Controvérsias Jurídicas

Uso de prova ilícita para evitar que um inocente seja condenado

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

24 de agosto de 2023, 19h53

Por força de mandamento constitucional (CF, artigo 5º, LVI) e expressa proibição legal (CPP, artigo 157, caput), não são admitidas provas obtidas por meio ilícito no processo penal. Excepcionalmente, porém, sob influência da doutrina e jurisprudência do direito saxônico, abre-se espaço para a flexibilização desta vedação, desde que presentes determinadas circunstâncias. De acordo com a Suprema Corte dos Estados Unidos, permite-se o uso de tais provas nos seguintes casos: (a) exceção de boa-fé, (b) exceção de impugnação, (c) exceção de erro inócuo, (d) limitações quanto à legitimidade para requerer a exclusão da prova, (e) teoria da proporcionalidade e (f) prova ilícita pro reo.

Spacca
De origem norte-americana e tendo como referência o caso United States VS. Leon, de 1984, o princípio da exceção de boa-fé leva em conta os limites da legalidade das ações da polícia, baseadas em legítimo sentimento de obediência à lei. É o caso, por exemplo, de cumprimento de mandado judicial ou de ação respaldada em lei revogada após a ação. Sob o prisma do direito americano, não há que se falar em prova ilícita da ação dos policiais que agiram mediante ordem de autoridade constituída ou por mandamento legal vigente à época dos fatos. Assim, independentemente da ausência de subsídios mínimos para a expedição da ordem judicial ou futura revogação da lei que respaldou a atividade dos policiais, as provas adquiridas manterão sua validade. No Brasil, a tese ainda pende de discussão e ainda não está prevista no ordenamento jurídico.

O princípio da exceção de impugnação, também não admitido no Brasil, mas acolhido nos EUA, origina-se do caso Walder VS. United States, de 1954, e admite a prova ilícita, quando for apta a demonstrar a falsidade do depoimento do acusado. Diferentemente do que prevê nossa legislação, a qual garante a todo acusado o direito à não incriminação, nos Estados Unidos o réu tem a obrigação de dizer a verdade, sob pena de perjúrio. Assim, havendo fundada suspeita de inconsistências em seu depoimento, é possível que provas ilícitas sejam utilizadas para desdizê-lo, desmontando seus argumentos e sujeitando-o à pena por ter tentado enganar a corte [1].

Quanto à exceção de erro inócuo, aplicada no caso Chapman VS. Califórnia, de 1967, ela é admitida em nossos tribunais superiores e diz respeito à possibilidade de condenação do acusado, desde que a sentença não tenha se baseado exclusivamente em provas ilícitas. De acordo com esse princípio, violações à lei que não tenham causado prejuízo ou obstruído a ampla defesa devem ser desconsideradas pelo juiz, como nesses dois julgamentos: (1)"Irrelevância da ausência de prova pericial. Independentemente da prova pericial tida por ilícita (teste de alcoolemia), há nos autos principais diversos depoimentos, inclusive do próprio paciente, admitindo a ingestão de bebida alcoólica anteriormente aos fatos, assim como dos socorristas e dos médicos quanto aos indícios de embriaguez, em razão do hálito etílico do ora paciente, além das testemunhas que informaram que o acusado teria ingerido algumas garrafas de vinho juntamente com um amigo e deixado o restaurante conduzindo seu veículo Passat em alta velocidade e em aparente estado de embriaguez, elementos que não são derivados da prova pericial. Questão deve ser submetida ao Conselho de Sentença para que forme o convencimento acerca do elemento subjetivo dos homicídios imputados" [2]. (2) "Investigação derivada de prova considerada ilícita. Presença de outras provas autônomas suficientes ao embasamento da investigação. Inviabilidade do reexame fático-probatório na via estreita do habeas corpus. Agravo regimental não provido. 1. Conforme destacado no julgamento em questão, as instâncias antecedentes reconhecem a existência de fonte probatória independente das interceptações telefônicas anuladas. 2. A pretensão do reconhecimento da inexistência de provas autônomas suficientes para o embasamento do inquérito esbarra no entendimento assente na Corte de que descabe, na via estreita do habeas corpus, resolver o acervo fático-probatório para reanalisar essa questão" [3].

Como lembra Thiago André Pierobom de Ávila, o princípio das limitações quanto à legitimidade para requerer a exclusão da prova aplica-se a medidas cautelares, como, por exemplo, busca e apreensão, nas quais a possibilidade de pedir a exclusão da prova incumbe apenas àquele que possui "uma legítima expectativa de privacidade própria, violada pela busca, e não apenas daquele que tenha a propriedade sobre o bem objeto da apreensão" [4]. Nesse mesmo sentido, a Suprema Corte dos EUA, no caso United States VS. Padilla, de 1993, no qual fato de uma pessoa pertencer à mesma quadrilha não lhe confere, automaticamente, a legitimidade para requerer a exclusão da prova ilícita obtida em busca e apreensão sobre outro membro do grupo criminoso. É preciso ser demonstrada a quebra de expectativa no sigilo da privacidade e intimidade daquele que pretende pleitear a exclusão, caso contrário, a prova terá validade.

