Repensando as Drogas

A estigmatização do "fumo negro": do chicote ao blindado

Autor

  • Felipe Morais Barbosa

    é juiz de Direito no TJ-GO (Tribunal de Justiça do Estado de Goiás) graduado em Direito pela UFJF (Universidade de Juiz de Fora); pós-graduado em Direito pela Emerj (Escola de Magistratura do Rio de Janeiro) mestre em Direito Constitucional pelo IDP (Instituto Brasileiro de Desenvolvimento e Pesquisa) pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Enfam (Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados).

25 de agosto de 2023, 8h00

O combate às drogas se refere, em grande medida, ao combate à maconha. Dados do Relatório Mundial [1], publicado pelo Escritório da ONU sobre Drogas, aponta que a cannabis, ou maconha, cujas flores são usadas com efeitos psicoativos, continua sendo a substância entorpecente proscrita mais utilizada em todo o mundo, com cerca de 200 milhões de usuários.

ConJur
Pesquisa recente da Fiocruz [2] demonstra que a maconha é a droga mais consumida no Brasil. O consumo é superior ao dobro do segundo entorpecente ilegal mais utilizado, a cocaína.

Alterar a maneira como a cannabis é tratada na legislação implica modificar, substancialmente, a própria política de drogas. No Brasil, país com a pior política de entorpecentes do mundo [3], a assertiva ganha contornos ainda mais significativos.

A história mundial das drogas sempre foi dotada de muita valoração subjetiva. Critérios médico-sanitários foram deixados em segundo plano. Por vezes, a xenofobia, o racismo, o puritanismo, o sexismo, são vetores mais relevantes que a "saúde pública" (bem jurídico tutelado pelas Leis de Drogas). A proibição da cannabis no Brasil é um exemplo alegórico de discriminação e "racismo científico" (utilização de métodos científicos para justificar o preconceito racial).

A criminalização da maconha, em solos nacionais, precedeu a proibição norte americana (Marihuana Tax Act 1937). Ressalta-se que os EUA são os criadores da política que colocou as drogas como inimiga número do Estado e da segurança pública.

O primeiro documento que restringiu o uso da maconha no Brasil foi elaborado pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro, em 1830 [4]. Em âmbito nacional, a proibição ocorreu durante o governo Vargas, em 1932.

O pioneirismo nacional, infelizmente, não advém da elevada sensibilidade dos nossos gestores públicos com a saúde da população. A razão é o pânico social que norteou as classes dominantes no século passado. Era necessário controlar os "corpos negros" recém libertos da escravidão. Nossa iniciativa está umbilicalmente relacionada ao nosso processo de colonização e escravização.

O Brasil foi o país que mais recebeu escravos (cerca de cinco milhões [5]) vindos de África. Também é o Estado-nação que por mais tempo manteve a economia baseada no sistema escravagista. A mão de obra africana esteve presente na exploração do pau-brasil, no ciclo da cana-de-açúcar, no ciclo do ouro, borracha, algodão e no ciclo do café. Adotou-se o sistema escravagista em toda extensão territorial. Além disso, foi o último país das Américas a abolir a escravidão.

Foram mais de 300 anos de escravidão sistêmica. Três séculos de construção de estruturas estatais, socioeconômicas, alicerçadas na exploração, imposição, privilégios, preconceitos, e valorização da "branquitude". Circunstâncias que possuem um peso na história e não desaparecem repentinamente. Ao contrário, as tensões sociais visam a manutenção do status anterior.

Ainda no ano de 1915, na ocasião do 2º Congresso Científico Pan-Americano, realizado em Washington, nos EUA, o governo brasileiro enviou seu representante, o médico José Rodrigues da Costa Dória, que apresentou o trabalho "Os fumadores de maconha: efeitos e males do vício[6].

O uso da maconha, apelidada na época de "liamba", "diamba", "pito de pango" ou "fumo de Angola", era tratado como parte dos hábitos dos afro-brasileiros. Afirmava-se que estávamos diante da "vingança inconsciente" dos escravos que trouxeram de África a planta que "escravizaria" os brancos.

