Direito Eleitoral

Mecanismos de direitos humanos para tipificar a violência política de gênero

Autores

  • Denise Neves Abade

    é doutora em Direito Constitucional e Processual pela Universidad de Valladolid (Espanha) mestre em Direito Processual pela Universidade de São Paulo professora da Universidade Presbiteriana Mackenzie professora membro do Berkeley Center on Comparative Equality & Anti-discrimination Law da Faculdade de Direito da Universidade da Califórnia—Berkeley e procuradora regional da República.

  • Juliana Rodrigues Freitas

    é doutora em Direito Público pela Universidade Federal do Pará com pesquisa sanduíche na Università di Pisa (Itália) e na Universidad Diego Portales (Chile) mestra em direitos humanos pela Universidade do Pará pós-graduada em Direito do Estado pela Universidade Carlos III de Madri (Espanha) professora do Programa de Mestrado em Direito da Graduação e Especializações do Centro Universitário do Estado do Pará (Cesupa) advogada e consultora jurídica na área de Direito Público fundadora da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político (Abradep) e titular da Comissão Especial de Direito Eleitoral OAB Nacional (2022-2024).

21 de agosto de 2023, 8h00

A violência política de gênero tem sido objeto de atenção crescente nos últimos anos tanto no âmbito do sistema internacional de proteção dos direitos humanos, quanto no ordenamento jurídico interno dos países, incluindo o Brasil. Essa forma de violência ocorre quando as mulheres são alvo de intimidação, ameaças, agressões e outros atos violentos por sua participação em atividades políticas ou por causa de suas posições políticas.

A violência política de gênero, assim, tem um impacto significativo na inserção da mulher na política, com obstáculos que intimidam a sua participação em eventos ou em candidatura a cargos políticos e na ocupação de espaços públicos e decisórios, reforçando os estereótipos negativos das barreiras institucionais que dificultam, ou mesmo impedem, a sua participação na política, como a falta de financiamento ou acesso limitado a redes políticas.

Essa violência pode e deve ser entendida no Brasil como uma forma de discriminação, uma vez que configura uma distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada no gênero, com o objetivo de anular ou restringir o reconhecimento, gozo ou exercício, em igualdade de condições, de direitos humanos e liberdades fundamentais nos campos político, econômico, social, cultural ou em qualquer outro campo da vida pública ou privada (Abade, 2020). Ressalta-se que esse conceito de discriminação está presente no artigo 1º da Lei nº 12.288/2010.

A Convenção Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), promulgada pelo Decreto nº 1973, de 1º de agosto 1996, estabelece, em seu artigo 1º, que a violência contra as mulheres a violência contra a mulher deve ser entendida como qualquer ato ou conduta com base no gênero que cause morte ou dano físico, sexual ou psicológico ou sofrimento às mulheres, seja na esfera pública ou privada. Essa definição de violência, de acordo com o artigo 2º, abrange tanto a violência perpetrada na família, na unidade doméstica ou em qualquer relação interpessoal, na comunidade e no Estado.

O artigo 4º, j, da convenção consagra expressamente a toda mulher o direito a ter igualdade de acesso às funções públicas de seu país e a participar nos assuntos públicos, inclusive na tomada de decisões. Esse artigo deve ser compreendido conjuntamente com o artigo 5º, que determina que toda mulher poderá exercer livre e plenamente seus direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais, e contará com a total proteção desses direitos consagrados nos instrumentos regionais e internacionais sobre direitos humanos. O artigo ainda expressa explicitamente que "os Estados Partes reconhecem que a violência contra a mulher impede e anula o exercício desses direitos".

No âmbito da ONU, a Cedaw (Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres, promulgada pelo Decreto nº 4.377, de 13 de setembro de 2002, exige em seu artigo 7º, que os Estado partes tomem todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação contra a mulher na vida política e pública do país e, em particular, para garantir, em condições de igualdade com os homens, o exercício dos direitos políticos. O artigo 8º também contém a obrigação de tomar as medidas necessárias para garantir, em igualdade de condições, a oportunidade de representar seu governo no plano internacional e de participar de organizações internacionais. A Recomendação n. 23 do Comitê Cedaw faz referência aos conceitos de "vida pública e política", afirmando que a vida pública de um país é um conceito amplo que englobaria todos os aspectos da administração pública e a formulação e implementação de políticas nos níveis internacional, nacional, regional e local; e também muitos aspectos da sociedade civil e atividades das organizações, como partidos políticos, sindicatos, associações profissionais ou industriais, organizações de mulheres, organizações comunitárias e outras organizações preocupadas com a vida pública e política.

