Opinião

Creditamento de ICMS nas aquisições de produtos intermediários

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10 de dezembro de 2023, 13h12

O ICMS (Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual e Intermunicipal e de Comunicação) é indiscutivelmente um tributo controverso no Brasil, visto suas complexidades operacionais, regramentos, litígios entre outros. Neste cenário, um dos pontos de maior destaque se refere à possibilidade de tomada de créditos e todos os nuances e questionamentos que são objeto de discussões. Logo, os contribuintes avaliam as ponderações e argumentos e se socorrem do judiciário, o qual, recentemente, se posicionou de forma favorável ao aplicar o critério da essencialidade na toma de créditos de ICMS dos produtos intermediários.

Pois bem, primeiro ponto a ser abordado se refere à aplicabilidade do princípio da não cumulatividade ao ICMS, o qual se reveste como corolário constitucional (mandatório) nos termos do artigo 155, parágrafo II, inciso I. Em sua literalidade:

Art. 155. Compete aos Estados e ao Distrito Federal instituir impostos sobre:  

II – operações relativas à circulação de mercadorias e sobre prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação, ainda que as operações e as prestações se iniciem no exterior;   

§ 2º O imposto previsto no inciso II atenderá ao seguinte:     

I – será não-cumulativo, compensando-se o que for devido em cada operação relativa à circulação de mercadorias ou prestação de serviços com o montante cobrado nas anteriores pelo mesmo ou outro Estado ou pelo Distrito Federal; (g.n.)

 

O princípio da não cumulatividade é abordado no julgado a seguir detalhado, o qual avalia a possibilidade de creditamento do ICMS com as ponderações devidas acerca da sistemática aplicável e a relação com o princípio da capacidade contributiva visto que ambos impedem que o tributo se torne um gravame exponencialmente oneroso nas várias operações de circulação da mercadoria/produto, logo, impede a tributação em “cascata”, comumente conhecido como “imposto sobre imposto”.

Diante desse cenário, a Lei Complementar nº87/1996 normatizou a aplicabilidade da não cumulatividade principalmente nos artigos 20, 21 e 33, sistemática que determina a possibilidade do crédito do imposto (ICMS) anteriormente cobrado em operações que tenham ingressado mercadorias no estabelecimento. Posicionamento nítido acerca da possibilidade do crédito de ICMS nas aquisições de insumos e itens destinados ao uso e consumo, este apenas sendo passível o creditamento em 2033.

Neste exato ponto, acerca dos itens passíveis de creditamento, surge o imbróglio, visto que os Estados mitigam o direito ao efetuar uma interpretação restritiva e questionável. Por exemplo, a Secretaria da Fazenda do Estado de São Paulo se posiciona de forma reiterada acerca da necessidade em vincular o crédito de ICMS apenas aos itens que são adquiridos e consumidos na atividade de industrialização e no mesmo procedimento “se incorpora ao produto final”. A Solução de Consulta nº 27214/2023 ratifica o exposto, vejamos:

7. Desse modo, verifica-se que, segundo o subitem 3.1 da Decisão Normativa CAT 01/2001, para ser classificado como insumo, determinado produto deve: (i) integrar o produto objeto da atividade de industrialização ou (ii) ser consumido no processo produtivo industrial.

8. Enfatizamos que não geram direito ao crédito as aquisições de materiais: (i) que se desgastam ao longo de processos produtivos, sendo que os mesmos devem ser substituídos, após certo tempo, porque perderam suas propriedades; e (ii) que compõem partes e peças do ativo imobilizado, ainda que relativas a maquinário de produção, quando da sua reposição periódica por desgaste ou quebra.

8.1. Tais materiais são genericamente conhecidos como materiais para uso e consumo do próprio estabelecimento.

 

Ora, nítido que o Fisco Estadual reduz o conteúdo constitucional do princípio da não cumulatividade ao impor que o crédito de ICMS se refere apenas aos itens que são objeto de consumo no processo produtivo e a inserção deste no produto objeto de mercancia. Ou seja, produtos que são adquiridos e consumidos no processo produtivo e não são incorporados ao “produto final” — denominados de produtos intermediários — não poderiam ser classificados como insumos, sendo necessariamente classificados como “uso e consumo” com a possibilidade do direito à crédito apenas em 2033 [1], logo, a aquisição de produtos nessa situação tem o condão de onerar a operação visto a impossibilidade de deduzir os créditos de ICMS.

Com base no cenário acima delineado, resta evidente que o cerne da questão se refere a possibilidade de crédito de ICMS nas aquisições de produtos intermediários pelos contribuintes, logo, mediante as inúmeras posições divergentes, a matéria foi objeto de análise pelo judiciário.

O Superior Tribunal de Justiça, por meio do voto da Ilustre ministra Regina Helena Costa (Embargos de Divergência em Agravo em Recurso Especial nº 1.775.781-SP), avaliou a presente controvérsia com ponderações que não podem ser desapercebidas pelos contribuintes.

