Opinião

Maconha para uso pessoal: tutela da saúde pública como justificativa para o racismo

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21 de agosto de 2023, 7h07

O preconceito, que é tão somente um juízo preconcebido fruto da ignorância, engana e a vaidade petrifica a ignorância. Esse prólogo é essencial para tratarmos da maconha e sua proibição, bem como refletirmos na mesma toada sobre a possível descriminalização das demais drogas em debate no STF (Supremo Tribunal Federal).

A descriminalização da maconha e até mesmo outras drogas voltou à pauta das discussões e eis que o STF retomou, em 2/8/2023, o julgamento do Recurso Extraordinário (RE) 635.659, com repercussão geral (Tema 506), sobre a descriminalização do porte de drogas para consumo próprio.

A ação analisa um recurso de repercussão geral da Defensoria Pública de São Paulo que contesta a punição, em face da condenação de um homem por portar três gramas de maconha. O órgão defende que a Lei de Drogas é inconstitucional, pois fere o direito à liberdade individual, já que "o réu não apresenta conduta que afronte à saúde pública, apenas à saúde do próprio usuário" [1].

Interpretações das normas de criminalização do uso e tráfico de drogas
Pois bem. O artigo 28 da Lei de Drogas, a n° 11.343/2006 [2], abriga a norma de criminalização do uso de todas as drogas relacionadas na Portaria n° 344/1998 do Ministério da Saúde, a denominada norma penal em branco heterônima, que complementa o tipo penal, especificando as substâncias proibidas, arrolando nesta categoria a maconha.

A norma penal do artigo 28 da Lei 11.343/2006 preconiza:

"Artigo 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será submetido às seguintes penas:
I – advertência sobre os efeitos das drogas;
II – prestação de serviços à comunidade;
III – medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§1º Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física ou psíquica.
§2º Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais, bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§3º As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de cinco meses.
§4º Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de dez meses.
§5º A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§6º Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I – admoestação verbal;
II – multa.
§7º O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado."

O transcrito tipo penal objetiva proteger o bem jurídico, saúde pública, e como se observa deixou de reprimir com prisão o porte de drogas para consumo.

O grande dilema enfrentado no Recurso Extraordinário n° 635.659 é que a Lei de Drogas não fixou critérios objetivos para diferenciar consumo próprio de tráfico ilícito de drogas, o que vem ocasionando interpretações distintas da norma incriminadora pelos agentes do sistema de persecução penal (Polícia, Ministério Público e Judiciário), causando uma patente e injustificada insegurança jurídica, e algumas vezes outras situações ilícitas em decorrência dessa indefinição.

Conforme a atual regulamentação, quando os agentes da persecução penal constatam alguém na posse de pequena quantidade de drogas, podem entender que é posse para uso de drogas, o que implica na aplicação da norma supra, muito menos rigorosa do que a norma penal do artigo 33 da Lei de Drogas, que tipifica o crime de tráfico ilícito de drogas, com pena privativa de liberdade de 5 a 15 anos e pagamento de 500 a 1.500 dias-multa. Diversamente, se os agentes da persecução penal compreenderem, diante da mesma quantidade de drogas, que é tráfico, o investigado ordinariamente é submetido a prisão.

A discricionariedade conferida aos agentes do Estado em considerar, a depender da quantidade de drogas na posse da pessoa investigada, se é posse de drogas para uso ou tráfico tem gerado aplicações díspares das normas, ensejando a prisão ou não a depender da cor da pele do investigado, de sua classe social etc, pelo que urge a execução isonômica da lei e da forma mais objetiva possível. Assinale-se aqui a denominada seletividade social ao punir, posto que as abordagens policiais acontecem na imensa maioria nas comunidades e bairros de baixa renda, não podendo mais se ignorar essa triste realidade [3].

No julgamento do RE n° 635659, os ministros Luís Roberto Barroso e Edson Fachin entenderam que o artigo 28 da Lei n° 11.343/2006 é inconstitucional exclusivamente em relação à maconha, enquanto o ministro Alexandre de Moraes propôs a fixação de um critério nacional, exclusivamente em relação à maconha, para diferenciar usuários de traficantes, arrematando que: "O STF tem o dever de exigir que a lei seja aplicada identicamente a todos, independentemente de etnia, classe social, renda ou idade". Se pretende que todas as pessoas investigadas tenham o tratamento atual dado aos homens brancos, maiores de 30 anos e com nível superior, consoante se esboça na decisão proferida em 02/08/2023 [4].

Segundo estudo do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), se o limite proposto por Barroso e por Moraes for adotado, 31% dos processos por tráfico de drogas em que houve apreensão de maconha poderiam, em tese, ser reclassificados como porte pessoal em nosso País. Outros 27% dos condenados nesses mesmos termos poderiam ter os julgamentos revistos por estarem dentro do parâmetro (Martins, 2023).

O julgamento do Recurso Extraordinário n° 635659 foi adiado a pedido do ministro Gilmar Mendes para construir uma solução consensual, devendo ser retomado nos próximos dias.