Por fim, a Lei Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres contra a Vida Política (2017) define, em seu artigo 3º, que a violência contra a mulher na vida política é "qualquer ação, conduta ou omissão, realizada diretamente ou através de terceiros, que, com base em seu gênero, causa dano ou sofrimento a uma mulher ou mulheres, e que tem o propósito ou efeito de prejudicar ou anular o reconhecimento, gozo ou exercício de seus direitos políticos. A violência contra as mulheres na vida política pode incluir, mas não está limitada à violência física, sexual, psicológica, moral, econômica, sexual, psicológica, moral, econômica e política, violência psicológica, moral, econômica ou simbólica".

A definição da lei-modelo coincide com os apontamentos doutrinários que a precederam. Mona Lena Krook e Juliana Restrepo Sanín afirmam que, além dessa forma de violência política ocorrer quando mulheres são alvo de violência física, psicológica ou sexual como forma de coagi-las a deixar a política ou limitar sua participação nesse espaço, configuram uma forma de manter a dominação masculina na política, reforçando estereótipos de gênero e perpetuando desigualdades de poder entre homens e mulheres. Para as autoras, essa forma de violência se apresenta como uma questão criminal, e mais: mostra-se como um sério desafio para a democracia, para os direitos humanos e para a igualdade de gênero (Krook; Sanín, 2016).

Salete da Silva acolhe o conceito da violência política simbólica o qual, segundo a autora, ocorre por meio de representações simbólicas que desqualificam a participação política das mulheres, reforçando estereótipos e papéis de gênero discriminatórios: uma violência muitas vezes sutil e invisível, mas pode ter impactos significativos na participação política das mulheres e na construção de sua identidade política (Da Silva, 2022).

A sub-representação das mulheres na esfera política, assim, é um reflexo da discriminação e violências que as mulheres enfrentam na vida política. O tema foi abordado na 6ª Conferência dos Estados-Partes da Convenção de Belém do Pará, sob o Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará (Mesecvi), em 2015, e restou refletido na Declaração sobre Violência Política e Assédio contra a Mulher, que é o primeiro acordo regional abrangente sobre violência contra as mulheres na vida política [1].

O documento reconhece que, se por um lado houve um incremento na implementação de quotas de gênero e paridade nos países da região, que ocasionou no aumento da participação política das mulheres em cargos representativos, o fenômeno fez que formas de discriminação e violência contra as mulheres se intensificassem. A declaração afirma que a tolerância à violência contra as mulheres na sociedade torna invisível a violência contra a mulher na vida política, o que dificulta o desenvolvimento e a implementação de políticas para erradicá-la.

A violência política pode se manifestar em atos explícitos como impedimento de voto de uma mulher, o uso de violência sexual contra mulheres candidatas em eleições, a queima de materiais de campanha das mulheres, mensagens violentas e as ameaças que muitas mulheres em cargos públicos recebem por meio de redes sociais que muitas vezes também afetam seus familiares  e também em atos como julgamentos contínuos contra as mulheres na mídia e pressões para renunciar ao cargo, na já mencionada violência simbólica que, com base em preconceitos e estereótipos, mina a imagem da mulher como líder política eficaz. Essas manifestações são algumas das formas que a violência política contra as mulheres pode apresentar, e estão elencadas, dentre outras, no artigo 6º da lei-modelo interamericana.

Reconhecendo que a violência contra as mulheres na vida política é uma grave violação dos direitos das mulheres, a Comissão Interamericana de Mulheres e o Mecanismo de Acompanhamento da Convenção de Belém do Pará (Mesecvi) elaboraram a mencionada Lei Modelo Interamericana para Prevenir, Sancionar e Erradicar a Violência contra as Mulheres na Vida Política. O documento destaca a urgência de que os Estados adotem todas as medidas necessárias para a erradicação da violência política contra as mulheres, como condição essencial para a democracia e a governabilidade.

Na esteira de André de Carvalho Ramos, quando falamos de proteção de direitos humanos, a responsabilização do Estado mostra-se essencial para reafirmar a juridicidade do conjunto de normas voltado para a proteção dos indivíduos e para a afirmação da dignidade humana (Carvalho Ramos, 2022). Com efeito, as obrigações internacionais que nascem com a adesão dos Estados aos instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos só possuem conteúdo real se houver um mecanismo de responsabilização por violações eficazes.