Dr. Dória assegurava que o uso da maconha predominaria nas camadas baixas da população, sendo pouco, ou quase nada conhecido, na parte mais educada e civilizada da sociedade brasileira [7].

O documento elaborado no congresso serviu de referência para toda uma geração de profissionais das décadas seguintes. Naquela oportunidade, se desenvolveu um discurso salvacionista da "raça brasileira". Ao mesmo tempo, eram fortalecidas discriminações de classe e pretextos para projetos de intervenção disciplinar no modo de vida de populações subalternizadas.

Mostrava-se comum nas produções bibliográficas das décadas de 1930 a 1940 a relação associativa de "maconha + pobre + negros + pardos + norte + nordeste" [8].

Gilberto Freyre [9], um dos maiores polímatas e o intelectual mais premiado da história do país, apontava o tabaco como pertencente aos hábitos aristocráticos dos senhores, enquanto a maconha, denominada de "fumo negro", era utilizada pelos escravos.

Apesar do uso médico tradicional da cannabis, indicada pela medicina oficial e popular da época, como um sedativo geral, tratamento de reumatismos, neuroses, insônia, dores de cabeça, diarreias, convulsões, anorexias, dentre outros, a presença da maconha entre comunidades negras e mestiças levou a sua estigmatização como um elemento degenerativo da saúde, da moralidade e da pureza racial.

Internacionalmente a maconha estava longe de ser uma preocupação. Os governos, notadamente nas conferências de Xangai e Haia (1909 a 1912), que possuíam o objetivo de debater o controle de drogas, tinham como foco o ópio e a cocaína.

A proibição da maconha foi mais um elemento de criminalização da cultura negra, a exemplo do curandeirismo (158), vadiagem (399) e capoeiragem (402), tipificados no Código Penal dos Estados Unidos do Brasil de 1890 [10]. Dois anos após a assinatura da Lei Áurea.

No pós-abolição, carregar um pandeiro, ou outro instrumento de percussão, relembrando os "batuques" rurais da senzala, era considerado pelas agências penais como sinônimo de "vadiagem". Não é forçoso afirmar que maconha e pandeiro cumpriram semelhante papel social na fiscalização dos corpos negros.

Tais fatos não só implicam na possibilidade de encarcerar a população "indesejável", fazendo uma gestão social da pobreza, como nutre a sociedade de preconceitos. Criamos em nosso (sub)consciente um estereótipo do criminoso.

Bezerra da Silva (1927-2005), famoso sambista brasileiro, ícone da construção identitária do malandro negro, além de versar sobre a maconha em várias músicas, trouxe um retrato da repressão estatal à cultura e religião negra, ao cantar que: "a 39ª (delegacia) baixou no feitiço / descendo a lenha em toda entidade / Coitado do Tião foi prestar conta na Delegacia / apanhava igual a tambor de macumba".

"A voz do morro" representava tudo àquilo que se objetivou controlar e que refletia características atribuídas aos negros: "maconheiros"; "preguiçosos"; "supersticiosos"; "depravados", "primitivos"; e "beberrões".

Ao que consta, Bezerra não fazia uso de álcool, maconha e/ou outras substâncias entorpecentes. Fato que não evitou que fosse detido 21 vezes para averiguação.

Os anos foram passando e nosso preconceito sendo canalizado de forma sutil (ou talvez covarde, para utilizar a expressão de Abdias Nascimento [11]) para outras esferas da vida cotidiana. As estatísticas demonstram que a realidade de outrora ainda se faz presente. Maconha, negro e encarceramento, são expressões que caminham juntas e figuram no topo de qualquer pesquisa criminal. Conforme aponta o Anuário Brasileiro 2023 [12], o Brasil encarcera majoritariamente pessoas negras, em proporção muito superior à média populacional.

A Lei Estadual do Rio de Janeiro nº 3.410/2000 [13] é um exemplo emblemático da manutenção da fiscalização discriminatória verificada no pós-abolição. Referida lei, que teve sua previsão normativa replicada por outros entes federativos, tinha como objetivo a regulamentação os bailes "tipo funk". O artigo 3º previa que só seria permitida a realização de bailes funks com a presença de policiais militares, do início ao encerramento do evento.