A maconha e sua proibição
A maconha apesar de ser consumida há milênios fins recreacionais e medicinais em todo o mundo, somente há dois séculos teve início a sua proibição em vários países. A sua prevalência de uso fica somente atrás do consumo de álcool e de cigarros, constituindo-se assim na droga ilícita mais utilizada no mundo (Crippa et al, 2005).

No Brasil, a cannabis foi introduzida pelos colonizadores portugueses, no início de 1800. A sua intenção pode ter sido para cultivar a fibra do cânhamo, mas os escravos sequestrados da África estavam familiarizados com o consumo de cannabis e uso psicoativo [5]

Noutra referência, Martins (2023) assinala, entretanto, que segundo o Ministério de Relações Exteriores do Brasil, a planta foi trazida escondida pela população negra escravizada em 1549 e era usada em práticas religiosas e terapêuticas. O país foi o primeiro a criminalizar o uso da maconha com a Lei de Posturas, criada pela Câmara Municipal do Rio de Janeiro em 1830, que penalizava "escravizados e outras pessoas" que fumassem o "pito do pango" com três dias de cadeia e chicotadas.

Efeitos da cannabis no corpo humano
A cannabis pode produzir vários efeitos subjetivos em humanos: euforia, disforia, sedação, alteração da percepção do tempo, aumento da interferência na atenção seletiva e no tempo de reação, alteração nas funções sensoriais, prejuízo do controle motor, do aprendizado e prejuízo transitório na memória de curto prazo, além de efeitos neurovegetativos como boca seca, taquicardia e hipotensão postural. Efeitos adversos incluem crises de ansiedade, ataques de pânico e exacerbação de sintomas psicóticos existentes (Crippa et al, 2005).

A planta cannabis sativa possui mais de 400 componentes, sendo que aproximadamente 60 deles são componentes canabinóides. O principal constituinte psicoativo da cannabis é o D9-tetrahidrocanabinol (D9-THC), isolado pela primeira vez na década de 60. Sua influência no cérebro é complexa, dose-dependente e parece ser o componente responsável pela indução de sintomas psicóticos em sujeitos vulneráveis, o que é compatível com o efeito de aumentar o efluxo pré-sináptico de dopamina no córtex pré-frontal medial.

Nos últimos anos, ocorreu um aumento de interesse acerca do uso terapêutico do D9-THC, tendo sido demonstradas diversas utilidades clínicas, como, por exemplo, para o tratamento da dor, náusea e vômito causados por quimioterapia, perda de apetite em pacientes com AIDS, distúrbios do movimento, glaucoma e doenças cardiovasculares.

O THC atua como relaxante muscular e anti-inflamatório. Dentre os benefícios, produz efeito anticonvulsivo, anti-inflamatório, antidepressivo e anti-hipertensivo. Além de ser usado também como analgésico e no tratamento para aumentar o apetite [6].

Não se desconhece, a propósito, que a maconha causa efeitos tóxicos se consumida com frequência por vontade ou por diversão e para alguns acaba sendo até porta-de-entrada de outras drogas mais cruéis, no entanto não devemos fazer uma omissão do seu efeito terapêutico, que para muitos pacientes acaba sendo essencial na luta contra doenças que podem levar a óbito (Gonçalves, G. A. M. e Schlichting, C. L. R., 2014).

Discriminação racial como fator preponderante para a proibição da maconha
Apesar de a maconha apresentar menores danos à saúde pública se comparada a outras substâncias de uso permitido, a origem dos seus usuários observada no século 19: negros no Brasil e negros e mexicanos nos Estados Unidos, nos parece que foi fator preponderante para a proibição e mais tarde da criminalização do uso da maconha.

Pode-se inferir que a proibição da cannabis teve por escopo afirmar valores da classe dominante em detrimento ao uso da maconha por escravos e imigrantes nas Américas, especialmente nos EUA, onde, após a Lei de Emancipação dos Escravos de 1863 e derrota dos estados sulistas na Guerra de Secessão em 1865, o racismo ganhou nos estados do Sul um novo ingrediente: o ressentimento pela derrota na guerra.

É possível cogitar também que a maconha por ser uma droga natural, de fácil cultivo, que apresenta significativos efeitos terapêuticos deveras afastavam potenciais consumidores da indústria farmacêutica, de forma que a proibição da maconha se encontrava aliada aos interesses deste segmento econômico. Certamente, uma eventual coligação entre o preconceito racial e os interesses da indústria farmacêutica não pode ser descartada no estudo dos motivos da proibição da cannabis sativa.

Ausência da tipicidade material da conduta de posse de pequena quantidade de maconha para uso
Consoante no primeiro capítulo mencionado, o tipo penal descrito no artigo 28 da Lei de Drogas visa proteger o bem jurídico saúde pública. No entanto, nos parece que a criminalização da maconha para proteger a saúde pública é tão somente uma justificação retórica que guarda às ocultas consigo a discriminação racial que ensejou a proibição da droga outrora.

Cabe esclarecer que a substância Tetraidrocanabinol integra a Lista F-2 de substâncias psicotrópicas da Portaria n° 344/1998 do Ministério da Saúde e que o tipo penal do artigo 28 da Lei de Drogas é aplicável ao uso de qualquer substância que se encontra relacionada na denominada norma penal em branco.

