Opinião

Natureza jurídica da notificação prévia na redação original da Lei 8.429/92

Autores

  • Frederico Augusto Leopoldino Koehler

    é doutorando pela USP mestre e bacharel em Direito pela UFPE ex-juiz federal instrutor no STJ atualmente juiz federal do TRF-5ª Região professor adjunto da UFPE professor do mestrado profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam) formador e conteudista da Enfam membro e secretário-geral adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e membro e secretário-geral da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

  • Luís Manoel Borges do Vale

    é procurador do estado de Alagoas nomeado procurador federal ex-advogado da Petrobras doutorando pela Universidade de Brasília (UnB) mestre em Direito Processual pela Universidade Federal de Alagoas especialista pela Ohio University professor de Direito Processual Civil na Pós-Graduação da Uerj na Escola Superior da Magistratura de Alagoas (Esmal) na Escola da Advocacia-Geral da União e nos cursos ATC e Forum e membro da Internacional Association of Privacy Professionals (IAPP) do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (Annep).

  • Silvano José Gomes Flumignan

    é doutor mestre e bacharel em Direito pela USP professor adjunto da UPE e da Asces/Unita professor permanente do mestrado profissional do Cers ex-pesquisador visitante na Universidade de Ottawa ex-assessor de ministro do STJ procurador do estado de Pernambuco coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE e advogado.

18 de agosto de 2023, 21h32

A Lei 14.230/21 alterou profundamente o regime jurídico da ação de improbidade administrativa. Contudo ainda subsistem inúmeros casos nos quais se exige um olhar cuidadoso sobre a redação original da Lei 8.429/1992, a fim de verificar qual a norma aplicável, em um exame de direito intertemporal.

Essa discussão é relevante em virtude de o artigo 14 do CPC atual prever a aplicação imediata das regras processuais introduzidas por novos textos legislativos, o que inclui as regras da Lei 14.230/2021.

Quando do julgamento do Tema 1.199/STF, o Supremo Tribunal Federal adotou o padrão do ato jurídico perfeito, considerando válidos os atos processuais praticados sob a vigência da lei anterior. Portanto, o padrão de validade adotado é o do momento da realização do ato.

Um dos pontos da legislação anterior que carece de elucidação doutrinária e jurisprudencial envolve impasse relacionado à correta compreensão dos termos atécnicos utilizados pela legislação da época para designar algumas das comunicações processuais exaradas no antigo procedimento.  

De fato, ainda é preciso o esclarecimento sobre qual a natureza jurídica de um dos atos de comunicação processual da legislação anterior: a comunicação prévia.

 Na sistemática antiga existia a fase de defesa prévia, em que o réu era notificado para apresentar uma manifestação preliminar acerca do possível recebimento da inicial, de tal modo que, a partir deste momento, passava a compor a relação jurídica processual, nos termos do artigo 17, §§7º a 10, na redação original da Lei 8.429/1992 [1].

A notificação constante do §7º, do artigo 17, da Lei nº 8.429/1992 consubstanciava-se em meio próprio a cientificar o réu acerca do processamento da ação de improbidade administrativa, convocando-lhe aos autos para o exercício do contraditório e da ampla defesa quanto à etapa inaugural de discussão sobre o recebimento/não recebimento da inicial.

A partir desse momento, o demandado poderia constituir advogado para atuar nos autos, de modo a regularizar os termos da sua representação no processo, inclusive para fins de direcionamento de futuras intimações.

Caso o magistrado, após análise percuciente dos elementos coligidos aos autos, decidisse por receber a inicial da ação de improbidade de administrativa, o réu seria "citado" para apresentar contestação no prazo legal, em consonância com o §9º, do artigo 17, da Lei nº 8.429/1992.

A despeito de a legislação pretérita nominar o segundo ato de comunicação processual de "citação", é certo que este não possuía as características próprias do referido instituto processual.  

Isso porque, tecnicamente, a citação é o ato que contém um conteúdo e uma função. O conteúdo é o próprio objeto que se pretende comunicar. A função é de integrar o réu à relação jurídica processual, nos termos do que já prelecionava o artigo 213 do Código de Processo Civil de 1973 e do que dispõe o atual artigo 238 do CPC vigente, cuja redação merece ser transcrita em sua integralidade: "Artigo 238. Citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual".