O problema primordial não é a presença obrigatória da Polícia Militar em algo alusivo a cultura negra e periférica. Ao que pese não nos importamos (ao menos na mesma intensidade), com a venda e consumo de drogas, prostituição infantil e apologia ao crime, nas raves e/ou shows de rock. As drogas, utilizadas nestes ambientes, tem controle reduzido pelas agências formais (polícia, Ministério Público, Poder Judiciário) e informais (comunidade, opinião pública etc.). Os entorpecentes ganham ares de liberdade e diversão.

O imbróglio maior é a simbologia que advém do deslocamento de agências penais somente para determinados locus sociais. Passamos a correlacionar os moradores de favela aos bailes funk, às drogas e a participação em facções criminosas. O usuário de maconha, situado às margens do asfalto, é o criminoso, vadio e inconsequente. Um entrave ao progresso. A escória da sociedade.

O preconceito social, adicionado a forma de se fazer segurança pública no Brasil, militarizada e de enfrentamento, valorizando mais o flagrante à investigação minuciosa, cria o cenário perfeito para despejar os indesejáveis nos estabelecimentos prisionais Brasil afora. A justificativa escamoteada, um punhado de "maconha" apto a lesionar a "saúde pública".

Tal qual no milênio passado, em que o pânico social atribuído a maconha, na verdade se referia ao medo do escravo, do negro recém liberto, e dos moradores dos cortiços, no Brasil "democrático", nossa insegurança, ainda atribuída a maconha, tem como pano de fundo o "favelado". O chicote cedeu lugar às barcas e ao blindado. O tronco fora substituído pelo aço. A cor da pele e pobreza, contudo, permanecem sendo elementos fomentadores do pânico social e passiveis de aprisionamento.

Pesquisa inédita do Ipea [14], tendo como objeto mais de 5 mil processos por tráfico de drogas no Brasil, mostra que negros são alvo de prisões com baixo número de provas.

Necessário falarmos sobre drogas, sem preconceitos, sem tabus.

No final de 2020 a Comissão de Drogas Narcóticas das Nações Unidas retirou a maconha da lista de substâncias consideradas mais perigosas. Em janeiro de 2019, a Organização Mundial da Saúde (OMS) havia recomendado mudanças nas medidas aplicadas à cannabis [15].

Reconhece-se que maconha é diferente das principais drogas proibidas no século 20. Cocaína e heroína, por exemplo, foram desenvolvidas pela indústria. São basicamente uma molécula, replicada aos montes (criando-se o efeito farmacológico concentrado). A maconha é um complexo de moléculas. Existem diversos canabidioides como o THC e o CBD que possuem efeitos diferentes e contrabalanceadores. Ambos com diversos potenciais medicinais.

Recente relatório elaborado pela Comissão Global de Política Sobre Drogas, com o título "Classificação de Substâncias Psicoativas: quando a ciência foi deixada para trás" [16], criticou de forma veemente os aspectos subjetivos do sistema proibicionista. O estudo aduz que a atual classificação está repleta de incoerências e parcialidades históricas irremediáveis.

Especialistas de diversas áreas relacionadas à problemática das drogas, ao avaliar a capacidade destas de produzir danos ao usuário ou a terceiros, demonstraram que o status legal de uma substância psicoativa não se correlaciona diretamente à sua capacidade de produzir dano [17].

O pânico racial e social, que acarretou a proibição de várias substâncias entorpecentes ao longo do século passado, em especial a maconha, vem perdendo força mundo afora. O olhar racializado e proibicionista cede espaço à "redução de danos" e ao debate aberto sobre tóxicos.

Lutemos para que o Brasil, diferentemente da escravidão, não seja o último país das américas a revisitar sua legislação de drogas. Basta de invasões à domicílio, abordagens injustificadas, agressões, torturas, execuções sumárias, condenações sem provas e encarceramento em massa de pretos e pobres em virtude de uma porção de maconha

Provável que muitos já tenham feito o seguinte exercício de reflexão: olhar para o passado e pensar nas perversidades cometidas pelos nossos semelhantes. Filosofar sobre as atrocidades ocorridas nos navios negreiros e nas senzalas. E mesmo considerando o anacronismo, nos enjoarmos e envergonharmos de nossos antepassados.

