Interesse Público

População de rua e ADPF 976: STF desenha a solução sem conhecer o problema

Autor

  • Vanice Valle

    é professora da Universidade Federal de Goiás visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School pós-doutora em administração pela Ebape-FGV doutora em Direito pela Universidade Gama Filho procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

31 de agosto de 2023, 8h00

O sítio do STF (Supremo Tribunal Federal) noticiou no último dia 22 de agosto o referendo pelo colegiado, em sessão virtual, à decisão do ministro Alexandre de Moraes, de concessão parcial de medida liminar requerida nos autos da ADPF 976. O feito versa sobre o sensível tema da população em situação de rua, e das potenciais medidas e solução para esse grave problema social que se identifica em cidades por todo o país.

É de se dizer que a decisão foi antecedida por audiência pública feita nos dias 21 e 22 de novembro de 2022. A referida audiência contou com 63 habilitados  número que pode sugerir um amplo debate social, legitimador do decisum. Essa conclusão, todavia, é refutada pela circunstância de que a cada representante foi assinalado o intervalo de cinco minutos para sua intervenção, como se verifica do correspondente cronograma.

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A decisão em si suscita diversas questões que certamente excedem os limites desta coluna — mas a tentação de abordar algumas delas foi forte demais para essa autora…

O problema público da população em situação de rua foi apresentado à Corte sob a roupagem da figura do estado de coisas inconstitucional  provimento jurisdicional originalmente cunhado pela Corte Constitucional da Colômbia, e importado com grande entusiasmo à judicial review em terras brasileiras. Há um apelo retórico inegável na figura, que expressa um juízo genérico de desaprovação, de insensibilidade de parte do Poder Público para com violações a direitos fundamentais de sede constitucional.

O precedente original de evocação do estado de coisas inconstitucional no Brasil data de 2015, com o deferimento de extensa medida liminar na ADPF 347, que versava sobre o sistema prisional. Em que pese o transcurso de já quase oito anos da referida liminar, não parece se tenha alcançado sucesso na melhoria do sistema prisional à altura do entusiasmo dos defensores da qualificação de estado de coisas inconstitucional. Mas voltemos à ADPF 976 e às perplexidades que ela sugere.

Primeiro ponto extravagante me parece estar no total desalinhamento entre a tese de repercussão geral no Tema 698, fixada no julgamento do RE 684612, cunhada em 3/07/2023, em particular, em seu item 2, assim enunciado: "2. A decisão judicial, como regra, em lugar de determinar medidas pontuais, deve apontar as finalidades a serem alcançadas e determinar à Administração Pública que apresente um plano e/ou os meios adequados para alcançar o resultado". Afinal, a decisão liminar proferida pelo ministro Alexandre de Moraes em 25/07/2023, 22 (vinte e dois) dias depois da primeira; alinha-se à tese ao determinar à União a apresentação de plano detalhado  todavia, dedica-se longamente a determinar medidas pontuais a serem desenvolvidas por Estados e Municípios no exercício da zeladoria urbana [1], nisso, contradizendo a afirmação anterior do Tribunal que repudiava esse tipo de ordenação como próprio ao exercício do controle de políticas públicas.

O referido item 2 da tese fixada no Tema 698 foi já objeto de comentário nesta mesma colunista no texto "O STF 'lacrou' o controle de políticas públicas ao julgar o Tema 698?", onde apontei questões não resolvidas atinentes a essa harmonização entre a ordem judicial que fixa finalidades a serem alcançadas, e o eventual juízo de valor a ser desenvolvido em relação ao plano apresentado pelo ente público para superação do problema judicializado. Em que pese esses pontos de fragilidade na solução proposta pelo STF no multicitado Tema 698, ao menos ali se tinha a virtude de uma prestação jurisdicional que não se apresentava aprioristicamente substitutiva do juízo discricionário do administrador em relação a quais sejam as prioridades e estratégias a serem desenvolvidas para o enfrentamento de um problema público. Essa a evolução qualificadora que se perdeu com a liminar agora referendada na ADPF 76.

Definindo em relação a estados e municípios quais os parâmetros de ação a serem observados "no âmbito de suas zeladorias urbanas e nos abrigos de suas respectivas responsabilidades", inequivocamente se tem na referida liminar, conteúdo decisório que se substitui à política pública estadual e/ou local, tudo em nome da proteção à dignidade e outros valores constitucionalmente protegidos titularizados pela população em situação de rua. Parece, portanto, que menos de um mês depois da tese enunciada no Tema 698, a Corte retorna à velha compreensão firmada na ADPF 47, segundo a qual lhe seria dado inclusive formular políticas públicas. Um passo para a frente e dois para trás…

Importa ainda destacar, a par da perplexidade já trazida, que é a própria decisão referendada que, determinando igualmente a Estados e Municípios "no prazo de 120 dias, a realização de diagnóstico pormenorizado da situação nos respectivos territórios, com a indicação do quantitativo de pessoas em situação de rua por área geográfica, quantidade e local das vagas de abrigo e de capacidade de fornecimento de alimentação", confessa não dispor de um quadro descritivo do problema público a ser enfrentado que possa sustentar a adequação das providências determinadas. Mais ainda, não se encontra em qualquer dos seus inúmeros subitens, a identificação de quais sejam as finalidades a serem alcançadas pela Administração Pública  componente a integrar necessariamente a decisão que empreende ao controle de políticas públicas, segundo o Tema 698.

