Segunda Leitura

O falso dilema da divisão entre garantistas e punitivistas

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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20 de agosto de 2023, 8h00

O garantismo tem no italiano Luigi Ferrajoli o seu defensor mais expressivo, o qual sustenta tratar-se de limitação do poder punitivo e de tutela da pessoa contra a arbitrariedade ou, sob o plano jurídico, um sistema de vínculos impostos à função punitiva do Estado em garantia dos direitos dos cidadãos [1].

Spacca
O punitivismo é de definição mais difícil. Dá-nos a ideia de um desejo irrefreável de castigo severo por um desvio de conduta, sem observância das mínimas garantias, como o direito à ampla defesa. Porém vai além disto. Pode ser, por exemplo, a proposta ou edição de leis severas por fatos políticos ou que despertem revolta nas pessoas, gerando popularidade ao seu autor. Na mesma linha, decisões judiciais de rigor incomum, fora do sistema de Justiça, disputando com os políticos espaços na mídia.

O Brasil vê-se recentemente envolvido em um dilema falso: garantistas x punitivistas. Por ele, basicamente todos os que atuam na área do Direito Penal ou do Processo Penal estariam em posições opostas e inconciliáveis. Os garantistas seriam todos pessoas boas, sensíveis, preocupadas com os mais fracos. Os punitivistas seriam pessoas raivosas, insensíveis aos direitos mais básicos do ser humano, vingativos e sempre dispostos a prejudicar alguém.

Seguindo tal critério, a classificação equivaleria a: garantistas = bons e punitivistas = maus.

A autoria dessa tese, divulgada diariamente em todas as formas de comunicação — não se pode deixar de reconhecer — revela a aguçada inteligência de seu criador. Com duas palavras, levou uma incalculável quantidade de pessoas a julgar-se e a julgar o próximo dentro desta ambivalência radical. Ocorre que o dilema da opção é falso. As pessoas não são necessariamente uma coisa ou outra.

O primeiro motivo dessa afirmação reside no fato de que a maioria das pessoas deseja o equilíbrio entre a preservação dos direitos e garantias individuais previstos na Constituição (artigo 5º) e o direito também reconhecido à segurança pública (artigo 144). Assim pensam as pessoas de bom senso e, para chegar-se a tal conclusão, não é preciso ter estudado Direito.

O segundo motivo é que a adoção radical de uma posição ou de outra não é uma boa opção. Situações diversas exigem soluções diferentes. Ninguém concebe um processo penal sem direito à ampla defesa, afronta máxima a um direito individual previsto na Constituição. Mas ninguém pode conceber, a não ser que disto se beneficie, que aguardar 12 ou 15 anos o trânsito em julgado no STF para executar uma sentença penal condenatória seja razoável. Quem tiver alguma dúvida, converse com uma vítima de um crime grave, poderá ser mais útil que um volumoso livro de doutrina.

O terceiro motivo é a necessária defesa social. A Constituição, no seu artigo 144, reconhece expressamente a todos os brasileiros o direito à segurança pública, que é um dever do Estado.

Por óbvio, esse direito é cada vez menos exercido pela população. Outrora, eram as grandes cidades que não ofereciam segurança. Agora, são também as médias e até as pequenas, como se pode ver do ranking das cidades mais violentas do país. Curiosamente, entre as dez primeiras, seis são da Bahia, quatro ocupando as primeiras posições (a primeira é Jequié, com 156.216 habitantes) e duas em nono e décimo [2].

Portanto, o que temos hoje é uma defesa exacerbada dos direitos individuais dos infratores (não das vítimas, óbvio), contra um descaso flagrante com os direitos coletivos, no caso exteriorizado pelo abandono das vítimas e pelo descumprimento da promessa constitucional do artigo 144, ou seja, direito à segurança pública.

Além de a legislação ser cada vez mais permissiva e de o Poder Executivo federal não revelar maiores preocupações com a criminalidade urbana, parte dos tribunais vem encarando autores de crimes com extrema tolerância. Neste particular, os traficantes de drogas são os mais bem aquinhoados. Não lhes faltam decisões a colocá-los em liberdade por isso ou por aquilo.

Por exemplo, em junho passado um traficante, líder de facção criminosa, já condenado a pena de 10 anos, 7 meses e 15 dias de reclusão, foi preso pela Polícia Civil de São Paulo com 2 kg de cocaína. Recolhido a um presídio de segurança máxima, foi posto em liberdade pelo STJ, sob o argumento de que a polícia não pode prender por mera suspeita. Segundo reportagem da CNN Brasil, o detido "transitava com a motocicleta prata, quando se deparou com patrulha da polícia militar, momento em que subiu na calçada e parou, deixando transparecer o nervosismo, o que ocasionou a abordagem". Esse ato gerou a abordagem policial, porém a decisão do STJ concluiu que a suspeita não justificava a abordagem, mesmo tendo a pessoa subido de moto na calçada [3]. O raciocínio leva à seguinte conclusão: se o policial não pode prender quando não haja suspeita e não pode prender por mera suspeita, a conclusão lógica é a de que ele não pode prender nunca.

Outras tantas semelhantes enfraquecem o sistema penal. Por exemplo, não se reconhecer o valor do testemunho do policial (STJ, AREsp 1.936.393/RJ). Ninguém é ingênuo ao ponto de supor que não há maus policiais que possam incriminar alguém por um interesse pessoal. Mas, da mesma forma, há bons policiais que agem com ideal e responsabilidade. Desprezar seus depoimentos, generalizando o ruim, é desestimular os bons de assim continuarem.

