Opinião

Gravação ambiental clandestina: passado e futuro

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2 de dezembro de 2023, 6h31

Até a promulgação da Lei nº 13.964/19, a despeito de eventuais críticas doutrinárias, a licitude da gravação ambiental clandestina no processo penal era uma discussão pacífica no âmbito dos tribunais superiores. Relembre-se que, ao julgar o Tema nº 237 de Repercussão Geral (RE nº 583.937/RJ), o STF assentou ser desnecessária prévia autorização judicial para que um interlocutor grave eventual diálogo estabelecido com outro interlocutor, sem o conhecimento deste, desde que presente justa causa para a revelação do diálogo.

Veja-se, respectivamente, a tese fixada no Tema nº 237 de Repercussão Geral e a ementa do RE nº 583.937/RJ:

É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro.
***
EMENTA: AÇÃO PENAL. Prova. Gravação ambiental. Realização por um dos interlocutores sem conhecimento do outro. Validade. Jurisprudência reafirmada. Repercussão geral reconhecida. Recurso extraordinário provido. Aplicação do art. 543-B, § 3º, do CPC. É lícita a prova consistente em gravação ambiental realizada por um dos interlocutores sem conhecimento do outro (STF, RE nº 583.937-QO-RG/RJ, Rel. Min. Cezar Peluso, Pleno, j. 19/11/2009, DJe 18/12/2009).

Posteriormente, o Plenário do STF veio a reafirmar que “é lícita a prova obtida mediante a gravação ambiental, por um dos interlocutores, de conversa não protegida por sigilo legal. Hipótese não acobertada pela garantia do sigilo das comunicações telefônicas (inciso XII do art. 5º da Constituição Federal)” (STF, INQ nº 2.116-QO/RR, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. Min. Ayres Britto, Pleno, j. 15/09/2011, DJe 29/02/2012).

Agente 86/Reprodução

Aliás, em caso rumoroso ocorrido durante a operação “lava jato”, o STF também admitiu a gravação ambiental clandestina, mesmo quando um dos interlocutores (e colaborador) obteve auxílio da PGR (do Estado). Na ocasião, a partir de voto divergente do ministro Roberto Barroso, a 1ª Turma afastou qualquer “evidência de que a ação de um agente provocador possa ter maculado a manifestação de vontade livre e consciente do denunciado, exteriorizada no mundo fenomênico por meio de palavras captadas, licitamente, na gravação ambiental posteriormente coligida aos autos” (STF, INQ nº 4.506/DF, Rel. Min. Marco Aurélio, Red. Min. Roberto Barroso, Primeira Turma, j. 17/04/2018, DJe 04/09/2018).

Ocorre que, com a entrada em vigor da Lei nº 13.964/19, o tema acabou adquirindo novos contornos normativos no âmbito do processo penal. Isso porque, ao inserir o artigo 8º-A, § 4º, na Lei nº 9.296/96, o legislador avançou na regulamentação da gravação ambiental clandestina, apenas permitindo sua utilização pela defesa, desde que demonstrada a integridade da gravação. Além disso, ao dispor sobre a interceptação ambiental e a gravação ambiental (não clandestina), o legislador determinou a aplicação subsidiária dos requisitos exigidos na interceptação telefônica e telemática (artigo 8º-A, § 5º, na Lei nº 9.296/96).

Confira-se, detalhadamente:

Art. 8º-A. Para investigação ou instrução criminal, poderá ser autorizada pelo juiz, a requerimento da autoridade policial ou do Ministério Público, a captação ambiental de sinais eletromagnéticos, ópticos ou acústicos, quando: (…)
§ 4º A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.
§ 5º Aplicam-se subsidiariamente à captação ambiental as regras previstas na legislação específica para a interceptação telefônica e telemática.