Para justificar a utilização da prova ilícita, produzida em ofensa direta ao texto constitucional, o princípio da proporcionalidade admite a manutenção da prova ilícita no processo penal, quando o direito violado for inferior ao valor que se quer proteger com a admissão da prova ilícita. Doutrinariamente, há divisão entre aqueles que admitem o princípio da proporcionalidade para todos os casos e os que o justificam apenas pro reo [5]. Nesse contexto, o direito à liberdade e a necessidade de corrigir punições injustas ganharia dimensão superior ao da higidez processual, podendo o réu valer-se de meios heterodoxos para comprovar sua inocência e manter sua garantia constitucional de liberdade. Pode-se dizer: male captum, bene retentum (mal recolhida, mas bem recebida), razão pela qual sua admissibilidade seria uma forma de romper, em prol do direito de defesa, com a imutabilidade da vedação constitucional da prova ilícita.

O dilema de fazer uso de prova obtida ilicitamente para evitar uma injustiça coloca dois interesses em conflito: o direito fundamental à privacidade e o direito de liberdade, conforme observa Noberto Bobbio: "O direito à liberdade e à ampla defesa parece mais valioso do que o direito à privacidade", donde se conclui poder o réu em processo penal produzir prova ilícita [6]. No mesmo sentido, Nicolas Gonzáles-Cuellar Serrano, em seu "Proporcionalidad y derechos fundamentales en el proceso penal", ao afirmar que não há que se falar em provas proibidas quando houver hipótese de infração a direitos e garantias fundamentais, devendo ser ponderada a transcendência da infração diante dos interesses do conflito.

Em que pese o desenvolvimento da questão por parte da doutrina, o STF já se manifestou em contrariedade ao uso do princípio da proporcionalidade como escusa de manutenção de prova ilícita no processo: "Em síntese, a aplicação do princípio da proporcionalidade se dá quando verificada a restrição a determinado direito fundamental ou um conflito entre distintos princípios constitucionais, de modo a se exigir que se estabeleça um peso relativo de cada um dos direitos por meio da aplicação das máximas que integram o mencionado princípio da proporcionalidade. São três as máximas parciais do princípio da proporcionalidade: a adequação, a necessidade a proporcionalidade em sentido estrito. Tal como já sustentei em estudo sobre a proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal – A proporcionalidade na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. In: Direitos Fundamentais e o Controle da Constitucionalidade: Estudos de Direito Constitucional, 2ª edição, Celso Bastos Editor: IBDC, São Paulo, 1999, p. 72 -, há de perquirir-se, na aplicação do princípio da proporcionalidade, se em face do conflito de dois bens constitucionais contrapostos, o ato impugnado afigura-se adequado (isto é, apto a produzir o resultado desejado), necessário (isto é, insubstituível por outro meio menos gravoso e igualmente eficaz) e proporcional em sentido estrito (ou seja, estabelece-se uma relação ponderada entre o grau de restrição de um princípio e o grau de realização do princípio contraposto" [7].

A regra deve ser mesmo a da inadmissibilidade das provas obtidas ilicitamente, mesmo que seja em benefício do réu, tendo em vista a relevância da garantia constitucional que a proíbe: "são inadmissíveis, no processo, as provas obtidas por meio ilícito" (CF, art. 5º, LVI). A legislação processual, inclusive, determina seu desentranhamento do processo (CPP, artigo 157). Assim, o réu não pode valer-se de provas ilícitas em sua defesa. Há que se ressaltar, porém, que em direito, enquanto ciência normativa e valorativa, nada deve ter caráter absoluto e intransponível. Se a prova ilícita for o único meio de evitar que um inocente seja condenado, não há regra jurídica capaz de fechar os olhos à verdade que se apresenta, ainda que sob o pecado original da ilicitude. No processo penal, mecanismo de imposição do mais estigmatizante, invasivo e traumático ramo do ordenamento legal, nada suplanta o valor de comprovar a inocência de alguém injustamente acusado.

 


[1] DEZEM. Guilherme Madeira. Curso de Processo Penal, 7ª edição. São Paulo, Ed. Thomson Reuters – Revista dos Tribunais, 2021, p. 648.

[2] STJ, HC 342.512/PR, rel. Min. Sebastião Reis Júnior, DJe 29/03/2016.

[3] STF, 2ª Turma, RHC 142.902 ED-AgR/PR, rel. Min. Duas Toffoli, DJe 17/10/2018.

[4] FEITOZA. Denílson. Direito Processual Penal: teoria, crítica e práxis. 7ª edição. Niterói: Impetus, 2010, p. 150.

[5] BRITO, Alexis Couto de; FABRETTI, Humberto Barrionuevo e LIMA, Marco Antônio Ferreira. Processo Penal Brasileiro, São Paulo: Ed. Atlas, 2012, p. 175.

[6] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Código de Processo Penal Comentado, 12ª edição, São Paulo: Ed. Saraiva, 2009, p. 531.

[7] STF, HC 96.056/PE, rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 08/05/2012.

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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