Será que no futuro nossos descendentes não olharão para a nossa geração e pensarão: como eles puderam ser tão cruéis?

Ainda podemos mudar o curso da história!

 


[1] UNODC, 2022. Disponível em: https://www.unodc.org/res/wdr2022/MS/WDR22_Booklet_3.pdf. Acesso em 28 de jul. de 2023.

[2] FIOCRUZ, 2017. Disponível em: https://www.arca.fiocruz.br/handle/icict/34614. Acesso em 28 de jul. de 2023.

[3] GLOBAL DRUG INDEX, 2021. Disponível em: https://ponte.org/wp- content/uploads/2021/11/2021-10-27_GDPI-Analytical-report_FINAL.pdf. Acesso em 28 de jul. de 2023.

 

[4] SAAD, Luísa. Fumo de negro: a criminalização da maconha no pós-abolição. Salvador: EDUFBA, 2018.

[5] LAURENTINO, Gomes. Escravidão: do primeiro leilão de cativos em Portugal até a morte de Zumbi dos Palmares, volume 1. 1ª ed. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.

[6] BRASIL. Ministério da Saúde. Maconha: coletânea de trabalhos brasileiros. Disponível em: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/maconha_coletania_trabalhos_brasileiros_2ed.pdf. Acesso em 28 de jul. de 2023.

[7] SOUZA, Jorge Emanuel Luz de. Sonhos da Diamba, controles do cotidiano: uma história da criminalização da maconha no Brasil republicano. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA, 2015.

[8] SOUZA, Jorge Emanuel Luz de. Sonhos da Diamba, controles do cotidiano: uma história da criminalização da maconha no Brasil republicano. Salvador: EDUFBA, CETAD/UFBA, 2015.

[9] FREYRE, Gilberto. Nordeste. Global: São Paulo: 2004.

[10] BRASIL. Decreto nº 847, de 11 de outubro de 1890. Código Penal dos Estados Unidos do Brasil. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1851-1899/D847.htmimpressao.htm. Acesso em 28 de jul. de 2023.

[11] PORTAL GELEDÉS. "O racismo fica escancarado ao olhar mais superficial", entrevista Abdias Nascimento. Disponível em: https://www.geledes.org.br/o-racismo-fica-escancarado-ao-olhar-mais-superficial-entrevista-abdias-nascimento/. Acesso em 29 de jul. de 2023.

[12] FÓRUM BRASILEIRO DE SEGURANÇA PÚBLICA, 2023. Disponível em: https://forumseguranca.org.br/wp-content/uploads/2023/07/anuario-2023.pdf. Acesso em 29 de jul. de 2023.

[14] A pesquisa fora apresentada na 17ª edição do Encontro Anual do Fórum Brasileiro de Segurança Pública.

[15] G1, 2020. Comissão da ONU retira a maconha de lista de drogas consideradas mais perigosas. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/12/02/comissao-da-onu-aprova-retirar-a-maconha-de-lista-de-drogas-consideradas-mais-perigosas.ghtml. Acesso em 29 de jul. de 2023.

[16] COMISSÃO GLOBAL DE POLÍTICA SOBRE DROGAS. Quando a Ciência foi deixada para trás. Disponível em: http://www.globalcommissionondrugs.org/wp-content/uploads/2019/06/2019-Report-Press-Kit-PORT.pdf. Acesso em 29 de jul. de 2023.

[17] MEDEIROS, Débora. TÓFOLI, Luís Fernando. Mitos e evidências na construção das Políticas sobre drogas. Boletim de análise Político-Institucional. n.18. dez. de 2018. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasviolencia/arquivos/artigos/7788-181206bapi18cap6.pdf. Acesso em 28 de jul. de 2023.

Autores

  • é graduado em Direito pela Universidade de Juiz de Fora (UFJF), pós-graduado em Direito pela Escola de Magistratura do Rio de Janeiro (Emerj), mestre em Direito Constitucional pelo Instituto brasileiro de desenvolvimento e pesquisa (IDP), pós-graduando em Jurisdição Penal Contemporânea e Sistema Prisional pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) e juiz de Direito no Tribunal de Justiça do Estado de Goiás.

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