Opinião

Morte matada ou morte morrida? O HC nº 704.718 e o crime preterdoloso

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20 de agosto de 2023, 13h25

Em julgamento recente do HC nº 704.718/SP (2021/0355906-0), sob a relatoria da ministra Laurita Vaz, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve, por unanimidade, a condenação de quatro acusados por roubo qualificado pelo resultado morte (artigo 157, §3º, II, do Código Penal), uma das hipóteses de crimes hediondos (Lei nº 8.072/1990), popularmente conhecida como latrocínio, cuja vítima idosa (84 anos) era portadora de doença cardíaca preexistente e, no curso do crime de subtração, infelizmente, veio a falecer por infarto do miocárdio.

O crime qualificado pelo resultado é aquele em que a consumação se dá com a produção do resultado que agrava especialmente a pena, isto é, um gênero do qual decorre o crime preterdoloso como espécie.

O crime preterdoloso ou preterintencional é aquele no qual coexistem os dois elementos subjetivos: dolo na conduta antecedente e culpa na conduta consequente. O crime-base é doloso e o resultado agravador, culposo. Utilizando-se como exemplo o latrocínio, o crime será preterdoloso se houver dolo na conduta do roubo e sobrevier morte a título de culpa.

A questão jurídica é relevante não apenas de um ponto de vista acadêmico, mas também prático: a soma das penas (concurso material) previstas para o roubo simples (artigo 157, caput, do Código Penal) e o homicídio culposo (artigo 121, §3º, do Código Penal), varia entre 5 e 7 anos, ou seja, cerca de quatro vezes menor quando comparada à pena do roubo qualificado pelo resultado morte, cuja pena varia entre 20 a 30 anos. E quanto à analise, registre-se que, na hipótese em tela, tratar-se-ia de concurso formal entre os crimes de roubo e homicídio culposo, não se podendo, sequer, falar em cumulação, mas em mera exasperação, o que significa impor alguma pena sem delito.

Destarte, vamos à análise dos fundamentos da decisão em comento.

O acórdão menciona que "a despeito da controvérsia doutrinária a respeito da classificação do crime previsto no art. 157, §3º, inciso II, do Código Penal — se preterdoloso ou não — fato é que, para se imputar resultado mais grave (consequente) ao autor, basta que a morte seja causada por conduta meramente culposa, não se exigindo, portanto, comportamento doloso, que é apenas imprescindível na subtração (antecedente)".

E continua: "Portanto, é inócua a alegação de que não houve vontade dirigida com relação ao resultado agravador, porque, ainda que os Pacientes não tenham desejado e dirigido suas condutas para obtenção do resultado morte, essas circunstâncias não impedem a imputação a título de culpa".

Com a reforma penal de 1984, para dirimir as posições doutrinárias antagônicas existentes, no sentido de se era possível ou não imputar ao agente do crime-base a ocorrência do resultado qualificador, mesmo que ele não tivesse a menor previsibilidade do que poderia ocorrer, ou seja, se responderia o autor do crime-base pelo resultado mais grave a título de responsabilização objetiva, adotou-se como solução o artigo 19 do Código Penal, o qual determina que o resultado qualificador somente será fonte de punição para o agente que o houver causado ao menos culposamente, vale dizer, quanto ao resultado mais grave é fundamental que o agente tenha atuado com dolo ou culpa.

O princípio da culpabilidade ou da impunibilidade pela mera causação objetiva do resultado é o marco civilizatório de embate contra o versare in re illicita, segundo o qual aquele que realizar um ato ilícito penal responde por todas as consequências derivadas deste fato, ainda que em sua inicial atuação não houvesse nenhum nexo subjetivo.

Segundo Eugenio Raúl Zaffaroni, Nilo Batista, Alejandro Alagia e Alejandro Slokar, "apesar desse princípio constituir a base irrenunciável para o tratamento dogmático das figuras complexas, não se resolvem com ele todos os problemas que delas podem derivar" [1].

Nesse contexto, surgem importantes questões a serem abordadas.

Quanto ao suposta nexo causal, o laudo pericial é inconclusivo e não atesta nem que a morte tenha sido causada exclusivamente pela doença cardíaca preexistente da vítima e nem se pela violência sofrida pela vítima, de modo que o acórdão, ao aplicar a teoria da equivalências das condições, faz juízo de probabilidade em desfavor dos réus para afirmar que "as agruras vivenciadas pela vítima podem ter colaborado para o resultado morte" e que "para desconstituir tal conclusão, seria imprescindível incursionar, verticalmente, no acervo probatório, o que, como se sabe, é incabível na estreita via do habeas corpus".

De acordo com a lição de Juarez Cirino dos Santos, "a imputação do resultado ao autor tem como pressuposto a relação de causalidade entre a ação lesiva do dever de cuidado ou do risco permitido e o resultado de lesão do bem jurídico e tem como fundamento a realização do risco criado pela ação lesiva do dever de cuidado ou do risco permitido e como condição — para um setor importante da doutrina — a previsibilidade do resultado" [2].

