Crise de Identidade

O papel da Justiça do Trabalho diante das mudanças no mercado de mão de obra

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3 de dezembro de 2023, 7h08

Se o trabalho está em crise, então a Justiça do Trabalho também está em crise. Não se trata de uma crise de produtividade ou de funcionalidade, que neste ponto ela até que vai bem, obrigado. Com efeito, entre todos os ramos do Judiciário brasileiro, é o que tem menor congestionamento de processos, o que julga mais rápido. A crise da Justiça do Trabalho é uma crise de identidade, quase existencial, e tem sua face mais visível no embate que sustenta com o Supremo Tribunal Federal para definir o alcance de sua competência.

O marco legal original da Justiça do Trabalho foi e ainda é a CLT, o código trabalhista de 80 anos de idade e de emendas que o trouxeram até os dias de hoje. O que se discute é se o velho trabalho, com direitos e garantia tal qual consta na CLT, ainda vigora. E se o novo trabalho, com suas múltiplas formas de relação de trabalho e mínimos direitos e garantias, cabe dentro do marco legal da CLT.

O embate coloca frente a frente duas visões distintas que se pode ter do trabalho. Uma economicista, que prestigia o valor econômico do trabalho, considerado como mero fator de produção, uma mercadoria com seu preço. Outra prioriza o valor social do trabalho, que além de ser meio de produção é também o instrumento para o trabalhador desenvolver seu projeto de vida com dignidade.

Para Douglas Alencar Rodrigues, ministro do Tribunal Superior do Trabalho, existe também uma discussão, digamos, ideológica: “Assistimos a uma acirrada disputa de narrativas entre as virtudes e vícios dos dois modelos normativos, o primeiro, em que o Estado seria o grande protagonista da proteção social, editando um direito individual interventivo, completamente vinculado e absolutamente insuscetível de derrogação pelos atores sociais em negociações coletivas; e o segundo, em que os atores sociais, respeitando um núcleo mínimo de direitos considerados indisponíveis, teriam ampla permissão legislativa para firmar contratos coletivos, o que estaria em linha de harmonia com as Convenções 98 e 154 da Organização Internacional do Trabalho, ambas ratificadas pelo Brasil.”

O ministro não discute, contudo, a imprescindibilidade da Justiça especializada: “Fundamentalmente, a Justiça do Trabalho foi concebida para harmonizar conflitos individuais e coletivos do mundo do trabalho. Esse papel segue íntegro nos dias atuais. Mas a Justiça do Trabalho, a partir da experiência acumulada ao longo de tantas décadas, tem superado essas fronteiras tradicionais e vem buscando contribuir para que tenhamos relações de trabalho dignas e equilibradas.”

O primeiro desafio a superar é a definição dos limites da competência da Justiça do Trabalho, ou melhor, a preservação de sua prerrogativa jurisdicional. Originalmente, o artigo 114 da Constituição dizia que “compete à Justiça do Trabalho conciliar e julgar os dissídios individuais e coletivos entre trabalhadores e empregadores e outras controvérsias decorrentes da relação de trabalho”. Nestes termos, competia à Justiça do Trabalho casos relacionados com a relação de emprego. A Emenda Constitucional 45/2004, a chamada Reforma do Judiciário, ampliou sua margem de atuação ao prescrever que cabe à Justiça do Trabalho resolver os conflitos decorrentes de todas as relações de trabalho e não mais apenas as de emprego.

Num momento em que se restringem as formas de relação de emprego e se multiplicam as relações de trabalho, essa definição torna-se crucial para a própria existência da Justiça do Trabalho. A ministra do TST Maria Cristina Peduzzi aponta a necessidade de o Judiciário se adaptar à nova realidade: “O surgimento de novas formas de trabalho demanda, nesse cenário, uma reinterpretação e possível reconfiguração do escopo da CLT. Assim, enquanto algumas das novas relações de trabalho poderão eventualmente ser enquadradas na CLT, outras exigirão da Justiça do Trabalho uma adaptação às novas circunstâncias, de modo que reconheça e respeite a diversidade das novas formas de organização do trabalho. Isso pode envolver, por exemplo, a elaboração de novas tipologias contratuais e regimes de proteção que sejam mais adequados à realidade do trabalho em plataformas digitais.”

Na guerra por preservar seu território, a Justiça do Trabalho tem perdido algumas batalhas e vencido outras. No julgamento da ADI 3.395/DF, por exemplo, o STF decidiu que não é da alçada trabalhista os processos de servidores contra o Estado. Também decidiu que não tem competência para julgar ações penais (ADI 3.684-0). Mas reconheceu que cabe à Justiça especializada decidir sobre Direito de greve e sobre indenização por dano moral de empregado contra empregador.

O embate mais recente coloca na mesa controvérsias suscitadas a partir da aplicação das alterações introduzidas na CLT pela Reforma Trabalhista de 2017 (Lei 13.467/2017). Um dispositivo pouco comentado introduzido pela reforma na CLT é sintomático do incômodo que a nova normativa causou para juízes alinhados à jurisprudência trabalhista mais conservadora.

A reforma inseriu na CLT a figura do empregado “hipersuficiente”, o trabalhador com escolaridade de nível superior com salário superior a duas vezes o teto de benefícios do INSS (R$ 14 mil, em valores de 2023) e que poderia ficar à margem da proteção conferida pela legislação, já que teria paridade de armas para litigar com a empresa. Para o legislador que inseriu a novidade na legislação, tal trabalhador pode ser tratado em igualdade de condições com a empresa que o contratou.

