populismo extremista

Democracia defensiva é saída para gerir liberdade dos inimigos da liberdade

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17 de agosto de 2023, 8h20

Para sobreviver às ondas de populismo extremista experimentadas na última década, as democracias liberais consolidadas como o Brasil devem estabelecer mecanismos para evitar que as liberdades e direitos garantidos pela Constituição Federal sejam usados para ameaçar a própria existência do Estado Democrático de Direito. A isso se dá o nome de democracia defensiva.

Alejandro Zambrana/Secom/TSE
Josef Christ (à dir.), da corte constitucional alemã, palestra em evento no TSE ao lado do ministro Alexandre de Moraes
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A ideia foi central em evento realizado pelo Tribunal Superior Eleitoral em parceria com a Embaixada da Alemanha, na manhã de quarta-feira (16/8), em que foram indicados caminhos que o país pode seguir para lidar com a incômoda necessidade de gerir a liberdade daqueles que são inimigos das liberdades.

Os alemães aprenderam a lição no Século XX, quando a República de Weimar — a primeira experiência republicana alemã — ruiu de dentro para fora. Pelas vias democráticas, Adolf Hitler ascendeu ao cargo de chanceler e, com a morte do presidente Paul von Hinderburg em 1934, concentrou poderes, dando início ao Terceiro Reich que levaria o mundo à Segunda Guerra Mundial.

Com o fim da guerra, em 1945, a Alemanha Ocidental viu a necessidade de criar uma Constituição, dessa vez com um caráter defensivo para impedir que fosse subjugada no futuro. Promulgada em 1949, a Lei Fundamental previu instrumentos de autopreservação que, ao longo de quase 75 anos, evoluíram e atingiram esse objetivo.

Trata-se de um país onde a liberdade de expressão protege quem acha que a democracia não é o melhor regime político e até a divulgação de conteúdo nacional-socialista, desde que não agressivo ou violento. Mas que, ao mesmo tempo, não permite o uso dessas liberdades para ameaçar ou destruir a ordem constitucional.

No Brasil, onde recentemente foi preciso inovar para preservar a democracia, persiste a questão: como tutelar a liberdade daqueles que são inimigos da liberdade? Presidente do TSE, o ministro Alexandre de Moraes indicou a democracia defensiva como um caminho a ser seguido, a partir de uma reanálise dos mecanismos de defesa das instituições democráticas.

"Não é possível que a Constituição permita o uso sem limites de determinadas liberdades para que a própria democracia seja rompida. Não há lógica nisso. Não é de hoje que nenhum dos direitos fundamentais é absoluto. Há limites individuais e coletivos no sentido da prevalência do Estado Democrático de Direito", afirmou.

Esse caminho passa pela atuação dos tribunais superiores. "O Brasil nos últimos anos tem demostrado que a Constituição Federal acertou em fortalecer as instituições e, principalmente, em apostar no fortalecimento do Judiciário como verdadeiro defensor da Constituição. Isso ficou demonstrado nas eleições de 2022", pontuou Moraes.

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"Estamos muito longe de qualquer espécie de ditadura judicial", explicou o ministro Paulo Sérgio Domingues, do STJ
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Instrumentos de defesa
O conceito e a prática da democracia defensiva foram melhor explicados no evento em palestra do juiz do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha Josef Christ, que apresentou os instrumentos usados no país para a defesa prática da democracia.

A disciplina desses instrumentos é extremamente rígida: só podem ser usados para proteger princípios básicos centrais indispensáveis ao Estado Democrático de Direito e em situações de mais elevado risco. Estão predominantemente sob controle da corte constitucional alemã e são definidos por seus efeitos sem qualquer margem de arbítrio.

Um exemplo é a possibilidade de proibir a existência de partidos políticos. Não há gradação: ou se proíbe ou estará liberado para existir. Até hoje, só duas legendas chegaram a tanto: o Partido Socialista do Reich, de cunho nazista, em 1952, e o Partido Comunista alemão, em 1956.

Atualmente, o partido de extrema-direita Alternativa para a Alemanha, da sigla AfD, é monitorado e pode ser alvo de processo de proibição. O mesmo pode ocorrer com associações civis. 55 delas já foram proibidas, em regra por se situarem no campo do extremismo de direita, de esquerda, contra estrangeiros e do islamismo.

