Opinião

O direito de sonhar como mecanismo de erradicação do trabalho infantil

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24 de agosto de 2023, 7h07

No dia 3 de agosto, encerrou-se na sede do Tribunal Superior do Trabalho, com roda de conversa após reexibição do filme Pureza, o Seminário Internacional Trabalho Decente, realizado pela corte como parte do lançamento de uma agenda institucional de promoção do trabalho digno [1].

Aberto com palestra proferida por ninguém menos que o prêmio Nobel da Paz de 2014, Kailash Satyarthi, o evento reuniu iniciativas dos dois programas de fomento a políticas públicas mais eloquentes sob a condução do Conselho Superior da Justiça do Trabalho, Programa de Combate ao Trabalho Infantil e Promoção da Aprendizagem e Programa Nacional de Prevenção de Acidentes de Trabalho, Programa Trabalho Seguro (PTS).

Em um período em que se discutem teses alarmistas de fim do emprego ou do trabalho ou de uma invasão tecnológica que relegue à obsolescência a própria natureza do trabalho humano, as palestras e premiações do seminário permitiram a coleta de informações e mensagens sobre a importância de uma sociedade que precisa agir, devendo almejar um mundo laboral que assegure mínimas condições de dignidade a todas e todos.

Afinal, como diria a intelectual e ativista guianense Andaiye, "o importante é transformar o mundo" [2]. Mas como isso seria possível? Kailash Satyarthi e Felipe Caetano, este último jovem inspirador e ativista no combate ao trabalho infantil, ofereceram a todos nós instigantes caminhos: o primeiro passo é poder garantir especialmente às nossas crianças o direito de sonhar. Sonhar e acreditar que viver em um mundo melhor é uma opção para todos e todas.

Portanto, garantir o direito de sonhar é fazer justiça social. Sem justiça social — secularmente almejada por nosso principal organismo internacional trabalhista, nossa sociedade permanecerá desigual e dividida entre os que podem sonhar desde a infância e os que precisam se submeter ao trabalho infantil para sobreviver.

Não é sem razão que a data de 12 de junho foi eleita como o Dia Mundial de Combate ao Trabalho Infantil. Neste ano de 2023, a Organização Internacional do Trabalho elegeu como um dos temas prioritários da 111ª Conferência Internacional do Trabalho, ancorando-se na ideia de "Justiça social para todos: acabar com o trabalho infantil".

Em discurso sobre a data, o diretor-geral da OIT, Gilbert F. Houngbo, enfatizou que pela primeira vez em 20 anos os números relativos à deflagração de trabalho infantil aumentaram em escala global: em um universo de 160 milhões de crianças, quase um em cada 10 em todo o mundo, estão em situação de trabalho infantil, dentre as quais 80 milhões figuram na lista das formas mais perigosas de trabalho infantil [3].

Somando-se às propostas oferecidas por Kailash Satyarthi e Felipe Caetano, o diretor-geral da OIT sinalizou não só que o trabalho infantil é uma das várias consequências da pobreza e das desigualdades sociais, como também que o trabalho decente para os adultos é o antídoto para o combate ao trabalho infantil.

A criação de postos de trabalho juridicamente protegidos e a atuação da Justiça do Trabalho voltada à promoção do trabalho decente são alguns dos caminhos para evitar que nossas crianças tenham um contato precoce com a experiência do mundo do trabalho.

Com efeito, é necessário perceber que as crianças e adolescentes são particularmente vitimados com as diversas formas de trabalho proibido, particularmente aqueles considerados como priores formas. Torna-se necessário reconhecer que as importantes Políticas Institucionais do Poder Judiciário de Atenção e Apoio às Vítimas de Crimes e Atos Infracionais deve ser progressivamente implementada, refinada e mesmo complementada diante de outras situações de grave violação a direitos humanos, como ocorre no caso da frustração do projeto de sociedade que se pretende para a juventude.

Cumpre destacar que o trabalho decente é reconhecido como mecanismo de resgate da dignidade em casos de violações graves. Assim, é preciso entender que o compromisso constitucional com a infância, também demanda postura ativa de todos os atores sociais e institucionais, notadamente em políticas públicas.

Nesse particular, o Tribunal Superior do Trabalho, por exemplo, já pontou que a conscientização sobre a importância e a implementação sistemática da aprendizagem é medida essencial a ser adotada mediante práticas de processo estrutural [4] como forma de se efetivar a doutrina da Proteção Integral.