Em que pese a norma incriminadora referida, tem-se que as condutas descritas no artigo 28 da Lei n° 11.343, quais sejam, de adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar, pequena quantidade de maconha não apresentam tipicidade material, não configurando a prática de crimes, eis que abrangidas pelo denominado Princípio da Insignificância.

Isto porque, não há relevância penal na conduta do uso de pequena quantidade de maconha, posto que não tem aptidão para lesionar a saúde pública nem qualquer outro bem jurídico relevante. Na verdade, a criminalização de tal conduta é que representa lesão ao Direito, na medida que vilipendia bens jurídicos constitucionalmente consagrados, qual sejam: a intimidade e a vida privada, que alfim e ao cabo materializam o princípio da dignidade da pessoa humana, fundamento da República brasileira.

Com efeito, a conduta de uso de pequena quantidade de maconha para uso próprio, em que pese se enquadrar nos elementos descritivos do tipo penal do artigo 28 da Lei n° 11.343/2006, isso formalmente ao preceito primário penal, não o faz na dimensão material da tipicidade penal, na medida em que não agride ao bem jurídico saúde pública, sendo, portanto, insignificante do ponto de vista do Direito Penal.

Conclusão
Se a título de proteger a saúde pública, o Direito Penal fosse invocado para proibir substâncias prejudiciais à saúde humana, certamente se proibiria primeiro o cigarro, depois o açúcar, o álcool, entre tantos outros produtos comprovadamente mais deletérios à saúde humana do que a cannabis, cuja ofensividade é diminuta, se comparada às substâncias tóxicas toleradas pelo Direito, como o herbicida Glifosato, que é o agrotóxico mais utilizado no Brasil, cuja ingestão está associada a provável causa de câncer [7].

Comporta pontuar que nos parece meramente simbólica apelar pela proteção da saúde pública para justificar a proibição do uso da maconha, para tão somente escamotear o preconceito racial que de fato, como supra detalhado, foi o ventre do proibicionismo da maconha e da criminalização sem bem jurídico efetivo a proteger.

Nesse contexto, cabe ao Supremo avançar em sua análise no recurso extraordinário e perscrutar a (in)constitucionalidade da norma do artigo 28 da Lei n° 11.343/2006 em face da conduta da posse de pequena quantidade de maconha para uso legisferada sob o manto do racismo, assegurando, por outro lado, a almejada segurança jurídica e isonomia de tratamento, providências que estão sob a batuta da Justiça e que o STF em assim agindo, mesmo que haja discordâncias por questões ideológicas, cumprirá o seu papel de guardião da Constituição, bem como definirá uma tese jurídica que na prática evitará as escolhas arbitrárias que têm sido feitas por muitas autoridades, e que em cada caso concreto, por diversas circunstâncias, que não cabe nesse artigo, poderiam ser evitadas a partir de uma decisão que leve em consideração as ponderações aqui trazidas.

 


[1] Martins, André. Maconha legalizada no Brasil? Entenda o julgamento do STF. Exame, 2023. Disponível em: <https://exame.com/brasil/maconha-legalizada-no-brasil-entenda-o-julgamento-do-stf/>. Acesso em: 07 de agosto de 2023.

[2] BRASIL. Sistema Nacional de Política sobre Drogas. Lei n° 11.343/2006. Disponível em: <https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2006/lei/l11343.htm>. Acesso em: 07 de agosto de 2023.

[3] Lei de Drogas. Wikipedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Lei_de_Drogas>. Acesso em: 07 de agosto de 2023.

[4] Supremo Tribunal Federal. Ministro Alexandre de Moraes propõe critério para diferenciar usuários de traficantes de maconha. Disponível em: <https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=511645&ori=1>. Acesso em: 07 de agosto de 2023.

[5] Cannabis no Brasil. Wikipedia. Disponível em: <https://pt.wikipedia.org/wiki/Cannabis_no_Brasil#cite_note-22>. Acesso em: 07 de agosto de 2023.

[6] Seminário apresenta os benefícios do uso medicinal da cannabis. Agência Fiocruz de Notícias, 2022. Disponível em: <https://portal.fiocruz.br/noticia/seminario-apresenta-os-beneficios-do-uso-medicinal-da-cannabis#:~:text=O%20THC%2C%20como%20%C3%A9%20conhecida,tratamento%20para%20aumentar%20o%20apetite> Acesso em: 08 de agosto de 2023.

[7] Entenda o que é o glifosato, o agrotóxico mais vendido do mundo (2019). Associação Brasileira de Saúde Coletiva. Disponível em: <https://www.abrasco.org.br/site/noticias/movimentos-sociais/entenda-o-que-e-o-glifosato-o-agrotoxico-mais-vendido-do-mundo/40996/>. Acesso em: 16 de agosto de 2023.

Autores

  • é analista judiciário do TJ-RN (Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte), mestrando em Direito pela Universidad Europea del Atlántico, graduado em Farmácia pela UFRN e ativista político pela democracia.

  • é juiz de Direito do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Norte e professor da Universidade do Estado do Rio Grande do Norte (Uern).

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