Embargos Culturais

Direito do Consumidor na Sociedade de Informação, de Paulo Roque Khouri

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

20 de agosto de 2023, 8h00

Paulo Roque Khouri agrega a uma sólida formação jurídica uma graduação em jornalismo. Conhece as relações entre direito e opinião, entre direito e informação. Há em sua trajetória uma especial apreensão para temas que aproximam as relações consumeristas ao mundo informacional. Essa justaposição é o núcleo de tese que publicou pela Almedina, com o título de Direito do Consumidor na Sociedade de Informação. O autor doutorou-se pelo IDP, orientado por Paulo Gustavo Gonet Branco.

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O ponto de partida da tese é a assimetria informacional que matiza as relações entre o consumidor e o fornecedor. É esse o problema central que o direito à informação do consumidor coloca inclusive no plano da teoria do direito. Se correto o postulado de que o direito privado se baliza pela autonomia da vontade (da mesma forma que direito público seria marcado pela supremacia do interesse público em face do privado), deve-se garantir o pleno exercício dessa autonomia. Como?

A vontade é o referencial de escolha, o que exige, prioritariamente, a plenitude de informações. A vontade (escolha) é livre quando o agente detém as informações de que precisa para escolher com a liberdade que a escolha exige. O raciocínio revela-se tautológico, mas é nessa redundância, em que o atributo reproduz o sujeito, que se encontra um dos pilares da tradição do direito privado. É onde se enquadram os temas dos vícios redibitórios e dos defeitos ocultos, como lemos no artigo 441 do Código Civil.

O consumo é um ato de vontade (escolha) que se exerce (plenamente) a partir do acesso a informações. Penso que essa trava lógica é o pano de fundo desse livro tão valioso para a compreensão dos tempos presentes. A assimetria informativa, em forma de disfunção relacional, é o problema que Paulo Roque Khouri enfrenta: "o direito à informação do consumidor tem uma de suas justificativas na constatação da assimetria informativa". Como garantir ao consumidor o direito à informação plena e necessária?

Paulo Roque Khouri problematizou a velha máxima que prescrevia que o tomador do serviço ou comprador da coisa tomasse cuidado com o fornecedor/vendedor: "caveat emptor", isto é, o risco é do comprador, que deve então tomar todos os cuidados, dado que é responsável pela escolha. E como o mercado não é perfeito — argumenta o autor, o que é um fato — inverteu-se a lógica obrigacional, vinculando-se o vendedor, no contexto de um novo paradigma: "caveat venditor". Algo como a inversão do ônus da prova tomado em um sentido operacional concreto.

Nessa parte do argumento o autor retoma temas centrais da teoria do direito privado, a exemplo do princípio da boa-fé, da conceituação da fase pré-contratual, inclusive com referência ao tema da responsabilidade civil por conselhos e informações (tema de obra de Jorge Ferreira Sinde Monteiro, publicada pela Almedina em 1989).

O consumidor tem direito à informação. A premissa é justificada pela boa-fé, pela confiança, pela vulnerabilidade de quem consome, pela busca do equilíbrio contratual e da justiça, bem como pela regra geral de igualdade e da liberdade. E não por acaso são esses os pontos que o autor apresenta na parte final do livro. Com referência à obra de Paulo Mota Pinto (que leciona em Portugal, e onde também é importantíssimo legislador — é deputado) o autor problematiza a chamada "distância informativa", de certo modo "maximizada nas contratações eletrônicas (…) aumentando a vulnerabilidade do consumidor". A compra à distância é um fator complicador do problema da assimetria de informações. O fato é recorrente, por exemplo, no consumo de pacotes de turismo.

Com base em pesquisa empírica, Paulo Roque Khouri também revela uma certa inércia do consumidor, um certo comportamento passivo, que resulta de leituras pouco atenciosas de contratos e de manuais de instrução. Exemplifica com manuais de instrução de veículos automotores cujas alertas não seriam seriamente levadas em conta. O autor defende um comportamento ativo por parte do consumidor, consistente no permanente exercício de interpretação das informações. Tem-se, nesse passo, uma insinuação (sólida) de que o fundamento da vitimologia (discutido na criminologia) teria reverberação também nas relações de consumo. Essa concepção é radical. A educação do consumidor também é um obstáculo à efetividade do direito à informação.

Em Direito do Consumidor na Sociedade de Informação tem-se coleta e explicação de farta jurisprudência. A questão (por razões de competência temática) é recorrente no STJ. O tribunal tem sustentado que "o fornecedor deve manter intato o direito à informação do consumidor". Aplica-se a regra do CDC, o que resulta na compreensão de que "o direito à informação não se limita à fase pré-contratual, ele está intensamente presente no momento da celebração do próprio contrato, estendendo-se à fase da execução (…)". A relação de consumo não se exaure com a compra, pagamento e entrega.

O autor argumenta que o "que se busca na fase de execução do contrato é que o direito à informação facilite ao máximo o conhecimento do consumidor não só de suas obrigações, como de seus direitos". Paulo Roque Khouri explica que o problema é mais grave nas relações que tem como pressuposto a assistência à saúde. Creio que se trata da parte mais instrumental do livro, dado o volume de ações que opõem planos de saúde, conveniados e contratantes.

De um ponto de vista mais dogmático chamo a atenção para o capítulo 5, que cuida dos interesses primariamente tutelados pelo direito à informação. Há diferenças substanciais entre informar, esclarecer e aconselhar, situações que são pautadas por variáveis de intensidade, mas cujo resultado possa marcar um denominador comum. A multiplicação exponencial do comércio eletrônico agudiza o problema, o que se revela com a fragilização do consumidor, que é inegável. Basta que consultemos sítios eletrônicos que albergam reclames.

Direito do Consumidor na Sociedade de Informação, de Paulo Roque Khouri, é um livro que finca pontos conceituais para a elucidação de miríade de questões que transitam do sistema nacional de defesa do consumidor (Procon) para nossos tribunais. O autor apresenta conjunto de soluções para o avanço tecnológico com o qual convivemos. Na tipologia de Umberto Eco (apocalípticos ou integrados), Paulo Roque Khouri é um integrado na medida em que apresenta a justa medida para a composição de conflitos que decorrem da assimetria de informações entre quem vende e quem compra.

Já não há mais espaço para o bazar das complicadas ruas e becos de algumas cidades de um oriente imaginário saído das 1.001 noites. Parece essa a grande verdade que se extrai desse precioso livro.

Autores

  • é livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP e advogado, consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional. É sócio do escritório Hage, Navarro & Godoy.

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