Segunda leitura

Ética no Judiciário, do ideal ao real

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

3 de dezembro de 2023, 10h44

A ética — ou a sua falta — é mais fácil de ser percebida do que conceituada. Ramo da filosofia, a ética é originária da Grécia antiga, fruto das reflexões dos pensadores a respeito das regras necessárias para uma vida saudável em sociedade.

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Sendo regras não escritas e aceitas por um grupo social em determinado tempo e local, infringi-las acarreta reação do próprio grupo contra o infrator. A forma de a sociedade encarar determinados fatos pode fazer com que o que era considerado desvio ético ontem, não o seja amanhã.

Todas as profissões jurídicas possuem ou deveriam possuir seus Códigos de Ética, dando aos seus membros uma boa orientação em casos de dúvidas. Evidentemente, algumas práticas, de tão óbvias, dispensam qualquer lembrança. Por exemplo, não é preciso recordar um advogado de que, levantando uma importância de um cliente, é seu dever comunicar-lhe imediatamente, a fim de que venha a receber o que lhe é devido.

Mas nem tudo é tão óbvio. Por vezes, os fatos situam-se em uma zona nebulosa que suscita dúvidas até nos mais experientes. Por exemplo, será ético um defensor público recusar-se a receber alguém porque ele se esqueceu de colocar comprovante de endereço na plataforma na internet em que foi feito o pedido de audiência?

Como se vê, os dilemas éticos permeiam as mais diversas atividades ligadas ao Direito, podendo, por vezes, consistir em infração administrativa ou até mesmo criminal. É preciso ponderação e maturidade na análise dos fatos considerados errados, evitando que uma visão radical em tudo enxergue algo a merecer punição, ou uma visão condescendente que tudo tolera, mais por covardia do que propriamente por crença.

Vejamos como se desenvolve a ética judiciária. De todas as profissões no universo jurídico, a do juiz é a mais vigiada e cobrada. E também a que mais se presta a desagradar terceiros. Dispensando referência a outras situações, basta mencionar que, ao sentenciar, um juiz sempre desagrada uma parte, ou seja, a que perdeu. Por vezes causa desgosto às duas. À vencida, por razões óbvias, e à vencedora, por isso ou por aquilo, como, por exemplo, não ter fixado a verba honorária no percentual desejado.

Tão sensível atividade trouxe preocupação à Organização das Nações Unidas (ONU) que, preocupada com a descrença no Poder Judiciário e com o risco que isto pode gerar à democracia, aprovou os Princípios de Conduta de Bangalore, em Mesa Redonda de Presidentes de Tribunais Superiores ocorrida no Salão Japonês do Palácio da Paz, em Haia, Holanda, sede da Corte Internacional de Justiça, em 25 e 26 de novembro de 2002, à qual compareci na condição de convidado especial. As conclusões foram tiradas de estudos acadêmicos, códigos de conduta e experiências de profissionais respeitados, sendo sintetizadas em seis valores principais: 1– Independência; 2– Imparcialidade; 3- Integridade; 4- Idoneidade; 5- Igualdade; 6– Competência e diligência. Novo encontro foi realizado em Viena, Áustria, 2007, tendo o Escritório das Nações Unidas contra Drogas e Crime elaborado comentários diretos e práticos.i

Pouco tempo depois, mais exatamente em 18 de setembro de 2008, o Conselho Nacional de Justiça editou o Código de Ética da Magistratura. Referido Código seguiu as linhas dos Princípios de Bangalore, porém acrescentou itens importantes, como transparência, cortesia, prudência, sigilo profissional, dignidade, honra e decoro.ii

Mas qual o grau de eficiência desse importante diploma?

O primeiro detalhe é que o Supremo Tribunal Federal a ele não se submete, porque o CNJ se encontra abaixo da Corte na hierarquia constitucional (art. 92, inc. I). Disto se segue a conclusão de que os ministros não erram? Se esta for a conclusão, ela é no mínimo ingênua. Não existem seres humanos infalíveis.

Nos Estados Unidos, após Clarence Thomas, justice da Suprema Corte, ter sido acusado de participar de viagens pagas por Harlan Rogers Crow, um amigo milionário, a Suprema Corte editou um Código Interno de Ética, fato inédito naquele respeitado tribunal.iii

No âmbito dos Tribunais Superiores ou nas Cortes de Apelação, não se vê maior repercussão do Código de Ética. Quando ocorre um fato desabonador da conduta de um magistrado, o que é comum, porque são cerca de 23.000 profissionais, a situação se resolve mais no nível administrativo ou até na esfera criminal.

Porém, reitera-se, falha ética não se confunde com infração administrativa ou fato delituoso. Na verdade, é algo sobre circunstância que gera dúvidas, que tem bons argumentos favoráveis ou desfavoráveis. Lamentavelmente, o tema não avançou no Brasil, não é objeto de discussão e muito menos de definição do que pode e do que não se pode fazer.

Por exemplo, é ético uma empresa pagar despesas de viagem e cursos para magistrados? E magistrados viajarem ao exterior, com diárias pagas, para fazer visitas a tribunais? É ético marido de juíza advogar na comarca, valendo-se da natural proximidade que tem com os demais juízes? Manifestações políticas nas redes sociais constituem conduta correta?

Dezenas de exemplos podem ser citados, pois a vida é rica em acontecimentos. O estabelecimento de marcos claros sobre o admissível ou não, pode ser dado por cada tribunal, visto que gozam todos de autonomia administrativa. Um conselho de experientes na área também seria de grande valor, principalmente para orientar os que se encontrem com dúvidas a respeito de determinado tema.

Aulas por juízes experientes e práticos nos cursos de capacitação de magistrados serão sempre oportunas. E consulta aos Comentários aos Princípios de Bangalore (nota de fim de página, item 1) será sempre de grande ajuda, face à clareza e objetividade como é tratada a matéria.

Em suma, é preciso que a ética judiciária saia do antigo Código de 2008 do CNJ e entre no mundo real. Ganhará com isto a magistratura e se fortalecerá a democracia.


i Nações Unidas (ONU). Escritório Contra Drogas e Crime (Unodc). Comentários aos Princípios de Bangalore de Conduta Judicial / Escritório Contra Drogas e Crime; tradução de Marlon da Silva Malha, Ariane Emílio Kloth. – Brasília: Conselho da Justiça Federal, 2008. Disponível em: https://www.unodc.org/documents/lpo-brazil/Topics_corruption/Publicacoes/2008_Comentarios_aos_Principios_de_Bangalore.pdf. Acesso em 2 dez. 2023.

ii CNJ. Código de Ética da Magistratura. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/codigo-de-etica-da-magistratura/. Acesso em 2 dez. 2023.

iii MELO, João Ozorio de. Conheça o primeiro código de ética para ministros da Suprema Corte dos EUA. Revista eletrônica Consultor Jurídico, 15 nov. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-15/conheca-o-primeiro-codigo-de-etica-da-suprema-corte-dos-estados-unidos/. Acesso em 2 dez. 2023.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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