Ambiente Jurídico

Brasil não tem obrigação de devolver o canhão El Cristiano ao Paraguai

Autor

  • Marcos Paulo de Souza Miranda

    é promotor de Justiça em Minas Gerais coordenador do Centro de Apoio Operacional das Promotorias Criminais (Caocrim) e membro do International Council of Monuments and Sites (Icomos).

26 de agosto de 2023, 8h00

Também conhecida como Guerra da Tríplice Aliança, a Guerra do Paraguai, ocorrida entre 1864 e 1870, foi o conflito militar mais duradouro e sangrento ocorrido na América Latina durante o século 19, restando mortos entre 150 mil a 300 mil soldados de quatro nacionalidades.

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Deflagrada em dezembro de 1864, a guerra envolveu, de um lado, o Brasil, a Argentina e o Uruguai e, de outro, o Paraguai, que era então governado por Francisco Solano Lopes. O conflito teve início com a o aprisionamento, pelos paraguaios, de uma embarcação brasileira (Marquês de Olinda), que navegava pelo rio Paraguai em direção a Cuiabá, e com a invasão do atual Mato Grosso do Sul por cerca de 7.700 soldados paraguaios.

Na sequência, foram travadas renhidas batalhas, sobretudo pela esquadra de navios dos países da Tríplice Aliança, que tiveram enorme dificuldade para romper as fortalezas situadas ao longo do Rio Paraguai, a exemplo da de Humaitá, que barrava a passagem até Assunção e estava guarnecida com mais de 180 canhões, alguns deles tão poderosos que receberam nomes específicos, a exemplo do El Cristiano, que pesava doze toneladas e foi fundido, em 1867, com o bronze obtido de sinos de igrejas paraguaias, o que lhe valeu a denominação, que está assim gravada na avantajada peça de guerra: El Cristiano. La Religion al Estado.

Segundo o historiador Adler Homero da Fonseca Castro [1]:

"As forças armadas aliadas levaram mais de dois anos para superar esse obstáculo, com a perda de milhares de vidas. Para que o esforço e sacrifícios desses homens não fossem esquecidos pelas futuras gerações, os comandantes das forças brasileiras, Caxias, Osório e Tamandaré, enviaram lembranças capturadas no campo de batalha: bandeiras, tambores e armas, para serem incorporados aos acervos dos museus do Brasil. Uma prática comum nas guerras, tanto é que em museus militares paraguaios podem ser vistas armas brasileiras no museu de Vapor Cué está o navio brasileiro Anhabahy, um dos que foi capturado pelas forças de Solano Lopez quando estas invadiram o Mato Grosso do Sul."

Ou seja, houve a tomada de espólios da guerra de ambos os lados e muitos bens que eram de propriedade brasileira ainda hoje se encontram em território Paraguaio, apesar do Brasil ter devolvido, entre os anos de 1940 e 1980, diversos objetos ao país vizinho, como bandeiras, documentos e a espada que havia pertencido a Solano Lopez.

Contudo, em recente manifestação na imprensa, o presidente do Paraguai, o conservador de direita Santiago Peña, manifestou a forteintenção de repatriar uma das poucas peças que permaneceram no Brasil: o canhão El Cristiano, para cá trazido como troféu de guerra e em memória dos milhares de brasileiros que sucumbiram no sangrento conflito.

Então pergunta-se: estaria o Brasil juridicamente obrigado a restituir o poderoso e histórico armamento, que desde 1922 se encontra no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro?

A resposta é negativa.

Na década de 1860, quando foi tomado El Cristiano, o Direito Internacional previa que os bens capturados do inimigo, durante a ação de guerra, eram considerados "botins de guerra" e que pertenciam à potência captora, que deles podia fazer uso, sem restrições. Somente em 1899 surgiria, com a Convenção de Haia, o primeiro documento internacional proibindo a pilhagem, documento este do qual o Brasil não foi signatário e que não tem eficácia retroativa [2].

