Opinião

Citação por Whatsapp e recente decisão do STJ: texto coescrito com ChatGPT

Autor

  • Dierle Nunes

    é professor da UFMG e da PUC-Minas. Membro honorário da Associação Iberoamericana de Direito e Inteligência Artificial. Diretor do Instituto Direito e Inteligência Artificial (Ideia). Doutor em Direito pela PUC-Minas/Universitá degli Studi di Roma "La Sapienza".

24 de agosto de 2023, 6h00

Há alguns anos venho defendendo a necessidade se promover uma releitura dos institutos jurídicos em face da ocorrência da virada tecnológica do direito processual,[1] como eixo transversal de compreensão e redefinição dos institutos, de modo a se dimensionar uma nova propedêutica da ciência processual.

Em face do advento da digitalização maciça dos processos não se torna mais factível uma abordagem que não seja data driven (dirigida por dados) e que permita inúmeros aperfeiçoamentos da prática dos atos processuais.

Freepik
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Não existe em muitas situações, por exemplo, razão para utilização como regra de várias modalidades de "cartas" (precatórias etc.), com toda a facilidade de outros meios de tecnologia de informação e comunicação, amplamente utilizados por boa parcela de nossa população.

No entanto, a virada não permite que a facilidade das tecnologias se torne um capítulo para esvaziar garantias essenciais do devido processo constitucional.

Uma das questões em destaque envolve a possibilidade de utilizar aplicativos de mensagens, como o WhatsApp, para a comunicação de atos processuais no contexto do ordenamento jurídico. Decisão e resolução do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e a existência de normativas locais que abordam essa questão de forma desigual trazem relevância ao debate.

Esse foi o contexto do recente julgado do Superior Tribunal de Justiça, no REsp Nº 2.045.633 – RJ, relatado pela ministra Nancy Andrighi.[2]

Há quase uma década, a ideia de utilizar aplicativos de mensagens para comunicação de atos processuais vem sendo discutida. O CNJ aprovou essa ferramenta para esse fim em um Procedimento de Controle Administrativo nº 0003251-94.2016.2.00.0000 (junho de 2017), e a Resolução nº 354/2020 ampliou seu uso durante a pandemia.

Como pontuado no julgado, a profunda dispersão de procedimentos e de requisitos de implementação e de validade dos atos comunicados por meio de aplicativos de mensagens evidencia um cenário no qual a legislação atual não fornece diretrizes adequadas. A falta de regulamentação aponta para a necessidade inegável de edição de uma legislação federal que discipline a matéria, estabelecendo critérios, procedimentos e requisitos isonômicos e seguros para todos os jurisdicionados.

A Lei nº 14.195/2021 trouxe mudanças significativas ao artigo 246 do CPC/15, disciplinando a possibilidade de citação por meio eletrônico, especificamente via e-mail. Essa lei determinou um procedimento detalhado para a confirmação e validação dos atos comunicados, pressupondo a pré-existência de um banco de dados complexo com os endereços eletrônicos das pessoas a serem citadas.

No entanto, a referida lei focou apenas na citação enviada a um endereço eletrônico, deixando de abordar os atos de comunicação por aplicativos de mensagens, provavelmente devido ao PL nº 1.595/2020 em curso, que trata especificamente dessa modalidade de comunicação de atos processuais.

O PL nº 1.595/2020[3] propõe um artigo adicional (270-A) ao Código de Processo Civil, que permite a intimação eletrônica via aplicativos de mensagens multiplataforma, com procedimentos detalhados para validação, mas ainda passível de grande aperfeiçoamento, incluindo a confirmação de recebimento da mensagem, o uso de expressões específicas para confirmar a ciência da intimação e regras para o cadastramento e exclusão de interessados.

A situação atual revela que a comunicação de atos processuais, intimações e citações por aplicativos de mensagens não possui base ou autorização da legislação existente e não obedece às regras atuais, sendo, portanto, portadora de um vício em relação à forma/conteúdo que poderia, em teoria, anulá-la. Essa primeira constatação é ainda mais significativa diante da Resolução nº 354/2020 do CNJ, editada no auge da pandemia. Embora trate de matéria reservada à lei, a resolução atuou positivamente diante do vácuo legislativo e da situação de emergência sanitária, viabilizando a realização da atividade jurisdicional de maneira adequada.

A análise desse contexto reforça a urgência na adoção de uma abordagem legislativa clara e coesa, que assegure procedimentos uniformes e seguros para a comunicação eletrônica de atos processuais, salvaguardando os direitos, ônus e obrigações de todas as partes envolvidas.

Ademais, permitirá que o uso das novas tecnologias possa aprimorar e simplificar o sistema processual, sem inviabilizar o exercício do contraditório e ampla defesa pelos sujeitos processuais.

A decisão definiu que comunicação de atos processuais por aplicativos não tem autorização legal atualmente e não segue as normas estabelecidas. Portanto, em teoria, esses atos são nulos. Contudo, é necessário avaliar se o desrespeito à forma legal sempre implica nulidade ou se o ato atingiu seu objetivo e pode ser aceito, pois o contexto de determinados casos, nos quais se evidencie que pessoa for efetivamente cientificada pode afastar a nulidade e convalidar o ato processual.

