Opinião

Honorários de sucumbência equitativos depois da Lei 14.365

Autor

  • Alan Brizola

    é advogado especialista em Direito Econômico e Negocial pela Escola Paulista da Magistratura e em Direito Tributário pela PUC/SP.

7 de dezembro de 2023, 17h15

Com a edição da Lei nº 14.365, em 2 de junho de 2022, foram acrescentados três parágrafos ao artigo 85 do Código de Processo Civil, conferindo um melhor desenho dos honorários de sucumbência. Segundo a referida lei, deverá o juiz respeitar um piso de valor na fixação da verba honorária, nos seguintes termos:

“Art. 85. (…)
§ 6º-A. Quando o valor da condenação ou do proveito econômico obtido ou o valor atualizado da causa for líquido ou liquidável, para fins de fixação dos honorários advocatícios, nos termos dos §§ 2º e 3º, é proibida a apreciação equitativa, salvo nas hipóteses expressamente previstas no § 8º deste artigo

(…)                 

§ 8º-A. Na hipótese do § 8º deste artigo, para fins de fixação equitativa de honorários sucumbenciais, o juiz deverá observar os valores recomendados pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil a título de honorários advocatícios ou o limite mínimo de 10% (dez por cento) estabelecido no § 2º deste artigo, aplicando-se o que for maior.

(…)

§ 20. O disposto nos §§ 2º, 3º, 4º, 5º, 6º, 6º-A, 8º, 8º-A, 9º e 10 deste artigo aplica-se aos honorários fixados por arbitramento judicial”.

Diante desses dispositivos, podem ser extraídas algumas conclusões.

A primeira: mesmo que a demanda possua um valor líquido ou liquidável, a fixação de honorários mediante um percentual sobre tal base econômica deverá ser afastada se resultar numa cifra menor que a recomendada pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados. Nesse caso, a fixação da verba por equidade seria solução mais razoável, considerando o comando da parte final do § 8º-A do artigo 85: “(…) aplicando-se o que for maior”. Exemplo: se o valor da causa/condenação for R$ 12 mil, o juiz não deve determinar 10% (R$ 1.200), a título de honorários, se a natureza da ação e do procedimento na Tabela do respectivo Conselho Seccional corresponder à importância de R$ 3.827,59 [1] (honorários contratuais mínimos). Caberá a determinação por equidade nesta última cifra. 

A segunda conclusão: consta no § 8º-A do artigo 85 do CPC o verbo dever, e não poder. Diz o texto que, “para fins de fixação equitativa de honorários sucumbenciais, o juiz deverá observar os valores recomendados pelo Conselho Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil a título de honorários advocatícios”. Daí se infere, mediante exegese literal e filológica, que não se trata de mera recomendação aos juízes e tribunais; trata-se de enunciado que veicula — ensinam os lógicos do Direito — modal deôntico obrigatório: O(p) [2].

Contudo, já há decisões do Tribunal de Justiça de São Paulo no sentido de que o novel critério trazido pela Lei nº 14.365 para fixar os honorários sucumbenciais por equidade (isto é, conforme o valor contratual mínimo recomendado pelo Conselho Seccional da Ordem) não vincula nem obriga o magistrado. Confira-se a ementa de um acórdão, no qual a quantia honorária determinada ao advogado foi de, apenas, R$ 1.000:           

                                        

“Declaratória de inexigibilidade de débito por prescrição cumulada com obrigação de fazer. Sentença de procedência. Inconformismo do autor com os honorários advocatícios, fixados em R$1.000,00, por equidade. Pretensão pela fixação no valor mínimo previsto na tabela da OAB/SP. Descabimento. Ação que não encontra correspondência específica na referida tabela, a qual é meramente informativa e não vincula o Juízo, detentor do conhecimento sobre a matéria fática e as circunstâncias do caso concreto para fixar os honorários em um valor condizente, que remunere de forma digna o patrono da parte, sem ser exorbitante. Precedentes. Item citado pelo autor genericamente, que apresenta como valor mínimo uma quantia manifestamente incompatível com a demanda. Causa de baixa complexidade, julgada de forma antecipada, tendo o autor inclusive deixado de se manifestar por diversas vezes. – Recurso desprovido.” (Apelação Cível nº 1044600-17.2022.8.26.0100; relator: Ramon Mateo Júnior; 15ª Câmara de Direito Privado; j. 10/3/2023, v.u.)          