No mesmo sentido, a impossibilidade de ingresso sem ordem judicial na residência de um suspeito de guardar drogas, muito embora com a sua autorização (STJ, HC 762.932). Além de o crime ser permanente, o que dá poderes à polícia para prender em flagrante (artigo 303 do Código de Processo Penal), a série de condições necessárias postas no voto do relator revela-se de difícil execução. Bem-intencionadas, com certeza, apenas não estão de acordo com a realidade da rua. A ação policial, via de regra, ocorre em áreas de risco e sob tensão, não há tempo, preparo e condições para uma detida análise reflexiva.

E assim vai o sistema de segurança, perdendo sua finalidade de combate à criminalidade. No caso do tráfico de drogas, em termos individuais, o mal causado pelo agente é diferente do praticado em um roubo ou outro crime com vítima direta. É menos visível, infiltra-se em uma aparente normalidade, corrói a resistência do usuário, dificulta-lhe os estudos ou o trabalho e, em casos extremos, transforma-o em traste humano a perambular pelas ruas das grandes cidades. Na sequência, o dano individual sai do particular para o geral, desestabilizando-se a sociedade.

Em termos macro, a ação de organizações criminosas insere-se no Estado e, discretamente, vai se constituindo em um poder paralelo. O Jornal da Band News informa que a mais importante organização criminosa do Brasil investe na preparação de candidatos para os concursos para juízes e promotores [4]. Assim, aproxima-se o Brasil do chamado narcoestado, nome que Eduardo Matos de Alencar [5], professor da UFPE, em reportagem do jornal Gazeta do Povo, utiliza "para definir uma situação institucional em que o Estado está rendido para grupos criminosos". Essa situação já é uma realidade em alguns países da América Latina [6].

A esse estado de coisas dá-se a justificativa do garantismo. Porém a proteção dos direitos não é reconhecida apenas do ponto de vista individual, mas também coletivo. A segurança é direito de todos, reconhecido pela nossa Constituição (artigo 144) e, como lembra Douglas Fischer, em nossa compreensão (integral) dos postulados garantistas, o estado deve levar em conta que, na aplicação dos direitos fundamentais (individuais e sociais) há a necessidade de garantir também ao cidadão a eficiência e segurança [7].

A defesa social é preocupação nos mais diferentes países e encarada com rigor. Por exemplo, em Cuba, um país socialista, o Código Penal de 2022 pune o plantio de maconha com pena de 4 a 10 anos de privação de liberdade, (artigo 190, 1, "c") e o tráfico de entorpecentes em âmbito internacional com pena de 15 a 30 anos ou morte (artigo 190, 3, "c") [8]. Em Singapura, país capitalista, a legislação penal é também rigorosa, Por exemplo, o crime de vandalismo, punido pela lei especial nº 38, de 1966, pode justificar a punição pela prática de pichação em propriedade pública ou particular, se for feita com tinta indelével, em multa de US$ 2.000, que equivale a R$ 7,260, prisão até 3 anos e três a oito açoites (caning). Em março de 2015, dois jovens alemães foram condenados a 9 meses de prisão e três chibatadas por grafitarem um vagão do metrô [9].

Em suma, a atual divisão entre garantistas e punitivistas é falsa, pois, entre ambas, há milhares de profissionais bem-intencionados que distinguem situações diferentes e aplicam o direito com equilíbrio e razoabilidade. O garantismo individual que vem sendo assegurado a criminosos no Brasil, com um caráter exacerbado de consequências pouco avaliadas, pode levar-nos a uma situação incontrolável. O sinal amarelo está aceso, e se chegarmos ao vermelho não haverá retorno.

 


[1] FARRAJOLI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2. ed., 2006, pp.38 e 786.

[3] CNN Brasil. Elijonas Maia. STJ solta chefe do PCC por considerar abordagem da PM ilegal; policiais e promotores reagem. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/nacional/stj-solta-chefe-do-pcc-por-considerar-abordagem-da-pm-ilegal-policiais-e-promotores-reagem/. Acesso em 18 ago. 2023.

[4] BAND.com.br. Sandro Barboza, em 22 jun. 2023. PCC investe na formação de candidatos de concursos para juízes e promotores. Disponível em: https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/ultimas/pcc-investe-na-formacao-de-candidatos-de-concursos-para-juizes-e-promotores-16611725. Acesso em 18 ago.2023.

[5] ALENCAR, Eduardo Matos de. Em Gazeta do Povo, 13 ago.2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/decisoes-judiciais-e-politicas-reforcam-temor-de-narcoestado-no-brasil/. Acesso 18.ago.2023.

[6] DESIDERI, Leonardo. Decisões judiciais e políticas reforçam temor de narcoestado no Brasil. Em Gazeta do Povo, 13 ago.2023. Disponível em: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/decisoes-judiciais-e-politicas-reforcam-temor-de-narcoestado-no-brasil/. Acesso 18 ago.2023.

[7] FISCHER, Douglas. Garantismo penal integral. Organizadores: Bruno Calabrich, Douglas Fischer e Eduardo Pelella. São Paulo: Ed. Atlas, p. 44.

[8] CUBA. Asamblea Nacional del Poder Popular, Ley nº 62, Código Penal. Disponível em: https://www.rightofassembly.info/assets/downloads/Penal_Code_of_Cuba.pdf. Acesso em 17 ago. 2023.

[9] EURONEWS. Dois alemães condenados por vandalismo em Singapura. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=RImzUxNICRI. Acesso em 19 ago. 2023.

Autores

  • é professor de Direito Ambiental e Sustentabilidade; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador federal aposentado, ex-presidente do TRF-4. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Ajufe (Associação dos Juízes Federais do Brasil) e do Ibrajus ( Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário).

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