Opinião

Uma pena que nunca termina

Autor

  • Marcelo Semer

    é desembargador do TJ-SP (Tribunal de Justiça de São Paulo); autor de "Sentenciando Tráfico — O Papel dos Juízes no Grande Encarceramento" (Tirant lo Blanch) e "Os Paradoxos da Justiça: Judiciário e Política no Brasil" (ed. Contracorrente).

27 de agosto de 2023, 6h34

Até 1996, a pena de multa criminal podia ser convertida em detenção quando não fosse paga. Era uma espécie remanescente de prisão por dívida e, ainda que a lei falasse em "solvente", pesava como ameaça sobre a população pobre, a que é mais atingida pela vigilância da polícia e, por consequência, pelas condenações criminais.

A mudança do artigo 51 do Código Penal, proposta por iniciativa do Executivo, na gestão de FHC, transformou a multa em "dívida de valor", mandando que se aplicassem as normas da cobrança das Fazendas Públicas. Verdade é que houve uma certa divergência se eram os agentes da Fazenda ou do Ministério Público que deveriam promover as execuções. Mas elas eram em regra de valores baixos, sobre réus pobres e tinham pequeno impacto.

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Duas mudanças, no entanto, alteraram completamente este patamar e ajudaram a colocar a execução das multas no panteão das questões mais candentes hoje do sistema penitenciário.

Primeiro, a nova Lei de Drogas editada no governo Dilma. Entre as mudanças que ela trouxe, um incremento bem significativo nos valores das multas. O sistema original do Código mandava o juiz começar a fixação das penas em dez dias-multa e a partir daí subindo de acordo com causas de aumento e agravantes, sendo o dia-multa calculado, no mínimo, em 1/30 do salário. Mas o legislador dos entorpecentes foi ambicioso: elevou o patamar para 500 a 1.500 dias-multa; e mais 700 a 1200 se houvesse associação.

Não se sabe se o legislador supunha que a repressão ao tráfico incidiria sobre grandes traficantes, mas a história se encarregou de mostrar o contrário: foram milhares de micro-traficantes levados à prisão, com volumes quase irrisório de dinheiro apreendido. A pesquisa nacional que o Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) está disponibilizando aos poucos mostra bem esse quadro, que, de resto, já havia sido flagrado pelos seguidos Censos Penitenciários.

O golpe final se deu em 2018, quando o STF, instado pelo julgamento de uma questão de ordem trazida pelo ministro Luis Roberto Barroso, a partir do processo do "mensalão", mudou o entendimento do artigo 51. O tribunal inseriu nele, sob o "entendimento conforme a Constituição" a regra de que caberia ao Ministério Público, em 90 dias, a execução da multa, que, realçaram, "não havia perdido seu caráter penal".

O resultado desse conjunto de mudanças é uma combinação de penas altíssimas aplicadas a réus muito pobres, empobrecidos, ademais, pelo tempo em que passaram presos. Os egressos não estão conseguindo a extinção de sua punibilidade, porque, depois de cumprir na cadeia a pena privativa de liberdade, não tem como pagar dez, quinze, vinte mil reais de multa.

O STJ bem que tentou atenuar a situação, esclarecendo, no Tema 931, que quem comprovasse a hipossuficiência podia ser dispensado desse pagamento, mas claramente não foi suficiente. Não só é difícil fazer a prova negativa, como demorada, diante de um processo de execução com incontáveis diligências em busca de valores, até que o juiz conclua pela impossibilidade de que um condenado desempregado consiga quitar seus 500 dias-multa….

A pena, que deveria ter uma dimensão ressocializadora, está afastando os egressos do mercado formal, pois sem a extinção da punibilidade não têm acesso a documentos básicos, como o título de eleitor. Em uma palestra recente, ouvi a história de uma presa que no sistema conseguiu se formar em enfermagem, mas que, solta, sem condições de pagar a dívida remanescente, não alcançara o registro no conselho. E muitas mães que reclamam que os filhos, sem posse do título de eleitor, não conseguiam trabalhar. Não falta força, do próprio Estado, para empurrar os egressos para a ilegalidade.

A transplantação para a criminalidade do dia-a-dia das luminares ideias da "lava jato" não deu certo com as "Dez Medidas" do Deltan, com o "projeto anticrime" do Moro. Mas acabou funcionando com a releitura da lei sugerida por Barroso, a partir da provocação da Ação Penal 470.

As execuções de penas de multa não estão apenas entupindo os escaninhos da Justiça; estão atrasando fortemente a reintegração social dos egressos.

Autores

  • é juiz de Direito, escritor, mestre em Direito Penal e doutor em Criminologia, ambos pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

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