Fica assim evidente no atual contexto do ordenamento pátrio que:

– É indispensável a criação de uma legislação federal que estabeleça critérios e procedimentos uniformes para todos os envolvidos no processo civil.
– A compreensão do sistema de nulidades requer respeito aos seguintes pressupostos: liberdade de formas, exceção para formas prescritas em lei, e possibilidade de afastar a inobservância de forma se o ato alcançar sua finalidade, mas sem macular garantias típicas do devido processo constitucional.
– Efetividade da Citação: O ponto central da citação é a ciência pelo destinatário sobre a existência da ação. Portanto, se a citação for eficaz e cumprir sua finalidade, ela será válida, mesmo que feita por meio do WhatsApp. O ponto essencial é a demonstração de ciência.

Não podemos negligenciar os dilemas e a carência de cidadania digital proveniente da falta de equipamento, letramento e conexão de qualidade de parcela sensível de parcela de nossa população.

Em pesquisa divulgada em abril de 2020 pelo IBGE, identificou-se que, pelo menos ¼ da população brasileira ainda não possui acesso à internet. Em regiões como norte e nordeste do país este percentual gira em torno de 36%. O acesso nas zonas rurais chega a apenas 49,2%. O percentual de domicílios atendidos, segundo a pesquisa chega é de 79,1%, o que pode parecer muito alto para um país de dimensões continentais. [4]

Todavia, a mesma pesquisa relata que a diferença de renda entre as famílias com e sem acesso à internet é significativa. E ainda, o estudo informa que o celular é utilizado como principal forma de conexão em 99,2% dos domicílios, sendo que em 45,5% deles, o celular é o único meio disponível para acesso. A pesquisa do IBGE mostrou, também, que o grupo na faixa etária entre 20 e 24 anos é o que mais utiliza a internet – 91% das pessoas com essa faixa de idade se conectava à rede em 2018. Entre aqueles com mais de 60 anos de idade, apenas 38,7% acessava a internet.[5]

Por fim, a pesquisa evidenciou que os brasileiros priorizam o uso da internet para conversar com outras pessoas e para assistir a vídeos online. Segundo o IBGE, o uso da internet para enviar ou receber mensagens de texto, voz ou imagens se manteve estável na passagem de 2017 para 2018. Assim, acreditamos que a questão de resolver o problema do acesso à justiça pela tecnologia deve ser refletida sob as lentes do déficit de acessibilidade tecnológica de boa parcela da população brasileira. [6]

A discussão sobre a possibilidade de comunicação de atos processuais por aplicativos de mensagens levanta questões legais e práticas. O debate está em andamento, e a clareza legislativa é necessária para garantir que as partes envolvidas entendam seus direitos, obrigações e ônus. A análise da questão à luz da teoria das nulidades processuais também é fundamental para resolver o problema da insegurança jurídica.

 

[*] Texto produzido em 25 minutos pelo autor humano somado à máquina que demonstra que um expert possa otimizar atividades intelectuais, desde que tome cuidado com as possíveis "alucinações maquínicas" (CORTIZ, Diogo. Entendendo as alucinações do ChatGPT https://diogocortiz.com.br/entendendo-as-alucinacoes-do-chatgpt/ ). Sempre deve ser indicado o uso auxiliar. Sem revisão por um expert o uso não é recomendado, pelos enormes riscos. Vide: https://lawandcrime.com/awkward/judge-fines-lawyers-5000-for-submitting-gibberish-cases-generated-by-chatgpt-then-lying-about-it/

 


[1] NUNES, Dierle; MARQUES, Ana Luiza Pinto Coelho. Inteligência artificial e direito processual: vieses algorítmicos e os riscos de atribuição de função decisória às máquinas. Revista de Processo, v.285, nov./2018. NUNES, Dierle. Virada Tecnológica no Direito Processual (da automação à transformação): seria possível adaptar o procedimento pela tecnologia? In: NUNES, Dierle; et al (orgs). Inteligência artificial e Direito Processual: os impactos da virada tecnológica no direito processual. Salvador: Juspodivm, 2020. NUNES, Dierle. VIRADA TECNOLÓGICA NO DIREITO PROCESSUAL: fusão de conhecimentos para geração de uma nova justiça centrada no ser humano. Revista de Processo. V. 344. 2023.

[4] NUNES, Dierle; PAOLINELLI, Camilla. Acesso à justiça e virada tecnológica no sistema de justiça brasileiro:  gestão tecnológica de disputas e o alinhamento de expectativas para uma transformação com foco no cidadão – novos designs, arquitetura de escolhas e tratamento adequado de disputas. In. NUNES, Dierle; LUCON, Paulo; WERNECK, Isadora. Direito processual e tecnologia: o impacto da virada tecnológica no âmbito mundial. São Paulo: Juspodivm, 2021.

[5] Cit.

[6] Cit.

Autores

  • é sócio do escritório do Camara, Rodrigues, Oliveira & Nunes Advocacia (CRON Advocacia), doutor em Direito Processual, professor na PUC Minas e UFMG, membro da Comissão de Juristas que elaborou o anteprojeto de reforma do Código Civil e que assessorou na elaboração do CPC/2015 e presidente da Comissão de Inteligência Artificial no Direito da OAB-MG.

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