Grandes Temas, Grandes Nomes

Big techs tentam se recriar como um supraestado, diz Blanco de Morais

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23 de agosto de 2023, 16h45

Em meio ao debate sobre a regulação do ambiente virtual, as big techs tentam se tornar não um Estado dentro dos países, mas um ente supraestatal, inclusive dotado de jurisdições em sua estrutura, segundo o jurista português Carlos Blanco de Morais.

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Para Blanco de Morais, plataformas tentam criar "império normativo" dentro dos países

Professor catedrático de Direito Constitucional da Universidade de Lisboa, Blanco de Morais falou sobre a queda de braço travada pelas empresas de internet e o poder estatal em entrevista à série "Grandes Temas, Grandes Nomes do Direito", na qual a revista eletrônica Consultor Jurídico conversa com algumas das principais personalidades do Direito sobre os assuntos mais relevantes na atualidade.

Na visão do professor, empresas como a Meta, proprietária do Facebook, tentam pairar acima dos Estados no aspecto normativo. E, nesse movimento de reinvenção, vão criando instituições próprias, que se subdividem em espécies de jurisdições com várias instâncias.

"No fundo, isso representa, digamos, um 'Estado' dentro de outro Estado?", questionou o professor. "Não. É um 'Estado' dentro de vários outros Estados, uma tentativa de se recriar como um supraestado, impondo, muitas vezes, suas próprias regras a esses Estados. A tentativa é clara."

Para reforçar essa perspectiva, o professor citou a pesquisa acadêmica desenvolvida por uma de suas orientandas. "Há uma tese de mestrado de uma juíza brasileira, doutora Letícia Melo, que eu julgo que será particularmente interessante por excluir a ideia de que há um constitucionalismo (na regulação internacional das redes) e mostrar, de maneira crítica, que, ao contrário, há uma pretensão de estruturas como a Meta de se imporem aos estados", disse.

Ninguém ignora, porém, que essa tentativa de imposição provoca reações ao redor do mundo, sobretudo por parte da Europa, que tem aprovado regulamentações que constrangem as plataformas, segundo o jurista.

"E não estou, com isso, defendendo a regulação europeia. Estou apenas apontando que existe uma reação, quer dos Estados, quer da União Europeia, no sentido de limitar o poder das redes sociais no espaço europeu", advertiu Blanco de Morais.

Nesse sentido, a legislação alemã é um exemplo de como o poder estatal passou a responsabilizar as plataformas ao prever a retirada de conteúdos ilícitos ou criminosos — algo que, ponderou o jurista, de fato representa um certo intervencionismo junto às empresas.

"Já nos Estados Unidos a situação é diferente. Lá, nem a legislação nem a Suprema Corte responsabilizam as redes por seus conteúdos, ainda que eles sejam ilícitos", acrescentou o professor.

Ainda sobre o cenário norte-americano, Blanco de Morais apontou outra particularidade do país, esta com impactos diretos sobre as outras nações. "Essas plataformas nascem nos EUA e se expandem para outros continentes. Por isso, eu penso que a Europa se previne contra essas estruturas que expandem sua normatividade para o espaço europeu."

Seguindo esse raciocínio, Blanco de Morais defendeu que os países da América Latina se inspirem no bloco europeu e adotem uma postura igualmente cautelosa, evitando, assim, um "império normativo de entidades privadas" em seus territórios.

"Sobre essa matéria, eu gostaria de lembrar aquilo que aconteceu no período de invasão do Capitólio. Uma coisa foi a suspensão de contas de uma série de entidades e também de um então presidente que usava as redes para incitar atos antidemocráticos e até inconstitucionais. Outra coisa foi o cancelamento do perfil desse presidente", disse o professor em referência ao episódio protagonizado em 2021 por apoiadores de Donald Trump durante a sessão do Congresso norte-americano que confirmaria a vitória de Joe Biden nas eleições do ano anterior.

"Esse aspecto gerou uma má impressão na Europa. A própria ex-chanceler alemã Angela Merkel, um ex-ministro das Finanças da França e um comissário europeu disseram: 'chegamos a um ponto em que as redes, em um quadro de cartel, decidiram cancelar o perfil de um presidente ainda em exercício de funções'", disse o português. "Imagine se um dia essas mesmas redes privadas fizerem as mesmas coisas relativamente a dirigentes europeus democráticos. Isso é dar um poder imenso às entidades privadas. Uma comunicação de massas não é algo unilateral."

Clique aqui para assistir à entrevista ou veja abaixo:

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