Opinião

O juiz entre justiça e prudência

Autor

  • Bruno Amaro Lacerda

    é professor adjunto da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) doutor e mestre em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

24 de janeiro de 2024, 7h14

Considerando que o código de ética da magistratura nacional estabelece a justiça como um dos objetivos da atividade judicial (artigo 3º) e a prudência como um dos princípios pelos quais a magistratura deve se guiar (artigo 1º), é de interesse precisar a relação entre essas duas virtudes. Elementos valiosos sobre a questão podem ser encontrados na obra de Marco Túlio Cícero.

Em “De Inventione”, o célebre orador romano define a prudência como “o conhecimento das coisas boas, das coisas más e das indiferentes” (Prudentia est rerum bonarum et malarum neutrarumque scientia) e a justiça como “o hábito da alma que, atribuindo a cada qual o seu mérito, preserva a utilidade comum” (Iustitia est habitus animi communi utilitate conservata, suam cuique tribuens dignitatem) [1].

Em outro livro, “De Officiis”, ele fixa para a justiça duas tarefas: a primeira “que ninguém prejudique a outrem” (ut ne cui quis noceat), “exceto quando atacado em um ato injusto” (nisi lacessitus iniuria), e a segunda “que se use as coisas comuns como comuns, e as privadas como próprias” (ut communibus pro communibus utatur, privatis ut suis) [2].

A explicação ciceroniana pressupõe que todos sabem quando um dano injusto é infligido a outrem, e também quando um ato deixa de ser injusto por ser uma resposta legítima a uma agressão. Ou, ainda, que qualquer pessoa consegue distinguir com clareza os limites do uso de um bem público. Esse discernimento do justo e do injusto, uma atividade intelectiva tipicamente humana, é a prudência. Cícero, inclusive, define-a na segunda obra como “o conhecimento das coisas que devem ser desejadas e das que devem ser evitadas” (rerum expetendarum fugiendarumque scientia) [3]. O termo “prudência”, assim, não designa um mero dever de cautela, mas uma aplicação específica da inteligência, por meio da qual um ser humano dissocia as ações justas e desejáveis das injustas e indesejáveis.

Esclarece-se, desse modo, a conexão entre justiça e prudência: só é possível atribuir a alguém o que lhe é devido, concretizando a justiça, quando se sabe, com exatidão, o que essa pessoa merece por direito. Sem o ato intelectivo, ou prudencial, é impossível praticar a justiça, seja pela ação cotidiana do cidadão, seja pela via da jurisdição.

Não há, portanto, justiça sem prudência. A própria simbologia da justiça expressa essa conexão: por um lado, há a balança de dois pratos, que representa a ponderação das pretensões e razões em conflito (“ponderar” provém da voz latina ponderare, que significa pesar, mas também julgar e avaliar). Por outro lado, há a espada, com frequência identificada com a coerção estatal, mas que indica primariamente o ato de separar, de cortar, de dissociar o que é de cada qual (em latim, decidere significa propriamente “separar cortando” e, em sentido figurado, “decidir”).

O juiz prudente, por conseguinte, é o que se esforça para discernir, em um determinado caso, o melhor direito, conduzindo o processo a um desfecho justo. Por isso, é adequada a definição do código de ética da magistratura nacional em seu artigo 24: “O magistrado prudente é o que busca adotar comportamentos e decisões que sejam o resultado de juízo justificado racionalmente, após haver meditado e valorado os argumentos e contra-argumentos disponíveis, à luz do Direito aplicável”.


[1] De Inventione, Livro II, § 160.

[2] De Officiis, Livro I, § 20.

[3] De Officiis, Livro I, § 153.

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