Paradoxo da Corte

Mandado de segurança contra decisão teratológica do tribunal arbitral

Autor

  • José Rogério Cruz e Tucci

    é sócio do Tucci Advogados Associados ex-presidente da Aasp professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

25 de agosto de 2023, 8h00

O árbitro, consoante o disposto no artigo 18 da Lei nº 9.307/96, "é juiz de fato e de direito", dispondo, na condução do processo arbitral, de amplos poderes instrutórios e decisórios.

A atuação do tribunal arbitral norteia-se pela legalidade, ou seja, subordina-se, no mínimo, ao que se encontra previsto na Lei de Arbitragem e no termo de arbitragem. Isto significa que os árbitros têm a incumbência de seguir uma pauta lógica e previsível, evitando-se açodamentos ou dilações indevidas no iter procedimental.

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Não é preciso dizer que igualmente, no âmbito do processo arbitral, como se infere das disposições da própria Lei nº 9.307/96, incidem os princípios constitucionais que moldam a garantia do devido processo legal, pela qual às partes deve ser assegurado um processo informado pela igualdade de tratamento, em contraditório, no qual proferidos atos decisórios devidamente fundamentados, por um árbitro ou tribunal independente e imparcial, dentro de um prazo razoável.

Saliente-se, outrossim, que, a teor do artigo 21, caput, do citado texto legal: "A arbitragem obedecerá ao procedimento estabelecido pelas partes na convenção arbitral, que poderá reportar-se às regras de um órgão institucional ou entidade especializada, facultando-se, ainda, às partes delegar ao próprio árbitro, ou ao tribunal arbitral, regular o procedimento".

De fato, muitas das disposições que disciplinam o respectivo procedimento são estabelecidas pelas próprias partes em cooperação com o tribunal arbitral e expressamente dispostas no termo de arbitragem.

Seja como for, é certo que o programa procedimental a ser seguido pelos protagonistas do processo arbitral desenvolve-se, em regra, numa ordem lógica até o momento crucial, qual seja, o da prolação da sentença arbitral. Cabe invocar, a propósito, para bem evidenciar a marcha fisiológica do processo arbitral ou estatal, a insuperável lição de João Mendes de Almeida Júnior, no sentido de que "o processo é uma direção no movimento; o procedimento é o modo de mover e a forma em que é movido o ato. Omnis operatur motus dicitur…". Enquanto aquele corresponde ao movimento no seu aspecto intrínseco, este é o mesmo movimento, visualizado, todavia, em sua forma extrínseca, "tal como se exerce pelos nossos órgãos corporais e se revela aos nossos sentidos" (Direito judiciário brasileiro, 5ª ed., atual. João Mendes Neto, Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1960, pág. 243-244).

Ademais, como é cediço, o ato decisório que põe fim ao processo arbitral  sentença arbitral  não desafia recurso algum (artigo 18), porque, segundo o artigo 29 da Lei de Arbitragem, uma vez proferida a sentença, "dá-se por finda a arbitragem", produzindo aquela todos os efeitos que analogamente emergem da decisão emanada do juiz estatal (artigo 31).

Não obstante, a despeito da inexistência de meio processual de impugnação da sentença arbitral, consoante o artigo 33 do diploma legal acima aludido: “A parte interessada poderá pleitear ao órgão do Poder Judiciário competente a declaração de nulidade da sentença arbitral”, nas situações arroladas no precedente artigo 32. Veja-se bem que não se admite, em hipótese alguma, na ação de anulação (rectius: ação declaratória de nulidade), análise do mérito da sentença arbitral.

Observa-se, por outro lado, que a legislação em vigor não prevê qualquer mecanismo para coibir o arbítrio do tribunal arbitral. Como já tive oportunidade de escrever nesta prestigiosa Conjur (13/12/2016), os árbitros podem muito, mas não podem tudo…

A praxe evidencia que, em algumas hipóteses excepcionais, os árbitros cometem errores in procedendo, ou seja, vícios de atividade, quando se desviam do procedimento traçado no termo de arbitragem, invertendo a lógica ou até mesmo — não raro, por despreparo — o bom senso na condução do processo.

E isto ocorre quando, por exemplo, o tribunal arbitral indefere a produção da prova pericial, pleiteada por ambas as partes, numa arbitragem que, pelo seu objeto, a prova técnica se faz absolutamente imprescindível. Em determinadas situações extremadas, a decisão do tribunal arbitral chega mesmo a subverter a ordem do procedimento, causando enorme delonga ou verdadeiro tumulto processual, em detrimento do interesse dos litigantes. Sem falar nos custos e despesas que muitas vezes incorrem as partes para atender à determinação teratológica do tribunal arbitral, que, depois, revelam-se manifestamente desnecessários…

Nestes casos, resta às partes tão-somente, dentro do prazo estipulado no termo de arbitragem, formular pedido de esclarecimento com caráter infringente ou até mesmo submeter um pedido de reconsideração aos árbitros, procurando demonstrar o inarredável error in procedendo, de natureza formal, então cometido.