Independentemente do mérito da questão, esta inovação abala um dos fundamentos da Justiça do Trabalho, que é a hipossuficiência do trabalhador diante do poderio reconhecidamente hiper do empregador. O debate sobre hipossuficiência levanta outra questão em torno da Justiça do Trabalho que é a narrativa de que ela tende a superproteger o trabalhador. Afora o fato que a legislação trabalhista existe justamente para proteger o trabalhador e que à Justiça cabe aplicá-la, os números provam que a Justiça do Trabalho não é tão tendenciosa pró-trabalhador quanto se apregoa. Tome-se como exemplo os dados de 2022, quando, segundo o TST, a Justiça do Trabalho deu resolução a 1,7 milhão de processos. Chama a atenção que metade desses processos sequer foram a julgamento: 13% deles foram extintos sem decisão de mérito. E, mais notável ainda, 38% foram solucionados em comum acordo entre as partes, pela via da conciliação, uma etapa do processo em que a Justiça do Trabalho tem o mais alto índice de êxito entre os ramos do Judiciário.

Da outra metade de processos que foram decididos pelos juízes, 11% foram julgados improcedentes, portanto, favoráveis ao empregador, mais do que os 7% tidos como procedentes e favoráveis ao trabalhador. É bem verdade que em relação aos 30% considerados procedentes em parte pode-se entender que a maioria deles agrada mais ao empregado do que ao empregador. No balanço geral, o resultado não é tão desfavorável às empresas quanto se apregoa.

A análise dos temas mais julgados revela uma aparente distorção no uso, diga-se, no mau uso da Justiça do Trabalho, que a faz aparecer mais no papel de vítima do que de algoz. Mostram esses números, tendo como base o movimento processual de 2022, que dos 12 milhões de demandas levadas às varas do Trabalho de todo o país, 3,3 milhões, mais do que um quarto do total, tratam de um único tema: rescisão do contrato de trabalho.

Fausto Augusto Júnior, diretor-técnico do Dieese – Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (leia entrevista à página 34) diz que a Justiça do Trabalho poderia se chamar Justiça dos Desempregados. Porque nos termos em que se estabelece a relação entre empregado e empregador, só depois de ser demitido ou de pedir demissão é que o trabalhador ousa reclamar das irregularidades praticadas durante a vigência do contrato. Isto se dá, segundo Fausto, porque o que prevaleceu no Brasil foi o contrato individual de trabalho. Em outros países, diz ele, o que conta é o contrato coletivo e, nesse caso, as reclamações por descumprimento contratual são feitas no ato pelo sindicato, sem riscos de represálias individuais.

Dados do Caged, do Ministério do Trabalho, dão conta que em 2022 foram demitidos ou se demitiram 20,6 milhões de profissionais, metade dos trabalhadores com carteira assinada. As ações pós-rescisão são alimentadas, de um lado, pelos patrões que preferem deixar para pagar as verbas rescisórias só por decisão judicial, contando com a possibilidade de que algum demitido não se anime a ir “buscar seus direitos na Justiça”; e, por outro, pelos trabalhadores demitidos, que após perderem o emprego, reivindicam todos seus direitos, reais e imaginários, já que não correm risco de sofrerem prejuízos colaterais, mesmo se perderem a causa.

Corregedor regional do TRT de São Paulo, Eduardo de Azevedo Silva, entende que a judicialização é fruto de exageros de ambas as partes: “Há, sim, excessos pontuais de ambas as partes, seja por parte dos trabalhadores, como por parte dos empregadores, uns porque não raro reclamam direitos que sabem não ter e outros porque negam direitos que sabem estar obrigados a satisfazer.”

A lista de temas mais recorrentes nas varas do Trabalho segue com ações relacionadas com a jornada de trabalho (18% das demandas), salários (17%) e contrato individual de trabalho (9%), a maioria tratando de questões factuais, tipo pagou ou não pagou, trabalhou ou não trabalhou, sem envolver questões de Direito propriamente ditas. O quinto tema mais julgado é o referente à responsabilidade civil do empregador e aos pedidos de indenização por dano moral e material aos empregados (7%). São questões que envolvem condições de trabalho e a dignidade do trabalhador e que cada vez mais entram na política de compliance das empresas com gerenciamento mais moderno.

Entre as 20 demandas mais recorrentes no Judiciário Trabalhista, de acordo com o DataJud do CNJ, está o reconhecimento de relação de emprego, com a distribuição, em 2022, de 230 mil pedidos, aí englobando as novas relações de trabalho, desde a terceirização, até a uberização, passando por pejotização, MEI, trabalho intermitente, trabalhador autônomo. Da lista não escapam os velhos e bons representantes comerciais e, até mesmo, os advogados e seus escritórios de advocacia.

Em 2022, chegaram aos 25 tribunais e 1.587 varas do Trabalho do país cerca de três milhões de processos. No mesmo período, juízes (3,5 mil), desembargadores (585) e ministros (27) do Trabalho, julgaram 2,8 milhões de processos. Desse total, cerca de 1,8 milhão teve solução final, dos quais a metade nem foi a julgamento, enquanto um terço foi resolvido mediante acordo. Aguardam julgamento menos de dois milhões de processos, o equivalente a dois terços do que os juízes julgam em um ano. Nada alarmante. Significa que, do ponto de vista de eficiência operacional, a Justiça do Trabalho vai bem, obrigado.

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