Ainda, confira-se decisão da 20ª Câmara de Direito Privado do mesmo tribunal:

“VERBA HONORÁRIA – Adotada a orientação de que o § 8º-A, do art. 85, do CPC traz mera recomendação de valores, sem vincular o prudente arbítrio judicial na apreciação equitativa dos honorários advocatícios de que trata o § 8º, do referido art. 85, do CPC, sob pena de se admitir que os fins de fixação equitativa de honorários sucumbenciais, atribuída por lei ao prudente arbítrio do magistrado, teria sido entregue a órgão de classe e sem considerar as peculiaridades do caso concreto – Como se trata de demanda em que cabe arbitramento por apreciação equitativa (CPC, art. 85, § 8º), de rigor, a reforma da r. sentença, para majorar a condenação da parte ré ao pagamento de honorários advocatícios para R$ 1.320,00, com incidência de correção monetária a partir da data deste julgamento, com base no art. 85, caput, §§ 1º e 8º, do CPC, considerando-se os parâmetros dos incisos I a IV, do § 2º, do mesmo art. 85, montante este que se revela como razoável e adequado, sem se mostrar excessivo, para remunerar condignamente o patrono da parte autora, em razão do zelo do trabalho por ele apresentado e da natureza e importância da causa. Recurso provido, em parte”. (Apelação Cível nº 1000906-74.2023.8.26.0128; relator: Rebello Pinho; 20ª Câmara de Direito Privado; j. 04/09/2023; v.u.)

Sem penetrar nos detalhes das atuações dos defensores, o argumento segundo o qual a mencionada tabela não vincula o juízo traz perplexidade. Essa linha interpretativa, se se tornar dominante, tornará sem efeito o nobre objetivo do legislador processual: por um fim nas condenações honorárias irrisórias e insignificantes.

Já frisado, o texto da lei é muito didático ao remeter o julgador aos valores de honorários recomendados pelo dito Conselho Seccional. O enunciado não reza que o juiz poderá observar. Ao contrário: reza que deverá observar. Nessa senda, a premissa de que o § 8º-A do artigo 85 do CPC traz mera recomendação de valores, “sem vincular o prudente arbítrio judicial na apreciação equitativa dos honorários” equivale a tornar o dispositivo inútil, que poderia, ou não, ser cumprido, a depender da escolha arbitrária de quem examina o caso concreto. É um sofisma evidente.

Aliás, importante doutrina de Processo Civil adverte que a tarefa de interpretar “o texto normativo na direção da construção da norma jurídica” não é “ato livre, desvinculado de uma série de limitações e restrições. Inexiste discricionariedade judicial nessa tarefa” [3]. E é fácil observar que nas transcritas ementas de julgamentos a significação literal do verbo dever [4] (utilizado no § 8º-A do artigo 85 do CPC) foi desprezada sem nenhuma justificativa plausível. Os verbos, que são tão importantes à comunicação verbal [5], podem perder o seu sentido quando da aplicação da lei positiva pelos juízes?  

Um outro aspecto a ser considerado é que, na atualidade, a litigância precisa conter riscos econômicos, de modo a desestimular a dinâmica de violação ao direito material ou a resistência injustificada das partes no processo-procedimento em juízo [6]. A fixação de honorários sucumbenciais diminutos pode incentivar o mau uso (ou o uso abusivo) do direito subjetivo de ação e das exceções processuais (defesa). Sem prejuízo dos institutos já disponíveis no CPC para conter a improbidade e a má-fé no processo civil, as conhecidas lides temerárias [7] podem ser, em certa medida, freadas se os honorários de sucumbência tiverem algum peso financeiro no cálculo de quem se aventura judicialmente. Nesse sentido, a observância (pelos juízes) dos parâmetros de valores do Conselho Seccional da Ordem dos Advogados seria um claro óbice ao ajuizamento de ações (ou defesas) temerárias.

