá quais são os bens supérfluos, caso atendidos as demais disposições das EC nº 33/2001 e 42/2003.

Entretanto, ainda que inexista a lei regulamentadora, há bens e serviços notoriamente essenciais que, de acordo com as disposições do ADCT, não podem ser tributados pelo FECP.

No estado do Rio de Janeiro, o FECP foi instituído pela Lei Estadual nº 4.056/2002 e atualmente é disciplinado pela Lei Complementar (LC) nº 210/2023, que define as regras de aplicação dos recursos do Fundo com objetivo de viabilizar iniciativas que beneficiem pessoas e grupos em situação de vulnerabilidade social. Dentre as iniciativas, destaca-se o combate à fome e à desnutrição, moradia digna, transporte acessível, educação e saúde.

É possível analisar o conceito de produtos e serviços supérfluos sob a perspectiva da seletividade do ICMS, prevista no artigo 155, § 2º, inciso III, da CF88, o qual dispõe que o ICMS poderá ser seletivo em função da essencialidade das mercadorias e dos serviços. Isto significa dizer que o legislador estadual poderá fixar alíquotas de ICMS de acordo com a essencialidade do produto ou serviço, sendo menores para os considerados essenciais e maiores para os supérfluos.

Convém relembrar que no Tema nº 745 de repercussão geral e diversas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) correlatas, o STF afastou a cobrança do ICMS em alíquotas majoradas sobre bens tidos essenciais, como energia elétrica e telecomunicações [1].

Nesta linha, a LC nº 194/2022 inseriu o artigo 18-A ao Código Tributário Nacional e artigo 32-A à Lei Kandir (LC nº 87/1996), listando os produtos e serviços que não podem receber o tratamento de supérfluos, diante do caráter essencial e indispensável, quais sejam: combustíveis, gás natural, energia elétrica, comunicações e transporte coletivo.

Importante notar que, muito embora a LC nº 194/2022 não seja a norma prevista no artigo 83 do ADCT, ainda não editada e que definirá quais são os bens supérfluos para fins de (não) incidência do FECP, os bens e serviços nela listados não podem ser onerados pelo Fundo por disposição do legislador estadual, como parece ser o caso do transporte coletivo, serviço no qual o Decreto RJ nº 48.664/2023 ora impõe a obrigação ao pagamento do adicional.

Neste ponto, a CF88 estabelece a competência concorrente de União e Estados para legislar sobre direito tributário (artigo 24, inciso I). Entretanto, a superveniência de lei federal suspende a eficácia da legislação estadual caso os comandos normativos se revelarem contrários (§4º[2]) e, obviamente, a lei federal já vigente constitui impeditivo a disposições contrárias pelo legislador estadual (como decidido pelo STF nas ADIs nº 6284 e 442, por exemplo). Assim, não caberia ao legislador fluminense impor a cobrança do FECP sobre bens tidos por essenciais pela legislação federal.

Sem prejuízo, há de se ponderar que o rol de bens essenciais previsto na LC nº 194/2022 não é taxativo. Há produtos e serviços tão essenciais quanto (ou mais), que fatalmente serão onerados pelo adicional do FECP, tal como a alimentação, cuja alíquota específica é de 12% e, com o acréscimo do FECP, passará a ser de 14%.

Além disso, com base no citado artigo 82 do ADCT, até mesmo os bens e serviços não elencados como essenciais pelo legislador não devem estar sujeitos à incidência do adicional do FECP, desde que não sejam supérfluos.

Embora não exista até o momento lei federal definindo as condições e quais seriam os produtos e serviços considerados supérfluos, evidente que alimentação e prestação de serviço de transporte coletivo não podem ser considerados bens e serviços supérfluos, a denotar que o Decreto RJ nº 48.664/2023 é eivado de inconstitucionalidade, na medida em que dispôs de forma diversa do artigo 82, § 1º do ADCT ao instituir a cobrança do FECP sobre bens essenciais, violando, ainda, as disposições da LC nº 194/2022 (especificamente quanto ao transporte coletivo).

Há, portanto, relevantes argumentos que tornam questionável a cobrança do FECP no Estado do Rio de Janeiro tal como previsto pelo Decreto RJ nº 48.664/2023 sobre o fornecimento de alimentação e prestação de serviço de transporte coletivo, tendo em vista que os fundos estaduais de combate à pobreza devem ser financiados com recursos decorrentes de bens e serviços considerados supérfluos.

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[1] “Adotada pelo legislador estadual a técnica da seletividade em relação ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS), discrepam do figurino constitucional alíquotas sobre as operações de energia elétrica e serviços de telecomunicação em patamar superior ao das operações em geral, considerada a essencialidade dos bens e serviços.”

[2] “Art. 24. Compete à União, aos Estados e ao Distrito Federal legislar concorrentemente sobre:
I – direito tributário, financeiro, penitenciário, econômico e urbanístico;
(…)

  • 1º No âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais.
  • 2º A competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados.
  • 3º Inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades.
  • 4º A superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário.”

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