Público & Pragmático

Quem tem medo da retroatividade da norma mais benéfica?

Autor

  • Mariana Carnaes

    é advogada especialista em Direito Regulatório membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

20 de agosto de 2023, 8h00

A retroatividade da lei mais benéfica é um direito fundamental garantido pelo inciso XL do artigo 5º da Constituição Federal: "XL – a lei penal não retroagirá, salvo para beneficiar o réu". Não é incomum, contudo, que tal direito enfrente questionamentos acerca da sua ampla aplicabilidade, inclusive no ambiente regulatório.

Num primeiro viés, a leitura seca do inciso confere a errônea sensação de que a regra se aplica somente a uma pessoa física (réu) que praticou algo que não seja mais imputado como crime (lei penal). Ocorre que a redação simples e direta da norma constitucional carrega uma perspectiva mais aberta: trata-se da necessidade imperiosa de não se manter apenada qualquer pessoa (física ou jurídica), cuja ação deixou de ser considerada um ilícito (e não necessariamente um crime). Esse racional decorre dos princípios da boa-fé, da segurança jurídica e da própria justiça. A doutrina é extensa nesse aspecto.

A citada norma resguarda direitos fundamentais frente à prerrogativa punitiva do Estado, que é muito mais ampla do que o espectro penal. Em outros termos, o Direito Penal veio antes e, a partir dele, construíram-se alicerces e fontes que se espraiam a qualquer Direito Sancionador, inclusive administrativo. Tal assertiva ganha ainda mais força quando a norma é inserta no âmbito constitucional, cuja hermenêutica guia a aplicação de todo o arcabouço jurídico existente.

Nesse sentido, é obrigação constitucional das agências reguladoras reconhecer, de ofício, a aplicabilidade da retroação da norma mais benéfica no bojo dos seus processos de apuração de descumprimento de obrigações. Caso não o faça, é seu dever considerar procedente as manifestações das partes que solicitam essa retroação, seja no próprio processo, seja em processo de revisão, previsto no artigo 65 da Lei de Processo Administrativo.

Do contrário, além de ocasionar o maior gravame possível — que é ferir a regra constitucional — também faz a agência incorrer no indesejado venire contra factum proprium. Significa dizer que a entidade passa a ter um comportamento contraditório já que, de um lado, deixa de entender a ação como incorreta, mas, de outro lado, sanciona ou mantém o sancionamento em razão daquela mesma ação, abalando a segurança jurídica da parte investigada. Frise-se, nesse sentido, que a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro exige, no artigo 30, que a administração pública aja em prol da garantia e aumento da segurança jurídica.

O principal argumento utilizado para desviar a obrigação constitucional de se reconhecer a retroatividade da norma mais benéfica é a aplicação da teoria do tempus regit actum. Segundo essa teoria, o tempo rege o ato e, portanto, a norma vigente na época dos fatos (ainda que posteriormente revogada) é a norma que deve incidir para determinar a aplicação de sanção. Para embasar esse entendimento, muitas vezes as autoridades utilizam paradigmas de décadas atrás [1], os quais contém apenas interpretação das próprias entidades em relação ao tema, sem ponderação em contrário.

Nessa interpretação, há inversão total do racional da teoria: para a gência, a teoria do tempus regit actum afasta a retroatividade da norma mais benéfica. Na verdade, o que ocorre é o contrário disso: a teoria do tempus regit actum é afastada pela retroatividade da norma mais benéfica. A prevalência é sempre da norma protetora dos direitos fundamentais, aquela que melhor conversa com as finalidades da boa-fé e da segurança jurídica. Repisa-se: foge à lógica do razoável manter uma penalidade por algo que não é mais considerado ilícito.

Insistir nisso é também ir contra a eficiência que se espera do gestor público, já que ele terá sua decisão reformada em âmbito judicial. Isso porque o Superior Tribunal de Justiça já reconheceu inúmeras vezes a necessidade de se aplicar a regra no âmbito do Direito Administrativo. A decisão mais recente é datada de 13 de março de 2023, com ementa abaixo transcrita:

"PROCESSUAL CIVIL. ADMINISTRATIVO. DIREITO ADMINISTRATIVO SANCIONADOR. AGRAVO INTERNO NO RECURSO ESPECIAL. CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. APLICABILIDADE. RETROATIVIDADE DA LEI MAIS BENÉFICA. POSSIBILIDADE. ART. 5º, XL, DA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. PRINCÍPIO DO DIREITO SANCIONATÓRIO. ARGUMENTOS INSUFICIENTES PARA DESCONSTITUIR A DECISÃO ATACADA. APLICAÇÃO DE MULTA. ART. 1.021, § 4º, DO CÓDIGO DE PROCESSO CIVIL DE 2015. DESCABIMENTO.

I – Consoante o decidido pelo Plenário desta Corte na sessão realizada em 09.03.2016, o regime recursal será determinado pela data da publicação do provimento jurisdicional impugnado. In casu, aplica-se o Código de Processo Civil de 2015.

II – O art. 5º, XL, da Constituição da República prevê a possibilidade de retroatividade da lei penal, sendo cabível extrair-se do dispositivo constitucional princípio implícito do Direito Sancionatório, segundo o qual a lei mais benéfica retroage no caso de sanções menos graves, como a administrativa. Precedentes.

III – A Agravante não apresenta, no agravo, argumentos suficientes para desconstituir a decisão recorrida.

IV – Em regra, descabe a imposição da multa prevista no art. 1.021, § 4º, do Código de Processo Civil de 2015 em razão do mero desprovimento do Agravo Interno em votação unânime, sendo necessária a configuração da manifesta inadmissibilidade ou improcedência do recurso a autorizar sua aplicação, o que não ocorreu no caso.

V – Agravo Interno improvido."

Por tudo isso, o desânimo das autoridades públicas em aplicar a tese da retroatividade é de difícil compreensão. A determinação constitucional, os posicionamentos doutrinários e as decisões judiciais conferem total respaldo à autoridade administrativa. O movimento da regulação responsiva, com melhorias do arcabouço regulatório (inclusive através de guilhotinas regulatórias), a necessária aproximação das partes e o trabalho em sinergia não mais justificam o prolongamento de argumentos pré-formatados e que não conversam mais com a realidade.

A aplicação da tese não representa qualquer assunção de erro da agência ou desoneração indevida das empresas. Mostra, apenas e tão somente, que elas se ajustam a realidade regulatória e o fazem respeitando os ditames da razoabilidade e segurança jurídica. É chegada a hora, portanto, de se criar um novo paradigma sobre o tema, reconhecendo a aplicação da retroatividade da lei mais benéfica no âmbito dos processos administrativos sancionatórios.

 


[1] Como, por exemplo, Parecer nº 1.214/2010/LFF/PGF/PFE-Anatel exarado há 13 anos e aparece recorrentemente dos processos sancionatórios ou, ainda, o Parecer nº 28/2015/DEPCONSU/PGF/AGU, exarado à 11 anos, também com interpretação pró-fiscalização.

Autores

  • é advogada especialista em Direito Regulatório, membro da Infrawomen Brazil e da Comissão do Acadêmico de Direito da OAB-SP, mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP, doutora em Direito Administrativo pela USP e autora dos livros Processo administrativo negocial e Compromisso de Ajustamento de Conduta e a Eficiência Administrativa.

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