Nesse sentido, a definição do resultado como realização do risco criado pela ação lesiva do dever de cuidado ou do risco permitido é excluída nas hipóteses de fatalidade do resultado ou de resultados incomuns, de modo que o perigo de colapso cardíaco, especialmente em alguém com doença cardíaca preexistente, pode aumentar por tensões inesperadas ou por sustos resultantes de ações arriscadas de terceiros, mas a elevação desse risco não parece suficiente para fundamentar a atribuição do resultado ao autor como obra dele, pois a forma concreta do resultado estaria fora de qualquer previsibilidade.

Para Juarez Tavares, "desde as postulações da teoria causal-naturalista, os crimes culposos se caracterizam por uma imputação baseada na relação de causalidade. Isso porque, como são crimes de resultado naturalístico, o que deve valer é a demonstração de que a ação descuidada o tenha produzido. São crimes fundados na relação instrumental, ou seja, entre meio e fim" [3].

Por tal motivo, agrega-se à imputação objetiva não só a previsibilidade do resultado, mas também a sua evitabilidade, as quais devem pressupor que o(s) agente(s) tivera(m) violado, consciente e volitivamente, a norma de cuidado, isto é, em termos objetivos, se o fato era previsível ou evitável e não se poderia ser previsível ou evitável. Nesse contexto, Juarez Tavares assinala que "no primeiro caso, o juízo é concreto; no segundo, é hipotético. A imputação deve se basear em juízos concretos e não em juízos hipotéticos" [4].

E aqui surge o problema da legitimidade de uma responsabilidade penal pela culpa inconsciente, por resultar em puro juízo normativo de previsibilidade, pois, à medida que se reivindique um direito penal da culpabilidade e não da responsabilidade objetiva, deve-se excluir o fato realizado com culpa inconsciente [5].

A punição da culpa inconsciente é uma expressão da política criminal do risco, a partir de juízo de valor normativo e não mais de elementos empíricos, o que impõe discutir se a culpa inconsciente pode ou não ser legitimada como espécie de culpa.

Na culpa consciente, a violação da norma de cuidado está presente no conhecimento do agente, que sabe que está realizando uma conduta descuidada ou além dos limites do risco autorizado, o que, uma vez que o agente saiba desse fato, permite delimitar a responsabilidade por sua produção, pois, objetivamente, pode-se verificar se o fato era ou não previsível.

No entanto, por se tratar de ação humana, um pressuposto da estrutura básica da ação é a dirigibilidade dos meios causais, compreendida como expressão da vontade, de modo que se o agente viola, sem saber, a norma de cuidado, torna-se impossível limitar a sua responsabilidade, pois sem o pressuposto da dirigibilidade, o juízo de previsibilidade torna-se arbitrário, sob o efeito de um exclusivo decisionismo, como se observa no caso concreto em comento.

Desse modo, adota-se aqui a posição de Juarez Tavares, no sentido de que "a atribuição de responsabilidade pela culpa inconsciente viola a estrutura do injusto penal e é incompatível com uma conduta performática, a qual pressupõe que o agente tenha sempre a possibilidade de proceder a uma autocrítica de sua ação, até por ser uma ação dotada de vontade" e, portanto, "sem o pressuposto de que o fato fora conduzido conscientemente pelo sujeito, será impossível proceder-se a uma avaliação se ele atuou ou não com erro de proibição" [6].

Em seu decisionismo, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) manteve condenação contra quatro acusados com base num juízo de probabilidade, despido de qualquer fundamento empírico, que para além de fazer a injustiça no caso concreto, a qual deve ser corrigida por quem tem a prerrogativa de acertar ou errar por último em nosso sistema constitucional, o Supremo Tribunal Federal (STF), sob pena de abrir perigoso precedente para futuras violações em casos análogos.

Isto posto, considerando que o artigo 19 do Código Penal só admite a punição pelo resultado mais grave quando o agente o houver causado ao menos culposamente, a melhor solução seria a eliminação da culpa inconsciente da definição legal de culpa, por ser meramente objetiva e incompatível com o princípio culpabilidade.

 


[1] ZAFFARONI, Eugenio Raúl; BATISTA, Nilo; ALAGIA, Alejandro; SLOKAR, Alejandro. Direito Penal Brasileiro – II, I. Rio de Janeiro: Revan, 2010, p. 340.

[2] CIRINO DOS SANTOS, Juarez. Direito Penal – Parte Geral, 6ª edição. Curitiba: ICPC Edições, 2014, p. 198.

[3] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 2ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 410.

[4] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 2ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 416.

[5] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 2ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 422.

[6] TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. 2ª edição. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020, p. 422.

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