Opinião

Como descriminalizar a maconha sem o Estado assumir a venda?

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28 de agosto de 2023, 14h15

Depois do juiz das garantias o assunto mais falado é o da descriminalização da maconha, que está sendo julgada no do Recurso Extraordinário nº 635659-SP.

O tema é espinhoso. Será tarefa do Supremo Tribunal Federal decidir sobre a matéria? Trata-se de política pública. Logo…

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Mas o tema é urgente. Claro que é. E entendo (acreditem, muito) as críticas ao Parlamento por não enfrentar o tema. Inclusive, essas críticas fazem parte da democracia. Só que aceitar o papel institucional de cada um dos poderes também na democracia tem bônus. E tem ônus. Tudo afinal se resolve no Judiciário? E se ele errar, para quem recorremos? É uma questão importante para se ter mente.

Até o momento do pedido de vista do ministro André Mendonça, temos que há cinco votos a favor da não criminalização do usuário, em quantidade ainda em aberto.

É um avanço esse resultado dos votos do STF? Sim. Concordo com a decisão. Porém, temos de reconhecer que se trata de um problema complexo que pode estar recebendo uma resposta simples. Com efeito, permito-me apresentar alguns pontos sobre o tema, para reflexão:

1. Inicialmente, para esclarecer o grande público, a lei penal não fala em maconha; fala em substância entorpecente (artigo 28 da Lei) e para isso tem a lista da Anvisa — portanto, não existe crime de porte de maconha; consequentemente, não há descriminalização do uso da maconha, embora o resultado seja esse;

2. A decisão — até aqui — diz que é inconstitucional punir o usuário; mas apenas o usuário que compre ou possua até x gramas; portanto, não é descriminalização total do uso;

3. Portanto, se a decisão é por "descriminalizar" o porte e uso de de substância entorpecente (maconha) até uma quantidade (algo em torno de 25 a 60 gramas – ainda será definido), teremos de enfrentar o que denomino de Fator Jhering (da Luta pelo Direito): "se tenho direito a uma servidão de passagem, como posso ser proibido de deixar rastros?"

4. Isto é: se alguém pode possuir e usar, é porque ele pode comprar; a maconha não é maná que cai do céu; tem de adquirir (ou receber gratuitamente ou por escambo); se ele pode comprar, deve ser de alguém que vende; se esse alguém vende algo cujo consumo não é mais criminalizado, por que cometeria crime de venda de uma coisa que não é crime? Parece algo pueril, mas qual o sentido de permitir o uso se para usar tem de comprar de alguém que está proibido de vender — e se fizer a venda, cometerá crime hediondo? Isso é importante.

5. Na teoria, o usuário já não poderia, há anos, ser aprisionado por ser simplesmente usuário; o problema é que vem sendo preso e confundido com traficante. Como assim, "confundido"? Se já decidimos o resultado do carnaval com décimos de pontos, não temos ainda condições de saber o que é "bagatela" e distinguir um usuário de um traficante? Fracassamos a esse ponto? No futebol, até gol anulamos por off side de 2 centímetros (incrível, mas é isso!) e não sabemos a diferença entre usuário e traficante? Não esqueçamos da "análise exauriente do delegado de polícia para distinguir usuário de traficante"… Ou seja, ao fim e ao cabo, dá no mesmo. É a polícia que dirá quem é usuário e quem é traficante: "sujeito estava em ponto de tráfico e fugiu quando viu a polícia. Foi encontrado com 40 g" — é traficante, ainda que seja pouca a quantidade. Este é o Brasil.

O que estão ensinando nas faculdades? E o que estão perguntando nos concursos? Portanto, quem garante que os "usuários" pós-descriminalização de até x gramas não continuarão a ser confundidos com traficantes? Trocaremos de polícia, MP e PJ? Como olhar o novo com os olhos do velho?

Observemos o absurdo: um terço da população carcerária (mais de 200 mil) são presos por tráfico. Isto quer dizer que temos mais de 200 mil traficantes? Nunca ninguém estranhou esse número de "traficantes"?

6. Há que se pensar seriamente em colocar à venda essa substância (e/ou sementes para plantio); ou ainda — e aqui teremos um grande impasse "lógico" (consumo lícito, venda proibida) — não considerar crime a venda, o que acarretaria o problema da liberação total.

7. Sem que o Estado forneça a droga (e como isso seria feito? Lojas oficiais, como em outros países?), o problema persistirá e poderá até aumentar o “negócio” do tráfico. Explico: não dá para discutir a despenalização do artigo 28 sem pensar na atividade da venda. Questão de lógica. Questão conceitual até. Compra pressupõe venda. Pois do jeito que o Supremo está julgando e vai terminar decidindo, o porte para consumo não será crime, mas a venda continuará sendo (Fator Jhering). Ou seja, se o "consumidor" tiver a sorte de comprar e não ser flagrado comprando, ok, pode usar ou portar a sua substância. Agora se ele for pego em flagrante? O comprador seria liberado enquanto o vendedor seria preso em flagrante por tráfico — crime hediondo? Ou se o vendedor estiver vendendo apenas uma pequena quantidade, como fica?

8. Outra medida para o usuário não depender do traficante seria a liberação do plantio para uso recreativo. Aliás, a Lei de Drogas, no art. 2.º, parágrafo único, faculta à União autorizar o uso e plantio de maconha em determinadas circunstâncias. Permitir que cada consumidor cultivasse para si, assim como pessoas tem em suas casas boldo, cidreira etc. Mas teria que autorizar a compra da semente ou como já tem algumas ONGs que fazem tratamento com cannabis para certas doenças, tal como ansiedade e epilepsia. Estas poderiam fornecer. De forma controlada…, mas talvez isso também caia no mesmo ciclo de causalidade (toda cadeia) já posta acima.

9. Em síntese, sem a entrada do Estado — Poder Executivo no jogo — parece que ficaríamos nesse impasse "comprador lícito-vendedor ilícito". Parece evidente que a liberação da maconha está ligada à oficialização via Estado. Para ser para valer. Só assim se combate ao tráfico.

10. Além de tudo isso, para que seja viável transformar em não crime o ato de portar e usar substância entorpecente na quantidade x ou y, teremos de discutir se em determinadas circunstâncias – drogas pesadas – não se trata de saúde pública e não uma questão de direito individual. 

Eis os pontos para reflexão. Se quisermos liberar o uso e evitar o massacre carcerário de hoje (e esse parece ser o ponto!), o Poder Executivo tem de entrar em campo, junto com o Poder Legislativo.

Todo problema complexo que tem uma resposta simples tem grande possibilidade de ter uma resposta errada.

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