O saudoso doutrinador José Eduardo Ramos Rodrigues, discorrendo sobre a inviabilidade da aplicação ao caso da Convenção sobre as Medidas a serem Adotadas para Proibir e Impedir a Importação, Exportação e Transferência de Propriedade Ilícita de Bens Culturais (Paris, Unesco, 7/11/1970), asseverava em 2010 [3]:

"Os tratados internacionais não têm efeito retroativo. Apenas após a entrada em vigor no plano internacional (no caso em tela, três meses após a data de depósito do terceiro instrumento de ratificação, conforme o art. 21 da Convenção) e na ordem jurídica interior brasileira (que ocorreu através da ratificação realizada pelo citado Decreto Legislativo nº 71/72) é que o tratado passa a integrar cada uma dessas ordens. Portanto, não pode ser considerada ilícita a transferência de um canhão, adquirido em virtude de guerra, de um país a outro, quando tal fato ocorreu há mais de cem anos."

De tal sorte, o canhão El Cristiano foi incorporado ao patrimônio brasileiro de forma lícita e de conformidade com os costumes da época, não havendo motivação jurídica que imponha o dever de sua devolução.

Assinale-se que nem mesmo motivações éticas podem ser validamente invocadas no caso sob análise, uma vez que o Código Internacional de Ética dos Museus estabelece que a restituição de bens musealizados ao seu país de origem só é obrigatória quando o objeto "tenha sido exportado ou transferido violando os princípios estabelecidos nas convenções internacionais e nacionais" [4].

Mas outro ponto de relevo merece ser destacado: em razão de seu valor cultural, desde 2009 que o canhão está tombado como patrimônio cultural brasileiro pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – Iphan, juntamente com todo o acervo do Museu Histórico Nacional.

O tombamento da peça a coloca sob o regime jurídico dos bens protegidos pelo Decreto-Lei nº 25/1937, que assim dispõe:

"Art. 14. A. coisa tombada não poderá sair do país, senão por curto prazo, sem transferência de domínio e para fim de intercâmbio cultural, a juízo do Conselho Consultivo do Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.

Art. 15. Tentada, a não ser no caso previsto no artigo anterior, a exportação, para fora do país, da coisa tombada, será esta sequestrada pela União ou pelo Estado em que se encontrar.

§ 1º. Apurada a responsabilidade do proprietário, ser-lhe-á imposta a multa de cinquenta por cento do valor da coisa, que permanecerá sequestrada em garantia do pagamento, e até que este se faça.
§ 2º. No caso de reincidência, a multa será elevada ao dobro.
§ 3º. A pessoa que tentar a exportação de coisa tombada, além de incidir na multa a que se referem os parágrafos anteriores, incorrerá, nas penas cominadas no Código Penal para o crime de contrabando."

Logo, sem prejuízo da responsabilidade administrativa, a pessoa que intentar a exportação do bem tombado ficará sujeita à pena de um a quatro anos de reclusão prevista pelo artigo 334, § 1º, b, do Código Penal.

Em arremate, a Constituição brasileira consagra o princípio da conservação in situ de nossos bens culturais e impõe o dever do poder público, em todas as suas esferas, impedir a evasão, a destruição e a descaracterização de obras de arte e de outros bens de valor histórico, artístico ou cultural (artigo 23, IV).

Por todo o exposto, não se mostra juridicamente obrigatória, nem tampouco viável, a restituição do canhão El Cristiano ao Paraguai.

Tal fato, entretanto, em razão da amizade que hoje nos une ao país vizinho, não impedirá que os paraguaios possam visitar o famoso canhão no Museu Histórico Nacional, no Rio de Janeiro, assim como não obstará que nós, brasileiros, por reciprocidade, possamos visitar o vapor Anhabahy (que integrava a Armada Imperial Brasileira) no Museu do Parque Nacional Vapor Cué, sediado a 4 km da cidade Caraguatay, Departamento de Cordillera, no Paraguai.

 


[1] A última trincheira da Guerra do Paraguai. A devolução do canhão El Cristiano. Universidade Federal de Juiz de Fora.

[2] HOIÇA, Jaqueline de Jesus e GUEDES, Sandra Paschoal Leite de Camargo. As imaterialidades do material: a repatriação do canhão El Cristiano ao Paraguai. Anais do Museu Paulista. São Paulo, Nova Série, vol. 29, 2021, p. 1-32.

[3] O caso da devolução do canhão "El Cristiano" ao Paraguai. Revista Magister de Direito Ambiental e Urbanístico. Porto Alegre, v. 6, n. 31, ago. 2010. p. 82

[4] Item 6.3 do Código de Ética do ICOM, aprovado por unanimidade pela 15ª Assembleia Geral do ICOM realizada em Buenos Aires, Argentina, em 4 de Novembro de 1986

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