Há dois outros instrumentos que nunca foram usados, mas cuja existência tem enorme função simbólica: a suspensão de direitos fundamentais, por meio da qual indivíduos que abusem dos seus direitos de liberdade podem ser privados da proteção dos mesmos, e a denúncia contra juízes — nesse caso, tem-se optado por seguir a via do direito do funcionalismo público para disciplinar magistrados inimigos da Lei Fundamental.

O uso da democracia defensiva também pode passar pelo Direito Penal, por meio da tipificação de crimes contra a proteção do Estado. A última salvaguarda da constituição alemã está na definição expressa de cláusulas pétreas em áreas nucleares em que são traçadas linhas intransponíveis para o legislador. Dentre elas, estão as que tratam de princípios da democracia, da República e do estado social.

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Para o Advogado-Geral da União Jorge Messias, experiência alemã ajuda a traçar caminho a ser seguido pelo Brasil
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A função do Judiciário
"Nossa Lei Fundamental tomou um caminho oposto à da Constituição de Weimar", apontou o Josef Christ. O documento foi pioneiro no estabelecimento dos direitos fundamentais e sociais e influenciou várias constituições a partir de então, mas podia ser emendado sem limites, sem quaisquer mecanismos de defesa contra seu esvaziamento.

Prevalecia, à época, o entendimento de constitucionalistas alemães como Gerhard Anschultz no sentido de que a Constituição não está acima do Poder Legislativo, mas a serviço do mesmo. Segundo o juiz Christ, em uma análise atual, a Constituição de Weimar ruiu mais porque muitos alemães não tinham confiança no Estado Democrático de Direito e porque a nova ordem não contou com apoio amplo da sociedade, sobretudo das elites.

A lição que fica é que o Estado de Direito está mais bem protegido quando firmemente arraigado na convicção política dos cidadãos. "Os tribunais constitucionais servem melhor a democracia quando não se tornam atores públicos, mas cumprem sua tarefa de guardiões da Constituição, sendo neutros em meio ao embate político de ideias", destacou o magistrado alemão.

Para o ministro do Superior Tribunal de Justiça, Paulo Sérgio Domingues, a vivência brasileira dos últimos anos expôs como é importante esclarecer à sociedade sobre medidas adequadas no combate a esse ambiente de violência política.

"Estamos muito longe de qualquer espécie de ditadura judicial. A missão não é e nunca foi eliminar o debate político. Ao contrário: o debate é da essência da democracia. Não se tolera a tentativa de abolir a democracia a partir de um falso debate. Garantir o equilíbrio faz parte da essência da atuação judicial", afirmou.

Advogado Geral da União, Jorge Messias destacou a criação recente de um dos mecanismos de democracia defensiva no Brasil: a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, que foi apelidada pelos críticos de Ministério da Verdade. E afirmou que a experiência alemã ajuda a traçar com segurança caminho a ser seguido: a defesa da democracia para um regime de governo dinâmico, igualitário e inclusivo.

"Considero essencial a retomada do crescimento econômico, com o fortalecimento dos direitos sociais. Um novo ciclo de desenvolvimento parece andar junto da defesa da democracia. É preciso cumprir promessas da Constituição e estabelecer de uma vez por todas o Estado Social e Democrático de Direito, para resgatar a confiança da sociedade nas instituições", expôs.

No encerramento do evento, o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, um especialista no constitucionalismo alemão, fez um balanço do momento brasileiro. Relatou como a sensação de orgulho pelo mais longo período democrático da história republicana brasileira foi substituído por temores de ruptura institucional, que levaram ao 8 de janeiro.

"Estou a contar a história de um atropelamento que pôde ser evitado graças ao funcionamento das instituições", disse, ao afirmar que o aprofundamento do diálogo com a Alemanha pode ser pedagógico e fortalecedor. "Inclusive para o debate que temos no Brasil a propósito da necessidade de defesa da democracia, de não sermos tolerantes com quem não é tolerante."

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Da esquerda para a direita: Jorge Messias, Advogado-Geral da União; Paulo Sérgio Domingues, ministro do STJ; Alexandre de Moraes, presidente do TSE; Josef Christ, juiz do Tribunal Constitucional Federal alemão; Gilmar Mendes, ministro do STF; e Wolfgang Bindseil, chefe de missão adjunto da Embaixada da Alemanha 
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