da clareza normativa, na tentativa desenfreada de sustentar a manutenção da licitude da gravação ambiental clandestina, poder-se-ia dizer que se trata de captação ambiental (não de gravação ambiental). Todavia, a legislação processual trata a gravação ambiental clandestina e a interceptação ambiental como captação ambiental, a exemplo do artigo 3º, II, da Lei nº 12.850/13. Nessa linha, Gustavo Henrique Badaró esclarece que a interceptação ambiental (artigo 8º-A, caput, da Lei nº 9.296/96) e a gravação ambiental clandestina (artigo 8º-A, § 4º, da Lei nº 9.296/96) são manejadas através da expressão “captação ambiental” pela legislação processual penal pátria. [1] Inobstante, para dissipar quaisquer dúvidas ainda existentes, o Veto nº 56/2019 ao abordar o dispositivo faz menção expressa ao INQ nº 2.116-QO/RR, demonstrando que se trata efetivamente de gravação ambiental. [2]

Desse modo, demonstrado que o artigo 8º-A, § 4º, da Lei nº 9.296/96 disciplina o instituto da gravação ambiental, conclui-se que a obtenção clandestina de diálogo por um dos interlocutores pode ser utilizada somente para fins defensivos e, frise-se, apenas quando demonstrada a integridade do diálogo, cumprindo com o entendimento de que provas ilícitas podem ser utilizadas exclusivamente pro reo. Em nossa opinião, a gravação ambiental clandestina pode ser admitida para fins defensivos, independentemente de sua integridade, eis que a ausência de integridade será avaliada na fase de valoração probatória (não de admissibilidade).

No mais, malgrado o artigo 10-A, § 1º, da Lei nº 9.296/96 compreenda como atípica a conduta do interlocutor que pratica gravação ambiental clandestina, trata-se de dispositivo que não apresenta qualquer antinomia com o artigo 8º-A, § 4º, da Lei nº 9.296/96, tampouco permite que o Estado-acusação utilize a gravação ambiental clandestina. Afinal, uma coisa é condicionar o meio de obtenção de prova ao crivo judicial (artigo 8º-A, § 4º, da Lei nº 9.296/96), outra coisa é optar por não criminalizar a obtenção ilícita por um dos interlocutores (artigo 10-A, § 1º, da Lei nº 9.296/96). Muito provavelmente, o objetivo do legislador é nobre: embora a prova seja ilícita, evita-se que a vítima seja criminalizada por gravar clandestinamente eventual criminoso.

A despeito disso, o fato é que, ao menos do ponto de vista abstrato, o Tema nº 237 de Repercussão Geral (RE nº 583.937/RJ) ainda vige. Recentemente, embora advertindo que as alterações promovidas pela Lei nº 13.964/19 não atingiam referido julgamento, a 6ª Turma do STJ reconheceu a ilicitude de gravação ambiental clandestina realizada com o auxílio dos órgãos de persecução penal. Na ocasião, em seu voto divergente, o ministro Sebastião Reis Jr. fez questão de alertar sobre a inclusão do artigo 8º-A, § 4º, da Lei nº 9.296/96:

Esse reposicionamento que proponho ainda antevê debate sobre o teor do § 4º do art. 8º-A da Lei n. 9.296/1996, inserido pela Lei n. 13.964/2019, que reabre discussão sobre a amplitude da validade da captação ambiental feita por um dos interlocutores” (STJ, AgRg no RHC nº 150.343/GO, Rel. Min. Rogério Schietti Cruz, Red. Min. Sebastião Reis Jr., Sexta Turma, j. 15/08/2023, DJe 30/08/2023).

Nesse sentido, em seu recente voto no Tema nº 979 de Repercussão Geral, no qual se discute a ilicitude da gravação ambiental clandestina na seara eleitoral [3], o ministro Alexandre de Moraes anteviu eventual compreensão sobre a ilicitude da gravação ambiental clandestina no âmbito do processo penal, à vista das alterações promovidas pela Lei nº 13.964/19:

Como procurei demonstrar, se mesmo a Lei 13.964/2019, “pacote anticrime”, que alterou o procedimento para interceptação de comunicações (art. 8-A da Lei 9.296/1996), estabelecendo que a captação ambiental deve ser feita mediante autorização judicial, e somente pode ser usada em matéria de defesa no âmbito do processo criminal (§ 4º do referido art. 8º-A), com mais forte razão a gravação ambiental realizada em ambiente privado na seara eleitoral deve ser tida por ilícita se feita por um dos participantes, sem o consentimento ou ciência inequívoca dos demais interlocutores, ou sem a permissão judicial (STF, RE nº 1.040.515, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 03/11/2023).

