Opinião

A vigência post mortem do artigo 116 da Lei federal nº 8.666/93

Autor

  • Laércio José Loureiro dos Santos

    é mestre em Direito pela PUC-SP procurador municipal e autor do livro Inovações da Nova Lei de Licitações (2ª ed. Dialética 2023 — no prelo) e coautor da obra coletiva A Contratação Direta de Profissionais da Advocacia (coord.: Marcelo Figueiredo Ed. Juspodivm 2023).

23 de junho de 2021, 15h07

Um questionamento feito por respeitado servidor do setor de finanças públicas sobre o tema dos convênios sob a égide da nova Lei de Licitações serviu de inspiração para o presente texto, feito sob medida para a prestigiada revista eletrônica Consultor Jurídico e — posteriormente — como parte da revisão a ser feita na eventual segunda edição de nossa pequena obra sobre as inovações da lei de licitações.

"Como ficam os convênios com a nova lei de licitações se o artigo 184 da nova lei não prevê os requisitos para os convênios como prevê o artigo 116 da lei federal nº 8.666/93?".

Essa é a síntese da indagação sobre o tema dos convênios e o direito intertemporal.

Vejamos as duas regras e prestemos atenção ao laconismo (meramente aparente) da nova lei.

Assim, prevê o artigo 184 da nova lei (14.133/21):

"Artigo 184  Aplicam-se as disposições desta lei, no que couber e na ausência de norma específica, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração Pública, na forma estabelecida em regulamento do Poder Executivo federal".

Uma primeira interpretação da regra acima nos levaria a concluir que o Decreto Federal nº 6.170/2007 seria a regra para a pormenorização dos convênios, conforme previsão da parte final do artigo 184 da nova lei.

Porém, tal decreto padece de dois defeitos congênitos que o impedem de se transformar num "código dos convênios".

Primeiro defeito: só pode regulamentar verbas federais a serem transferidas a outros entes via convênio e não a todo e qualquer convênio.

Segundo defeito: a competência para legislar sobre "normas gerais" de licitações compete à União, que tem competência privativa para legislar sobre normas gerais de licitações, conforme previsão do artigo 22, XXVII, da Carta Federal.

Tal competência — evidentemente  não pode ser exercida pela via do decreto, já que a inovação originária da ordem jurídica somente pode ser feita pela lei em sentido estrito.

De qualquer maneira, o referido decreto serve de fulcro jurídico para os convênios que envolvam a União e repasses para os contratos de colaboração com órgãos ou entidades sem fins lucrativos.

E para os demais convênios?

Para os demais convênios devemos aplicar as regras do artigo 116 da Lei federal nº 8.666/93, inclusive após a revogação da referida lei pelos motivos que elencaremos a seguir.

Prevê a referida regra:

"Artigo 116  Aplicam-se as disposições desta lei, no que couber, aos convênios, acordos, ajustes e outros instrumentos congêneres celebrados por órgãos e entidades da Administração.
§ 1o A celebração de convênio, acordo ou ajuste pelos órgãos ou entidades da Administração Pública depende de prévia aprovação de competente plano de trabalho proposto pela organização interessada, o qual deverá conter, no mínimo, as seguintes informações:
I
 identificação do objeto a ser executado;
II
 metas a serem atingidas;
III
 etapas ou fases de execução;
IV
 plano de aplicação dos recursos financeiros;
V
 cronograma de desembolso;
VI
 previsão de início e fim da execução do objeto, bem assim da conclusão das etapas ou fases programadas;
VII
 se o ajuste compreender obra ou serviço de engenharia, comprovação de que os recursos próprios para complementar a execução do objeto estão devidamente assegurados, salvo se o custo total do empreendimento recair sobre a entidade ou órgão descentralizador".

Note-se que tanto a Lei 8666/93 quanto a nova Lei 14.133/21 preveem a aplicação subsidiária das regras licitatórias como parâmetro para as regras aplicáveis aos convênios.

Note-se, ainda, que todas as regras previstas no §1º do artigo 116 da Lei 8.666/93 estão previstas  de maneira esparsa — na nova Lei 14.133/21 e no sistema jurídico.

Vejamos.

Previsão de "plano de trabalho" do §1º do artigo 116 da Lei federal 8.666/93.

O artigo 5º da nova lei prevê como princípio da licitação o "planejamento" e utiliza esse termo 12 vezes ao longo do texto legal, referindo-se ao estudo técnico preliminar, sendo que no artigo 18 o termo é utilizado como vinculado ao plano anual de contratações.

Portanto, o termo "plano de trabalho" do artigo 116 da Lei federal 8.666/93 continua vivo na nova lei, ainda que de forma esparsa ao longo de toda a nova legislação.