Sobre o tema, são válidas as considerações tecidas por Pontes de Miranda (Comentários ao Código de Processo Civil. Tomo III. 2ª edição. Rio de Janeiro: Forense, 1974, p. 194-195):

"Objetivamente, a relação jurídica processual resulta do exercício de pretensão a tutela jurídica do autor, dirigindo-se ao juiz, com a consequente citação que o juiz ordena, dando conhecimento da petição, tal como ocorre no Código, ou marcando a audiência para esse conhecimento, segundo outros sistemas.
A citacão angulariza a relação jurídica processual. Subjetivamente, aforismos traduzem o que deriva dessa necessidade de ser ouvido o réu, necessidade decorrente da civilização, porque nem sempre existiu, nem existe em certos povos atrasados, ou desaparece em momentos despóticos. Um desses aforismos é o Nemo inauditus damnari potest. O chamamento para juízo e a ciência, a ouvida, nem sempre andam juntos. A citação, segundo o étimo, apenas chama, estimula. A audiência é outra coisa. No Código de Processo Civil estão, porém, intimamente fundidos, quase identificados; e esse fato há de ser sempre lembrado para se entender a sua sistemática."

Nesse contexto, a "notificação" expedida para apresentação de defesa prévia ontologicamente se consubstancia como ato citatório, na medida em que informa o réu da existência de ação de improbidade administrativa, oportuniza a ele o comparecimento em juízo  angularizando a relação jurídica processual que, até aquele momento, era uma relação linear entre autor e Estado-juiz , a fim de que este possa exercer, em substância, o contraditório e a ampla defesa. Inclusive, em reforço ao que se aduz, é preciso destacar que a notificação aludida é realizada na pessoa do demandado  o qual, a essa altura, ainda não tem advogado com procuração nos autos , revestindo-se, portanto, do necessário caráter pessoal exigido para a citação.

Não há como sustentar raciocínio diverso pois, como bem destacam Marinoni, Arenhart e Mitidiero (MARINONI, Luiz Guilherme; ARENHART, Sérgio Cruz; MITIDIERO, Daniel. Código de Processo Civil comentado. 9ª ed. São Paulo, Thomson Reuters Brasil, p. 354): "A citação é uma densificação do direito fundamental à ampla defesa (artigos 5º, LV, CF) e visa a outorgar ao demandado ciência efetiva dos termos em que proposta a ação, a integrá-lo como parte no processo e possibilitar a sua adequada reação em juízo. Constitui um dos elementos centrais de nosso processo justo". Em linha de convergência, manifestam-se Daniel Amorim Assumpção Neves e Rafael Carvalho Rezende Oliveira (NEVES, Daniel Amorim Assumpção; OLIVEIRA, Rafael Carvalho Rezende. Manual de Improbidade Administrativa: Direito Material e Processual. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2018, p. 224):

"Nos termos do artigo 238 do CPC, citação é o ato pelo qual são convocados o réu, o executado ou o interessado para integrar a relação processual, não restando qualquer dúvida de que essa integração do réu ao processo de improbidade administrativa se dá pela notificação para a apresentação de defesa prévia. Na realidade, nesse ato de comunicação haverá uma cumulação de formas: citação para integrar o réu ao processo e intimação para apresentar a defesa prévia no prazo legal. Como o réu só pode ser integrado ao processo uma vez, é natural compreender que a chamada citação do artigo 17, §9º, da Lei 8.429/1992 é de fato uma intimação, afinal, nessa oportunidade, o réu, já integrado ao processo, será tão somente chamado a contestar a pretensão do autor. Não custa lembrar que o art. 269 do CPC conceitua a intimação como ato pelo qual se dá ciência a alguém dos atos e dos termos do processo."

Com efeito, uma vez integrado o réu ao processo, através da notificação  na verdade, citação  para apresentação da defesa prévia, cumpre que o órgão jurisdicional, em relação aos demais atos e termos processuais, promova regular intimação.  Exigir nova comunicação pessoal  ou seja, uma nova citação  equivale a subverter a lógica procedimental, descambando, assim, para uma grave lesão não apenas à efetividade da tutela jurisdicional, mas também à razoável duração do processo (sobre o tema, confira-se KOEHLER, Frederico Augusto Leopoldino. A razoável duração do processo. 2ª ed. Salvador: Juspodivm, 2013).