Mantido o equívoco, desde que seja ele realmente gritante, entendo que não se afasta, em casos absurdos e bem caracterizados, o cabimento de mandado de segurança contra ato ou omissão do tribunal arbitral.

Não se pode perder de vista que o árbitro, de conformidade com a Lei de Arbitragem, é em tudo equiparado ao juiz estatal investido de jurisdição.

O mandado de segurança contra ato jurisdicional é o remédio adequado, segundo dispõe o artigo 1º da Lei nº 12.016/2009, "para proteger direito líquido e certo, não amparado por habeas corpus ou habeas data, sempre que, ilegalmente ou com abuso de poder, qualquer pessoa física ou jurídica sofrer violação ou houver justo receio de sofrê-la por parte de autoridade, seja de que categoria for e sejam quais forem as funções que exerça".

E isso, desde que a decisão espúria desponte irrecorrível, seja pela ausência de previsão legal, seja porque tenha transitado em julgado (cf. artigo 5º da Lei 12.016/2009).

Ressalto que esta questão  delicada sem dúvida  é raramente enfrentada pela nossa doutrina processual arbitralista (v., a propósito, o ensaio de Marina Vessoni Labate Lacaz, Cabimento de mandado de segurança em arbitragem, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, Ed. RT, vol. 11, nº 41, 2014, págs. 265-272; Arnoldo Wald e Rodrigo Garcia da Fonseca, O mandado de segurança e a arbitragem, Revista de Arbitragem e Mediação, São Paulo, Ed. RT, vol. 4, nº 13, 2007, pág. 11-15).

O ministro Francisco Cláudio de Almeida Santos, aceitando o desafio de escrever sobre esta temática, entende que não cabe mandado de segurança contra decisão arbitral atinente ao exame da competência. Estamos plenamente de acordo com tal posicionamento, até porque pelo denominado princípio Kompetenz-Kompetenz, o próprio árbitro é que tem a prerrogativa de delimitar a sua jurisdição (O não-cabimento de mandado de segurança contra ato de árbitro ou tribunal arbitral, Cebramar, 23.11.2023)

Não se pode concordar, contudo, com a posição de que o mandado de segurança não se coaduna com a arbitragem, porque "a regra geral é no sentido de que as impugnações judiciais aos eventuais vícios do procedimento arbitral devem ser feitas a posteriori, tão-somente por ocasião do controle de validade da sentença arbitral final por meios próprios" (cf. Hely Lopes Meirelles, Mandado de segurança e ações constitucionais, 38ª ed., atual. por Arnoldo Wald, Gilmar Ferreira Mendes e Rodrigo Garcia da Fonseca, São Paulo, Malheiros, 2019, pág. 55-56).

Ora, como acima frisado, em algumas situações excepcionalíssimas, o ato viciado consistente em error in procedendo, ofensivo à garantia do devido processo legal, gerador de enorme prejuízo, às vezes, a ambas as partes, reclama controle judicial imediato, porque, caso relegado o seu respectivo controle para momento posterior à prolação da sentença arbitral, o dano irreparável ou de dificílima reparação já se consumou.

No que concerne, ademais, à jurisprudência acerca do cabimento do mandado de segurança contra ato decisório arbitral teratológico, deparei-me com apenas dois precedentes do Tribunal de Justiça de São Paulo.

O primeiro deles, da (então única) Câmara Reservada de Direito Empresarial, no julgamento da Apelação nº 0120145-96.2011.8.26.0100, da relatoria do desembargador Manoel de Queiroz Pereira Calças, prestigiou a sentença de primeiro grau, sob o fundamento de que o árbitro não se equipara à autoridade referida no artigo 1º, parágrafo 1º, da Lei nº 12.016/2009. Anote-se que o Recurso Especial nº 1.584.822/SP, então interposto contra tal acórdão, não foi conhecido por decisão monocrática do ministro Raul Araújo.

O outro importante precedente, no julgamento do recurso de Agravo de Instrumento nº 0284191-48.2010.8.26.0000, pela 5ª Câmara de Direito Público, com voto condutor do desembargador Franco Cocuzza, a despeito de ter admitido a impetração do mandado de segurança contra decisão do tribunal arbitral, deu provimento ao recurso para revogar a tutela antecipada deferida pelo juiz de primeiro grau, que havia determinado a suspensão da produção de prova pericial reputada desnecessária pelo impetrante.

Apesar de ser evidentemente polêmica a questão fulcral aqui abordada, concluo, afirmando que, no angusto limite acima delineado, entendo viável a impetração do mandamus contra ato decisório aberrante, consubstanciado em manifesto error in procedendo, proferido pelo tribunal arbitral.

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  • é sócio do Tucci Advogados Associados, ex-presidente da AASP (Associação dos Advogados de São Paulo), professor titular sênior da Faculdade de Direito da USP, membro da Academia Brasileira de Letras Jurídicas e do Instituto Brasileiro de Direito Processual e conselheiro do MDA.

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