A oportunidade seria preciosa para a aplicação da ferramenta desenvolvida por Ruiz e Bucci [2], a saber, o quadro de problemas de políticas públicas, onde se procede ao mapeamento de variáveis relevantes para a descrição e compreensão de situações-problema deflagradoras de programas de ação governamental. Isso porque a enunciação de uma única estratégia de ação exigível, formulada na decisão, homogênea e aplicável igualmente a Estados e Municípios, decerto desconsidera elementos influentes na realidade local, e nos potenciais resultados do modelo único que se propõe desenvolver. Em que pese a evidente sensibilidade do tema da população em situação de rua, a construção de uma solução jurídico-institucional como pretende a figura do estado de coisas inconstitucional, requer uma diagnose que contemple essa mesma dimensão  até para direcionar de forma objetiva e adequada, os respectivos deveres de ação.

A aplicação à hipótese, como medida preliminar ao desenho de estratégias de ação, do quadro de problemas de políticas públicas exigiria a delimitação, segundo as autoras, dos seguintes elementos: 1) situação-problema; 2) diagnóstico situacional; 3) solução hipotética; 4) contexto normativo; 5) processo decisório; 6) etapa atual do processo decisório; 7) arena institucional; 8) protagonistas; 9) antagonistas; 10) decisores; e 11) recursos de barganha. Destaque-se que esses mesmos elementos, uma vez coligidos, permitiriam a identificação de eventuais bloqueios institucionais que estivessem a impedir o enfrentamento do problema público sob escrutínio  a partir uma perspectiva concreta, e não de virtuosas intenções do julgador.

Vem-me à mente, o binômio cunhado por Rodríguez-Arana Muñoz [3], que caracterizaria a boa administração: abertura à realidade e pensamento compatível. A construção do referido quadro oportunizaria a abertura à realidade do problema público sub examine em toda a sua complexidade; e por via de consequência, um pensamento compatível na construção da solução. Não é o que se viu na decisão, que parece fundada muito mais nas virtudes iluministas auto-proclamadas pela Corte, que no conhecimento aprofundado do problema em dimensões outras, que não a da força retórica da questão social envolvida.

Finalmente, mas não menos importante, é de se destacar mais um espaço negligenciado na decisão, a saber, aquele do acompanhamento do que se venha a apresentar em cumprimento à ordem judicial  seja o plano exigido da União, sejam as ações reclamadas de Estados e Municípios, sejam os elementos de informação assinalados igualmente a estes últimos. Em texto anterior  "Estado de coisas inconstitucional e bloqueios institucionais: desafios para a construção da resposta adequada[4], já havia destacado a relevância de instrumentalizar-se a Corte para a recepção e análise dos elementos de informação que se produzam ao longo da execução da ordem. E só a identificação dos pontos reais de estrangulamento em qualquer dos componentes do problema público que permitirá o avanço no rumo da solução.

No caso concreto, a própria vagueza dos termos em que se enunciou as informações a serem prestadas por Estados e Município já permite antever  ainda que na hipótese otimista de que todos eles observem o prazo de 120 dias  dificuldades na decodificação do informado, de modo a permitir qualquer juízo de semelhanças e diferenças; de adequação ou inadequação de providências já desenvolvidas. A par disso, a ordem enuncia deveres concretos de ação, como a distribuição de barracas (item II.10.1) ou ainda a oferta de lavanderias sociais de fácil acesso para população em situação de rua (II.5.6, in fine), cujo cumprimento ou justificativa para inação exigem igualmente consolidação e análise  até mesmo para subsidiar eventual revisão do originalmente decidido. Sem estrutura organizacional adequada para esse tratamento de informações, a tendência é de que a decisão judicial recaia no limbo das dificuldades burocráticas vividas por cada qual de seus destinatários.

Problemas públicos de dimensão nacional  é preciso entender  não chegaram a este ponto por desídia ou incúria de gestores públicos. Nenhuma alta autoridade no âmbito do Executivo se compraz com a visão de população em situação de rua em seu próprio território. A questão é delicada, e compreende dificuldades de várias matizes. A solução não se constrói a partir de fórmulas genéricas, construídas com base em enunciações teóricas não testadas pelo contato com a realidade dos fatos.

Retomar a orientação da tese fixada no Tema 698 parece o caminho mais adequado. Não se estaria com isso a optar por uma autocontenção limitadora, mas por um caminho de construção informada de solução. Há virtude na atuação jurisdicional que, identificando os bloqueios jurídico-institucionais, contribui para a sua superação  mais do que naquela que proclama um poder de transformação que o Judiciário por si só não tem.

 


[1] A título de ilustração, destaco o item II.5.4 da decisão onde se referenda a medida liminar, onde o comando a Estado e Municípios está assim enunciado: "garantam a existência de bagageiros para as pessoas em situação de rua guardarem seus pertences".

[2] RUIZ, I., e BUCCI, M. P. D. (2019). Quadro de problemas de políticas públicas: uma ferramenta para análise jurídico-institucional.. REI – REVISTA ESTUDOS INSTITUCIONAIS, 5(3), 1142–1167. https://doi.org/10.21783/rei.v5i3.443.

[3] RODRÍGUEZ-ARANA MUÑOZ, Jaime.  El buen Gobierno y la buena administración de instituciones públicas. Adaptado a la Ley 5/2006 de 10 de abril. Navarra: Thompson Aranzadi, 2006.

[4] VALLE, Vanice Lírio do. Estado De Coisas Inconstitucional e Bloqueios Institucionais: Desafios para a construção da resposta adequada. Teoria Institucional e Constitucionalismo Contemporâneo, 2016.

Autores

  • é professora da Universidade Federal de Goiás, visiting fellow no Human Rights Program da Harvard Law School, pós-doutora em Administração pela Ebape-FGV, doutora em Direito pela Universidade Gama Filho, procuradora do município do Rio de Janeiro aposentada e membro do Instituto de Direito Administrativo do Estado do Rio.

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