Opinião

Nova Lei de Licitações: terceirização de vedação ao "suicídio estatal"

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

19 de agosto de 2023, 6h32

O que muda e o que permanece, substancialmente, nas  regras da terceirização na Administração Pública?

tivemos oportunidade de opinar nesta ConJur sobre as alterações em relação à responsabilidade da Administração pública.

Quanto aos convênios já tivemos oportunidade de opinar pela manutenção substancial das mesmas regras da provecta Lei 8.666/93, usando a metáfora da "vigência 'post mortem'" da lei 8.666/93 nesse específico aspecto.

O "terceiro setor" tem legislação específica e, portanto, não sofre alterações substanciais com a nova lei.

O presente texto pretende enfrentar as possíveis alterações em relação ao Decreto Federal nº 9.507/2018 e ainda, em relação à Lei Federal nº 13.429/2017 (que alterou a lei 6.019/74, sobre trabalho temporário). As regras vedam o "suicídio estatal", conforme explicitado adiante.

Referido decreto apenas escancara hipóteses de vedação à terceirização com a finalidade de afastar hermenêuticas de "privatização" de funções típicas de Estado.

Já a referida Lei Federal 13.429/2017 altera a lei do trabalho temporário e o tema da terceirização. A dúvida consiste em saber até que ponto incidiria nas entranhas do Poder Público.

Primeiro tema: O decreto federal é aplicável a outros entes federados (estados, DF e municípios)?

Ousamos afirmar que sim. Aplica-se aos demais entes políticos especialmente a regra do artigo 3º. O decreto nada mais faz do que uma "interpretação autêntica" de regras constitucionais que dificilmente teriam uma hermenêutica distinta, já que, inobstante a obviedade, afasta hermenêuticas de amesquinhamento das funções estatais propriamente ditas.

Assim prevê referido artigo 3º do Decreto Federal nº 9.507/2018:

"Artigo 3º Não serão objeto de execução indireta na administração pública federal direta, autárquica e fundacional, os serviços:
I – que envolvam a tomada de decisão ou posicionamento institucional nas áreas de planejamento, coordenação, supervisão e controle;
II – que sejam considerados estratégicos para o órgão ou a entidade, cuja terceirização possa colocar em risco o controle de processos e de conhecimentos e tecnologias;
III – que estejam relacionados ao poder de polícia, de regulação, de outorga de serviços públicos e de aplicação de sanção; e
IV – que sejam inerentes às categorias funcionais abrangidas pelo plano de cargos do órgão ou da entidade, exceto disposição legal em contrário ou quando se tratar de cargo extinto, total ou parcialmente, no âmbito do quadro geral de pessoal.
§1º Os serviços auxiliares, instrumentais ou acessórios de que tratam os incisos do caput poderão ser executados de forma indireta, vedada a transferência de responsabilidade para a realização de atos administrativos ou a tomada de decisão para o contratado."

O que o decreto faz é sedimentar a obviedade de que o Estado precisa existir e cumprir suas funções elementares. O decreto é uma espécie de "Leviatã" escrito por Temer (e não por Thomas Hobbes) informando, em suas entrelinhas, que o Estado precisa existir para evitar a guerra de todos contra todos. O Estado, portanto, não pode "privatizar" as decisões, fiscalizações, poder de polícia, dever de sancionamento, etc.

Em síntese, o decreto é aplicável porque faz uma "interpretação conforme" (para usar expressão da jurisprudência do STF) para destacar que o Estado foi "criado" pela Constituição de 1988 e não pode abrir mão de sua própria existência.

Por tais motivos é que o decreto é aplicável a qualquer ente político pois nada mas faz do que vedar o "suicídio estatal" de privatizar o próprio dever de decidir/fiscalizar/sancionar.

Não há ofensa ao princípio federativo pelo simples motivo de que nenhuma norma jurídica (nem mesmo uma emenda constitucional) poderia interpretar a Carta Federal de maneira a "abolir" o próprio Estado.

Quanto à aplicação da Lei Federal nº 13.429/2017 o ponto relevante para o presente debate é a vedação de contratação de pessoa jurídica que tenha como sócios quem tenha sido empregado da administração pública nos 18 meses que antecedem a exoneração/demissão do empregado.

Assim:

"Artigo 5º – C. Não pode figurar como contratada, nos termos do artigo 4º – A desta Lei, a pessoa jurídica cujos titulares ou sócios tenham, nos últimos dezoito meses, prestado serviços à contratante na qualidade de empregado ou trabalhador sem vínculo empregatício, exceto se os referidos titulares ou sócios forem aposentados.
Artigo 5º – D. O empregado que for demitido não poderá prestar serviços para esta mesma empresa na qualidade de empregado de empresa prestadora de serviços antes do decurso de prazo de 18 meses, contados a partir da demissão do empregado."

No que tange à administração pública celetista (empresas públicas, sociedades de economia mista, estados e municípios) não há a menor dúvida: aplica-se a regra da do trabalho temporário e a respectiva vedação.

A questão a saber é se a reforma do trabalho temporário seria aplicável aos entes políticos estatutários, já que não são regidos pela CLT.

Pensamos que sim.

A regra que veda a "pejotização" no âmbito privado tem caráter inequivocamente moralizador da regra da terceirização.

No âmbito privado a moralidade precisa vir expressa em lei em consonância com o princípio da legalidade do artigo 5º, II (o cidadão pode fazer tudo o que não estiver proibido por lei). Já no âmbito do Poder Público é decorrência direta do artigo 37, "caput".

Assim, a administração pública só pode fazer aquilo que tenha previsão em lei. A reforma do trabalho temporário é aplicável aos entes políticos que não tenham legislação específica tratando do tema, já que somente a lei pode autorizar contratação do outrora servidor  através de empresa terceirizada de propriedade do servidor exonerado/demitido.

Tanto na administração pública celetista quanto na administração estatutária a vedação de "pejotizar" tem a finalidade de impedir a institucionalização da hipocrisia administrativa com a prevalência do interesse privado em relação ao interesse público. Ou seja, trata-se, novamente, de uma regra de sobrevivência à existência do Estado como ente público propriamente dito.

Além disso, a regra prestigia o dever de ingresso pelo concurso público, não podendo o servidor que rompeu seus laços laborais atuar com os benefícios da atividade privada, e, ao mesmo tempo, e com o trânsito na administração típicos do servidor. Seria, praticamente, o exercício de advocacia administrativa com amparo contratual.

Em síntese: O decreto 9.507/2018 é aplicável a todos os entes políticos sem que haja ofensa ao princípio federativo por ser mera "interpretação conforme" das regras constitucionais pertinentes à própria existência do Estado.

A reforma do trabalho temporário, no aspecto da "quarentena" de 18 meses para a contratação de empregado que rompeu o contrato de trabalho aplica-se aos entes políticos regidos pela CLT e aplica-se, também, aos entes políticos estatutários como decorrência do princípio da moralidade. A exceção dos estatutários seria no caso em que haja legislação específica.

Referidas regras vigentes em relação à Lei 8.666/93 continuam vigentes sob a égide da NLLC, já que são normas de "vedação ao suicídio estatal" e sedimentadoras do princípio da moralidade.

Autores

  • é mestre em Direito pela PUC-SP, procurador municipal e autor do livro, Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª Ed. Dialética, 2.023) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (Coordenador: Marcelo Figueiredo, Ed. Juspodivm, 2.023).

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