Se o sujeito já é parte do processo, não há razão plausível para que se promova nova citação, consoante destaca Leonardo Carneiro da Cunha (CUNHA, Leonardo Carneiro. Comentários ao Código de Processo Civil: artigos 188 ao 293. Vol. III. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016, p. 245):

"A definição legal de intimação revela sua finalidade: a de dar ciência a alguém dos atos e termos do processo. É ato de comunicação processual que se dirige para quem já é parte. Se o sujeito não é parte do processo, não deve ser intimado, mas citado, pois é a citação que convoca alguém a integrar o processo, passando a ostentar a condição de parte."

Essa discussão não é banal e um exemplo singelo demonstra a importância dos conceitos aqui apresentados. Para aqueles que defendem a natureza de intimação da notificação prévia e que a citação ocorreria apenas no segundo momento  quando se oportuniza a apresentação de contestação , haveria nulidade caso a "citação" (entendida por eles como essa segunda intimação) não fosse realizada na pessoa do réu. Argumenta-se aí, portanto, que o réu teria que ser intimado pessoalmente duas vezes, para apresentar a manifestação preliminar e para protocolar sua contestação.

Ao se adotar a concepção de que a "notificação prévia" tem a natureza de citação  como defendemos no presente texto  o procedimento correto na vigência da redação anterior à Lei 14.230/2021 consiste em: 1) realizar a notificação prévia na pessoa do demandado, para que fale a respeito do recebimento da petição inicial; 2) intimar o advogado do réu para apresentação de contestação. Logo, não cabe exigir-se duas "citações" no feito, sendo incorreta a alegação de nulidade caso a intimação para oferecimento de contestação seja realizada por publicação em nome do advogado do acusado.

Fundamental, portanto, que os termos sejam compreendidos adequadamente, com vistas a evitar desvirtuamento procedimental violador da razoável duração do processo nas ações de improbidade administrativa e para que se adote o padrão de validade do momento processual da prática do ato.

 

 


[1] Artigo 17. A ação principal, que terá o rito ordinário, será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação da medida cautelar.(…)

§7º Estando a inicial em devida forma, o juiz mandará autuá-la e ordenará a notificação do requerido, para oferecer manifestação por escrito, que poderá ser instruída com documentos e justificações, dentro do prazo de quinze dias.

§8º Recebida a manifestação, o juiz, no prazo de trinta dias, em decisão fundamentada, rejeitará a ação, se convencido da inexistência do ato de improbidade, da improcedência da ação ou da inadequação da via eleita.

§Recebida a petição inicial, será o réu citado para apresentar contestação.

§10º Da decisão que receber a petição inicial, caberá agravo de instrumento.

Autores

  • é doutorando pela USP, mestre e bacharel em Direito pela UFPE, ex-juiz federal instrutor no STJ, atualmente juiz federal do TRF-5ª Região, professor adjunto da UFPE, professor do mestrado profissional da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados (Enfam), formador e conteudista da Enfam, membro e secretário-geral adjunto do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e membro e secretário-geral da Associação Norte-Nordeste de Professores de Processo (Annep).

  • é procurador do estado de Alagoas, nomeado procurador federal, ex-advogado da Petrobras, mestre em Direito Processual pela Universidade Federal de Alagoas, especialista pela Ohio University, professor de Direito Processual Civil na Pós-Graduação da UERJ, na Escola Superior da Magistratura de Alagoas (ESMAL) e nos cursos ATC e FORUM, membro da Internacional Association of Privacy Professionals (IAPP), do Instituto Brasileiro de Direito Processual (IBDP) e da Associação Norte e Nordeste de Professores de Processo (ANNEP)

  • é doutor, mestre e bacharel em Direito pela USP, professor permanente do mestrado profissional do Cers, professor adjunto da UPE e da Asces/Unita, membro da Annep e do IEA da Asces/Unita, ex-assessor de ministro do STJ, advogado, procurador do estado de Pernambuco e coordenador do Centro de Estudos Jurídicos da PGE-PE.

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