Em sentido semelhante, posicionou-se o ministro Gilmar Mendes:

Por fim, destaco que após o início do julgamento deste caso, o Tribunal Superior Eleitoral reafirmou a diretriz impugnada e, também, a Lei 13964/19 regulamentou a escuta ambiental. Em relação à Reserva de Jurisdição para os casos de gravação ambiental e interceptação telefônica, o advento da Lei 13964/19 veio definir normativamente a tendência que estava sendo consolidada na jurisprudência, ao prever, no § 5º, do art. 8º-A, da Lei 9.296/96, que [se] “aplicam subsidiariamente à captação ambiental as regras previstas na legislação específica para a interceptação telefônica e telemática”. Logo, diversamente do alegado pelo recorrente, o acórdão recorrido está fundamentado e a baliza constitucional que exige a Reserva de Jurisdição é justamente a proteção efetiva aos Direitos Fundamentais à privacidade, à intimidade e à proteção de dados pessoais (STF, RE nº 1.040.515, Rel. Min. Gilmar Mendes, Pleno, j. 03/11/2023).

Desse modo, estima-se que o Tema nº 237 de Repercussão Geral (RE nº 583.937/RJ) está com seus dias contados, considerando o novel artigo 8º-A, § 4º, da Lei nº 9.296/96. Isso porque, afora não residir maiores dúvidas sobre o conteúdo normativo do dispositivo, não há que se falar em inconstitucionalidade, inexistindo qualquer dispositivo constitucional violado. Pelo contrário, o legislador optou por avançar na regulamentação do meio de obtenção de prova, conformando-o com o artigo 5º, X, da CF/88. Ademais, se na seara eleitoral a jurisprudência do TSE não está admitindo a gravação ambiental clandestina [4], não se deve aceitá-la na esfera penal. Afinal, enquanto os direitos políticos estão sub judice nas ações eleitorais; no processo penal, os direitos políticos, o direito de propriedade e a própria liberdade de locomoção estão em jogo, motivo pelo qual os meios probatórios hão de ser ainda mais restritivos.


[1] BADARÓ, Gustavo Henrique. Processo penal. 8. ed. São Paulo: Thomson Reuters, 2020. p. 592.

[2] “§ 4º do art. 8º-A da Lei nº 9.296, de 24 de julho de 1996, inserido pelo art. 7º do projeto de lei ‘§ 4º A captação ambiental feita por um dos interlocutores sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público poderá ser utilizada, em matéria de defesa, quando demonstrada a integridade da gravação.’

Razões do veto

‘A propositura legislativa, ao limitar o uso da prova obtida mediante a captação ambiental apenas pela defesa, contraria o interesse público uma vez que uma prova não deve ser considerada lícita ou ilícita unicamente em razão da parte que beneficiará, sob pena de ofensa ao princípio da lealdade, da boa-fé objetiva e da cooperação entre os sujeitos processuais, além de se representar um retrocesso legislativo no combate ao crime. Ademais, o dispositivo vai de encontro à jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, que admite utilização como prova da infração criminal a captação ambiental feita por um dos interlocutores, sem o prévio conhecimento da autoridade policial ou do Ministério Público, quando demonstrada a integridade da gravação (v. g. Inq-QO 2116, Relator: Min. Marco Aurélio, Relator p/ Acórdão: Min. Ayres Britto, publicado em 29/02/2012, Tribunal Pleno).’” (BRASIL. Senado Federal. Veto nº 56/2019. Disponível em: https://www.congressonacional.leg.br/materias/vetos/-/veto/detalhe/12945. Acesso em: 19 nov. 2019).

[3] HÍGIDO, José. STF interrompe análise sobre gravação ambiental clandestina em ação eleitoral. Revista Consultor Jurídico, 06 nov. 2023. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2023-nov-06/stf-interrompe-analise-gravacao-clandestina-acao-eleitoral/. Acesso em: 19 nov. 2023.

[4] VITAL, Danilo. Gravação ambiental clandestina agora é prova ilegal em ação eleitoral, diz TSE. Revista Consultor Jurídico, 07 out. 2021. Disponível em: https://www.conjur.com.br/2021-out-07/gravacao-ambiental-clandestina-agora-prova-ilegal-tse/. Acesso em: 19 nov. 2023.

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