Importante ver como o Poder Judiciário nacional tem se posicionado para adoção de medidas concretas de apoio a vítimas em situação de vulnerabilidade, como evidenciado na recente Resolução CNJ n. 497/2023, que instituiu, com força de resolução, a reserva de vagas de trabalho para mulheres em situação de violência ou vulnerabilidade no Poder Judiciário. Assim, é oportuno considerar exatamente o desenvolvimento da aprendizagem profissional no âmbito do próprio Poder Judiciário e com atenção especial aos grupos mais vulneráveis como, por exemplo, os jovens no sistema socioeducativo.

Nesse ponto, a própria existência, no âmbito do Tribunal Superior do Trabalho, do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e Estímulo à Aprendizagem, é um exemplo de como as instituições devem alinhar suas ações para a promoção da proteção integral, bem como serve de exemplo para outros tribunais desenvolverem ações concretas de promoção de ações estruturais.

Nossos jovens e crianças devem ter o direito de serem vistas e reconhecidas como sujeitos de direito, o que demanda o pleno acesso à educação, saúde e alimentação. E mais, requer uma escuta ativa e preparada desses sujeitos, que devem ser, tanto quanto possível, partícipes do processo de construção de uma voltada às suas necessidades.

No Brasil há jovens brilhantes que se empenham na transformação da vida das pessoas por meio de suas atuações, como Txai Suruí, Felipe Caetano da Cunha e Aira Beatriz Cardoso, que, tal como Kailash Satyarthi, foram homenageados durante o Seminário Internacional Trabalho Decente no dia 3 de agosto.

Conforme afirmamos em outra oportunidade, a erradicação do trabalho infantil exige inquebrantável compromisso de toda sociedade, que é responsável pela criação e manutenção de redes de proteção à infância e à juventude.

Assim como nos advertiu Felipe Caetano, não há mais espaço para que as únicas oportunidades oferecidas para a grande maioria das crianças brasileiras, negras e pobres, sejam a marginalidade ou o trabalho infantil [5].

Nesse sentido, ter acesso a uma vida digna não pode figurar no sonho de muitos — da imensa maioria de brasileiros e brasileiras — e ser a realidade de poucos: é necessário romper com os ciclos intergeracionais de trabalho infantil e pobreza, que alimentam as desigualdades de gênero, raça e classe de nosso país, cujos únicos beneficiados pertencem à elite brasileira, que perpetua outro ciclo, o da riqueza e do bem-viver, geração após geração.

A Justiça do Trabalho tem um compromisso inarredável na luta entoada por Felipe Caetano e Kailash Satyarthi para que todas as crianças e adolescentes possam ter o direito de sonhar com um mundo diferente. Mas, norteada pela Constituição Federal, essa justiça especializada possui ferramentas para ir adiante a fim de possibilitar que o direito ao trabalho decente, enquanto um dos mecanismos eficazes para erradicação do trabalho infantil, seja garantido a todos os trabalhadores e trabalhadoras.

Para isso, aliados à técnica jurídica — que, como consta na Resolução 492/2023 do CNJ (Protocolo para julgamento com perspectiva de gênero), também reflete a visão de mundo dos operadores do direito — é oportuno que os integrantes do judiciário tenham compaixão, na forma sugerida por Kailash Satyarthi.

De acordo com ele, quando sentimos compaixão pelo problema das outras pessoas, ajudamos a solucioná-lo. Isso, por sua vez, conduz ao entusiasmo e ao otimismo, os quais contagiam não só a nós mesmos, mas àqueles que estão ao nosso redor.

A proposta de Kailash Satyarthi reflete outro tipo de ciclo, cuja essência, essa sim, almejamos seja transmitida às nossas crianças, geração após geração.

 


[2] O Importante é Transformar o Mundo: textos escolhidos de Andaiye. Organização Alissa Trotz. Tradução de Dane Melo. Editora Funilaria. 2022.

[4] RRAg-597-15.2020.5.06.0021, 3ª Turma, rel. ministro Alberto Bastos Balazeiro, DEJT 30/6/2023.

Autores

  • é ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho), doutorando em Direito (IDP), mestre em Direito (UCB, 2017), coordenador do Comitê Gestor Nacional do Programa Trabalho Seguro e observador na 111ª Conferência Internacional do Trabalho.

  • é ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho). Coordenador do Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estímulo a Aprendizagem da Justiça do Trabalho. MBA em Administração Judiciária pela FGV. Observador na 111ª Conferência Internacional do Trabalho.

  • é procurador do Trabalho, doutor em Direito (Unifor), MBA em Direito Empresarial (FGV/Rio) e pós-graduado em Controle na Administração Pública (ESMPU).

  • é assessora de ministro do TST (Tribunal Superior do Trabalho). Mestre em Direito, Estado e Constituição pela UnB (Universidade de Brasília).

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