Isso porque o referido julgado publicado em 1º/12/2023 considera a necessidade na análise da essencialidade do produto em relação à atividade fim da empresa. Critério que também foi observado em outros precedentes inclusive quando da análise dos descontos de créditos das contribuições (PIS e Cofins) [2].

No intuito de delinear seu julgamento, a ilustre ministra relatora indica o escorreito respeito à sistemática da não cumulatividade, ponto abordado linhas atrás. Ato contínuo, passa a analisar, brilhantemente, acerca da obtenção do crédito decorrente da aquisição de materiais essenciais ao processo produtivo inclusive os desgastados ou consumidos de modo gradual.

Diante desse cenário, o julgado conceitua um dos principais pontos de análise referente aos produtos intermediários, qual seja, a essencialidade. Logo, suscita o seguinte conceito:

Essencialidade diz com o item do qual dependa, intrínseca e fundamentalmente, o produto ou o serviço, constituindo elemento estrutural e inseparável do processo produtivo ou da execução do serviço, ou, quando menos, a sua falta lhes prive de qualidade, quantidade e/ou suficiência.

Continua ainda com a ponderação acerca da análise da Lei Complementar nº 87 de 1996, inclusive ao afastar o conceito de produtos intermediários de itens classificados como de “uso e consumo”. Se não, vejamos:

Portanto, é necessário ter presente que a Lei Complementar n. 87/1996 não sujeita à restrição temporal do art. 33, I, o aproveitamento dos créditos de ICMS referentes à aquisição de materiais utilizados no processo produtivo, inclusive os consumidos ou desgastados gradativamente, na hipótese de comprovada a necessidade de sua utilização para a realização do objeto social da empresa.

Assim é porque o atributo eleito como distintivo pelo Fisco – desgaste gradual – mostra-se insuficiente para desqualificar a essencialidade do produto intermediário diante do processo produtivo, uma vez que tal material concorre direta e necessariamente para o desenvolvimento da matriz produtiva, afastando, por conseguinte, a regra do art. 33, I, da Lei Kandir, a qual condiciona, a termo futuro, a compensação de crédito.

Desse modo, os materiais adquiridos para a consecução do objeto social da empresa não se enquadram como de uso e consumo do estabelecimento e, por conseguinte, resta inaplicável a restrição temporal do art. 33, I, da Lei Complementar n. 87/1996.” (g.n.)

 

Conclui o julgado, nos termos da ementa, acerca da possibilidade do creditamento referente à aquisição de produtos intermediários, in verbis:

À luz das normas plasmadas nos arts. 20, 21 e 33 da Lei Complementar n. 87/1996, revela-se cabível o creditamento referente à aquisição de materiais (produtos intermediários) empregados no processo produtivo, inclusive os consumidos ou desgastados gradativamente, desde que comprovada a necessidade de sua utilização para a realização do objeto social da empresa – essencialidade em relação à atividade-fim.

IV – Tais materiais não se sujeitam à limitação temporal prevista no art. 33, I, do apontado diploma normativo, porquanto a postergação em tela restringe-se aos itens de uso e consumo.

O entendimento do Superior Tribunal de Justiça é de extrema relevância aos contribuintes de ICMS que adquirem materiais intermediários e sempre estiveram à mercê dos entendimentos restritivos dos fiscos Estaduais, os quais impõem impeditivos ao crédito de forma descabida, desarrazoada e contrária aos princípios da não cumulatividade e capacidade contributiva.

Inclusive, o entendimento levado a efeito pela Corte Superior é de extrema relevância à conjuntura tributária do Brasil, visto que o ICMS é objeto da aclamada reforma tributária, sendo que possivelmente impactos relevantes devem ser observados, logo, avaliar os itens passíveis de creditamento pode ensejar em uma ótima oportunidade e com o devido incremento do compliance.

Ademais, ainda neste diapasão, deve se observar que o aumento de crédito enseja em pontos de extrema relevância, quais sejam: redução do custo de aquisição dos produtos; aumento de créditos de ICMS; aplicação de sistemática de ICMS atualmente conhecida, a qual pode ser objeto de alteração caso haja a alteração constitucional e, posteriormente, legislativa com impactos no tributo estadual (instituição do Imposto sobre Bens e Serviços). Soma-se, ainda, a eventual possibilidade de utilização dos saldos credores de ICMS quando da extinção do tributo em até 240 meses, logo, aumento de crédito de ICMS pode incrementar essa situação e delinear de forma construtiva um novo cenário aplicável aos tributos sobre o consumo.

Conclusivamente, o posicionamento do Superior Tribunal de Justiça deve ser analisado pelas empresas visto a oportunidade em discutir a possibilidade de se creditar o ICMS relativo aos produtos intermediários com base na essencialidade aplicável em relação à atividade-fim.


[1] Apenas em 1º de janeiro de 2033, nos termos do artigo 33, da Lei Complementar nº 87 de 1996.

[2] Recurso Especial nº1.221.170

Autores

  • é advogado, professor, sócio do Glucksmann Associados, mestrando em Direito Tributário na Fundação de Getúlio Vargas (FGV-Direito), especialista em Direito Tributário e MBA/USP-Fipe em Economia de Empresas.

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