Além disso, a assertiva de que certas demandas não encontrariam “correspondência específica” na Tabela da OAB-SP parece refletir desatenção, uma vez que se a ação é cível e tramita pelo rito ordinário, tem-se como piso de honorários, em 2023, a quantia de R$ 5.511,73; se tramita pelo procedimento sumário, tem-se o valor de R$ 3.827,59. Evidentemente, a referida Tabela não teria como especificar todoo tipo de controvérsia jurídica a ocorrer no mundo fenomênico. E, na suposta ausência de “correspondência específica”, há recomendações gerais que podem ser utilizadas para a perfeita aplicação dos §§ 8º e 8º-A do artigo 85 do CPC.

Por hipótese argumentativa, ainda que o valor sugerido pelo Conselho Seccional da OAB fosse, de fato, exorbitante para as peculiaridades das situações examinadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, são bastante duvidosas que quantias honorárias entre R$ 1.000 a R$ 1.500 remunerariam, de forma digna, o defensor, máxime diante da inflação dos preços dos serviços num estado como o de São Paulo.

Por fim, se o advogado, ao defender o direito da parte, contribui para a qualidade da jurisdição (a Constituição declara sua indispensabilidade ao sistema de justiça: artigo 133 [8]), e se, no seu ministério privado, presta serviço público e exerce função social (Lei nº 8.906, artigo 2º, § 1º), sua verba honorária não pode ser insignificante e aviltada, sobretudo pela natureza alimentar.


[1] Disponível em: https://www.oabsp.org.br/servicos/tabelas/tabela-de-honorarios/. Acesso em: 30 nov. 2023.

[2] “Os lógicos do direito ensinam que são três os modais operados pelos enunciados jurídicos: obrigatório, proibido e permitido. Para os enunciados que obrigam determinado comportamento p, é utilizada a notação O(p); para os que proíbem (vedam) o comportamento p, a notação V(p); e para os que permitem o comportamento p, a notação P(p).” COELHO, Fábio Ulhoa. Roteiro de lógica jurídica. 3. ed. São Paulo: Max Limonad, 1997, p. 67.

[3] BUENO, Cassio Scarpinella. Curso sistematizado de direito processual civil. vol. 1: Teoria geral do direito processual civil: Parte Geral do Código de Processo Civil. 12. ed. São Paulo: SaraivaJur, 2022, p. 424.

[4] “DEVER, v.t. Ter obrigação de; (…) s.m. obrigação”. BUENO, Francisco da Silveira. Dicionário escolar da língua portuguesa. Colaboração de Dinorah da Silveira Campos Pecoraro, Giglio Pecoraro, Geraldo Bressane. 11. ed. – Rio de Janeiro: FENAME, 1981, p. 365.

[5] “O verbo é a classe de palavras que possui o maior número de flexões na língua portuguesa. (…) Os verbos receberam esse nome justamente porque, devido sua importância na língua, foram considerados as palavras por excelência pelos gramáticos”. CIPRO NETO, Pasquale; INFANTE, Ulisses. Gramática da Língua Portuguesa. São Paulo: Scipione, 2008, p. 126-127.

[6] “(…) Litigância de má-fé. Condenação de ofício. Oposição de resistência injustificada ao feito executivo, em que realizada a penhora do imóvel, assim como propositura de demanda de modo temerário. Fixação da multa em 05 salários-mínimos nacionais. Sentença de indeferimento da inicial mantida. Recurso desprovido, com aplicação de multa”. (TJ-SP;  Apelação Cível nº 1023210-15.2022.8.26.0577; Relator: Pedro Kodama; 37ª Câmara de Direito Privado; j. 01/03/2023, v.u.).

[7]LIDE TEMERÁRIA. Direito processual civil. Diz-se, sem rigor técnico, da ação iniciada e continuada com má-fé, leviandade e imprudência, tendo-se consciência da ausência de direito (Pereira Braga, Eliézer Rosa). DINIZ, Maria Helena. Dicionário jurídico universitário. 3. ed. atual. e aum. – São Paulo: Saraiva, 2017, p. 391.

[8] “Art. 133. O advogado é indispensável à administração da justiça…”

Autores

  • é advogado especialista em Direito Tributário pela PUC-SP e em Direito Econômico e Negocial pela Escola Paulista da Magistratura.

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