Assim, os textos internacionais que abordamos anteriormente, que buscam enfrentar a violação dos direitos das mulheres pela violência política, possuem especial relevância porque são acompanhados de mecanismos que evitam o caráter meramente programático dessas normas internacionais (Carvalho Ramos, 2022). Afinal, o direito interno já reproduz, em geral, o rol internacional de direitos humanos protegidos. Dessa forma, os mecanismos institucionais de constatação da responsabilidade internacional do Estado (sejam mecanismos de recomendação ou de decisão) mostram-se essenciais para o aprofundamento da defesa internacional também dos direitos das mulheres.

Diante desse contexto, os mecanismos coletivos contribuem no enfrentamento da violência política de gênero com a responsabilização dos Estados violadores das obrigações de proteção aos direitos políticos das mulheres e também por meio de pressão política, conscientização e sensibilização da sociedade em geral. Os Estados podem ser responsabilizados por violações de direitos humanos relacionados à violência política de gênero por meio de decisões condenatórias, com sanções e medidas reparatórias que possuem caráter preventivo para futuras violações, com uma mensagem forte de que a violência política de gênero não será tolerada. Mas não só isso. Ao tornarem públicas as suas decisões e recomendações, os mecanismos coletivos podem ajudar a conscientizar e sensibilizar a opinião pública sobre a violência política de gênero. Além disso, a publicação dos relatórios, recomendações e textos como a lei-modelo mencionada anteriormente também constitui forma de pressionar os governos a adotarem medidas para enfrentar a violência política de gênero, uma vez que recomendam mudanças legislativas, fortalecimento do sistema de justiça criminal, treinamento de profissionais, entre outras ações que visem a prevenção e ao combate à violência política de gênero.

Assim, percebemos que os textos internacionais de direitos humanos e seus mecanismos exigem dos Estados a criminalização de determinadas condutas que violam os direitos das mulheres, por eles protegidos. Tudo isso faz parte do que Carvalho Ramos conceitua como novo paradigma da relação entre o Direito Penal e a proteção dos direitos humanos, no qual o Direito Internacional dos Direitos Humanos, ao mesmo tempo em que pugna pela proporcionalidade, legalidade estrita, anterioridade das penas, zelo às garantias dos acusados, ordena aos Estados que tipifiquem e punam criminalmente os autores de violações de direitos humanos, especialmente com o resgate da dignidade da vítima de violação de direitos humanos que no novo paradigma tem o direito de exigir do Estado a tipificação das condutas, a investigação e punição penal dos autores de violações de direitos humanos (Carvalho Ramos, 2006).

O Estado brasileiro, seguindo a tendência dos países da região interamericana, optou por cumprir parte dos mandados de criminalização voluntariamente, como forma de respeitar seus compromissos internacionais e promover a cooperação internacional no enfrentamento das violências contra mulheres.

No modelo do Estado Constitucional Cooperativo, no cumprimento dos compromissos internacionais, há de se garantir que as leis de criminalização de condutas violadoras dos direitos políticos das mulheres e políticas relacionadas à violência política contra a mulher estejam em conformidade com os padrões internacionais de direitos humanos, com atuação de diferentes atores e instância que garantam a efetividade desses direitos.

 


Referências

ABADE, D.. N. "Brazilian Sexual Harassment Law, the MeToo Movement, and the Challenge of Pushing the Future Away from the Past of Race, Class, and Social Exclusion". In: NOEL, A.; OPPENHEIMER, D. (ed.) The Global #MeTooMovement. New Jersey: Full Court Press, 2020. p. 85-100.

CARVALHO RAMOS, A. Mandados de criminalização no Direito Internacional dos Direitos Humanos: novos paradigmas da proteção das vítimas de violações de Direitos Humanos. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 62, p. 9-16, set. 2006.

CARVALHO RAMOS, C. Processo Internacional de Direitos Humanos. 7. ed. São Paulo: Saraiva, 2022.

DA SILVA, S. M. Supremacia masculina nos partidos políticos: violência política simbólica contra as mulheres? Revista IusGénero América Latina, San Juan, v. 1, n. 1, p. 65-79, 2022.

KROOK, M. L.; SANÍN, J. R. Violence against women in politics: a defense of the concept. Política y Gobierno, Lomas de Santa Fe, v. 23, n. 2, p. 459-490, 2016.

 


[1] MECANISMO DE SEGUIMIENTO DE LA CONVENCIÓN BELÉM DO PARÁ, 2023. DECLARACIÓN SOBRE LA, Disponível em: https://www.oas.org/es/mesecvi/docs/declaracion-esp.pdf

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