Assim, há "sobrevida" dessa regra.

A "sobrevida" tem valor retórico, pois  de fato a regra "nasceu" com a nova lei em outros artigos específicos da nova norma.

A regra do §1º, I, do artigo 116 da Lei federal 8.666/93 prevê a indicação do objeto.

As regras licitatórias da nova Lei 14.133/21 utilizam o termo "objeto" 124 vezes. No artigo 6º, XXIII, "a", ao definir o termo de referência, faz menção ao "objeto" prevendo a necessidade de sua definição.

Ainda que não fosse por previsão legal, o objeto deve ser delimitado em qualquer ato/contrato ou convênio, já que até mesmo os contratos sigilosos devem ter algum objeto. Trata-se, portanto, da própria existência do convênio a delimitação de seu objeto. Se não há objeto não é possível a existência do próprio convênio.

O artigo 46 da nova Lei de Licitações prevê em seu §9º a indicação das metas na maioria dos regimes contratuais.

Todo convênio deve ter alguma meta ou objetivo, motivo pelo qual permanece em vigor a regra do inciso II do §1º do artigo 116 da Lei federal 8.666/93.

No mesmo diapasão, o artigo 46, §§6º e 9º, da nova Lei 14.133 estabelece a necessidade de cronograma financeiro atrelado ao cronograma de obras/serviços.

Assim:

"§6º. A execução de cada etapa será obrigatoriamente precedida da conclusão e da aprovação, pela autoridade competente, dos trabalhos relativos às etapas anteriores.
§ 7º (VETADO).
§ 8º (VETADO).
§ 9º Os regimes de execução a que se referem os incisos II, III, IV, V e VI do caput deste artigo serão licitados por preço global e adotarão sistemática de medição e pagamento associada à execução de etapas do cronograma físico-financeiro vinculadas ao cumprimento de metas de resultado, vedada a adoção de sistemática de remuneração orientada por preços unitários ou referenciada pela execução de quantidades de itens unitários".

Dessa forma, os incisos III a VI do artigo 116 da provecta Lei federal 8666.93 (que tratam das etapas financeiras e de execução do convênio) continuam em vigor em razão da previsão nos parágrafos 6º e 9º da nova lei, que tratam  exatamente  dos mesmos temas.

Já o inciso VII do mesmo artigo 116 da provecta Lei 8.666/93 tem previsão na Lei federal nº 4.320/64 em seu artigo 4º, bem como na Constituição Federal em seu artigo 167, I.

A previsão orçamentária para as respectivas despesas nem precisaria constar na Lei de Licitações, já que é regra mínima de governança estatal.

Receitas/despesas e respectivas dotações são regras básicas e elementares das finanças públicas e das regras elementares de gestão.

Enfim, do ponto de vista prático é possível (e até recomendável) que a pormenorização das regras sobre convênios na administração pública continue seguindo as mesmas regras do artigo 116 da provecta Lei federal 8.666/93, já que  apesar do laconismo da nova Lei federal 14.133/21  as mesmas regras da lei antiga estão espalhadas pela lei nova, pela Lei federal 4.320/64 e pela Constituição Federal.

Para reforço do quanto exposto, registre-se que o próprio Decreto federal nº 6.170/2007 segue  grosso modo  as mesmas regras quanto ao cronograma de desembolso (artigo 7º, §1º, do referido decreto), remuneração da equipe da entidade privada vinculada à execução do objeto (artigo 11-B, §3º) e obrigatoriedade de haver forma de acompanhamento por parte do órgão concedente da execução do objeto do convênio (artigo 6º do decreto). Em síntese, o decreto também exige descrição do objeto, planejamento e cronograma de execução e desembolso das respectivas verbas.

O convênio firmado sem seguir tais mínimos parâmetros feriria de morte os princípios da impessoalidade, moralidade e da eficácia previstos no artigo 37, caput, da Carta Federal, já que seria um "convênio" sem o mínimo de objetividade com finalidades impossíveis de serem determinadas cuja eficácia seria, também, impossível de ser apreciada. Enfim, não se trataria de um convênio propriamente, dito mas de um arremedo de ato administrativo regido por normas sobre ilicitudes praticadas no seio da Administração Pública.

As regras do artigo 116 da Lei federal 8.666/93 são  a bem da verdade  parâmetros óbvios da própria existência jurídica do convênio. Sem tais regras de descrições básicas do convênio não seria possível a prestação de contas prevista no artigo 70, parágrafo único, da Carta Federal, já que um convênio sem descrição de seu objeto, de suas metas e seus cronogramas de desembolso e execução não teria qualquer substância real para a prestação de contas e seria simples enriquecimento sem causa de uma das partes do convênio.

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