Opinião

A legalização da cannabis na Alemanha e o conflito com o direito europeu

Autor

  • Pedro Vitor Serodio de Abreu

    é mestrando em Direito Internacional e Europeu pela Universität des Saarlandes especialista em Direito Econômico Europeu Comércio Exterior e Investimento e legal assistant na MarketVector Indexes em Frankfurt.

14 de agosto de 2023, 21h34

A iniciativa alemã de legalizar o uso da cannabis reflete uma mudança potencial na abordagem do país, considerando as consequências legais e sociais da atual política de proibição. Essa era uma meta já definida no acordo de coalizão o qual liderada por Olaf Scholz e se tornou um dos principais objetivos do ministro da saúde alemão, Karl Lauterbach, que em abril de 2022 anunciou planos para implementar um projeto regional que permitirá a obtenção de cannabis em estabelecimentos licenciados [1].

Uma pesquisa da Universidade Heinrich-Heine, de Düsseldorf, indica que a legalização poderia economizar cerca de 1,4 bilhão de euros em custos com polícia, tribunais e sistema prisional. Isso se deve ao fato de a polícia registrar anualmente mais de 100 mil infrações relacionadas à cannabis. Em 2022, houve quase 180 mil desses delitos. Com a nova regulamentação, a posse ilegal só seria considerada a partir de 25,1 gramas, eliminando a maioria dos delitos registrados [2].

Além disso, um dos principais argumentos a favor da legalização é que os benefícios para o estado e os contribuintes são notáveis. Isso porque estado poderia arrecadar até 1,8 bilhão de euros por ano com um imposto sobre a cannabis. Outras receitas fiscais, como impostos sobre vendas, salários e corporações, poderiam somar cerca de 1,1 bilhão de euros [3].

Dessa maneira, em 6 de julho de 2023, o Ministério Federal da Saúde da Alemanha apresentou um projeto de lei intitulado "Entwurf zum Cannabisgesetz" (Esboço da Lei da Cannabis). Este projeto de lei propõe a legalização do cultivo privado de cannabis por adultos para consumo próprio e também o cultivo coletivo, não comercial, em associações de cultivo [4].

O projeto de lei estabelece limites claros para o cultivo e distribuição de cannabis. Por exemplo, o cultivo privado é limitado a um máximo de três plantas femininas em floração. Além disso, as associações de cultivo podem distribuir cannabis aos seus membros para consumo próprio, mas a quantidade é limitada a um máximo de 25 g por dia e 50 g por mês. Para jovens com menos de 21 anos, a quantidade é ainda mais restrita, limitada a 30 g por mês, com uma restrição adicional no teor permitido de THC [5].

O projeto ainda estipula que adultos na Alemanha poderão cultivar cannabis para uso privado, com o cultivo privado sendo limitado a um máximo de três plantas femininas em floração. Além do cultivo privado, foram introduzidas diretrizes para associações não lucrativas que desejam cultivar cannabis. Estas associações poderão cultivar cannabis para fins recreativos, mas sob condições estritas. A cannabis cultivada nestas associações pode ser distribuída aos seus membros para consumo próprio.

Conflito com o direito europeu e internacional
Porém, conforme destacado pelo governo alemão, podem existir problemas com o direito internacional e europeu, e de fato, eles existem. A legalização da cannabis na Alemanha não ocorre em um vácuo; ela está inserida em um contexto mais amplo de compromissos internacionais e regionais que o país assumiu ao longo dos anos.

O Acordo de Schengen, que promove a livre circulação de pessoas entre os países signatários, também possui disposições relacionadas ao controle de substâncias narcóticas. O artigo 71 [1] do acordo aborda a questão do tráfico ilícito de drogas narcóticas e substâncias psicotrópicas, incluindo cannabis. Este artigo estabelece que os países que assinaram o Acordo de Schengen, conhecidos como partes contratantes, devem adotar medidas para prevenir e punir o tráfico ilícito dessas substâncias.

Isso se aplica tanto à venda direta quanto indireta desses produtos, bem como à posse de tais substâncias com a intenção de venda ou exportação. Além disso, o artigo 71 [2] ainda enfatiza a prevenção e punição da exportação ilegal de drogas e substâncias psicotrópicas. Isso inclui não apenas a venda, mas também o fornecimento e a entrega dessas substâncias, incluindo cannabis [6].

A questão da cannabis e sua legalização, portanto, não é apenas uma questão interna para a Alemanha, mas também uma questão de política externa e de relações com seus vizinhos europeus. A situação se torna ainda mais complexa quando observamos outros países do Tratado de Schengen, pois qualquer mudança na legislação alemã pode ter implicações diretas para esses países. A livre circulação de pessoas e mercadorias entre as nações signatárias pode levar a desafios transfronteiriços em relação à cannabis.

Certamente, a existência de países conservadores, como a Polônia e a Áustria, que fazem fronteira com a Alemanha, torna a questão da legalização da cannabis ainda mais complexa e potencialmente problemática. Esses países podem ter abordagens muito diferentes em relação à cannabis e às políticas de drogas em comparação com a Alemanha.

Enquanto a Alemanha pode estar considerando a possibilidade de avançar com a legalização ou liberalização da cannabis para fins medicinais ou recreativos, países mais conservadores, como a podem ter posturas mais restritivas e resistentes à ideia de qualquer forma de legalização.

Essa discrepância nas políticas de drogas entre países vizinhos pode criar tensões e desafios significativos no que diz respeito ao direito transfronteiriço. A livre circulação de pessoas e mercadorias no espaço Schengen significa que as políticas de drogas em um país podem afetar diretamente os outros.

Outro fator relevante a ser considerado é a posição da União Europeia (UE) sobre a legalização da cannabis. A UE é composta por diversos países membros, cada um com suas próprias leis e políticas em relação às drogas. A questão da legalização da cannabis tem sido um tema de debate complexo dentro da União, onde há uma variedade de perspectivas e abordagens entre os Estados membros.

Em 2004, o Conselho da União Europeia emitiu uma decisão-quadro sobre o combate ao tráfico de drogas. Essa decisão visa estabelecer medidas comuns para combater o tráfico ilícito de drogas e impor sanções penais para atividades relacionadas a drogas em toda a União Europeia. Embora a decisão-quadro não proíba explicitamente a legalização da cannabis, ela reforça a obrigação dos Estados membros de combater o tráfico de "drogas narcóticas e substâncias psicotrópicas", incluindo a cannabis [7].

Consequentemente, isso pode ser visto como uma limitação para os países da UE que buscam a legalização da cannabis, pois qualquer legislação nesse sentido deve respeitar os compromissos assumidos no combate ao tráfico de drogas. Para países como a Alemanha, que está considerando a legalização ou liberalização da cannabis, a decisão pode representar um obstáculo, uma vez que eles devem encontrar uma abordagem que concilie sua política interna com as obrigações da UE. Diante desse cenário complexo, encontrar um equilíbrio entre as políticas internas e as obrigações internacionais e europeias é fundamental para abordar essa questão de maneira abrangente e eficaz.

Os casos de Holanda, Luxemburgo e Malta
Holanda
Antes de entrar para a União Europeia em 1995, a Holanda adotou uma abordagem conhecida como "política de tolerância" em relação à cannabis. Essa política foi implementada na década de 1970 e permitiu a venda e o consumo de pequenas quantidades de cannabis em estabelecimentos conhecidos como "coffee shops". Sob essa política, a posse de até cinco gramas de cannabis foi tolerada para fins recreativos, e os coffee shops foram autorizados a vender essa quantidade a adultos [8].

Essa política de tolerância foi adotada como uma abordagem pragmática para lidar com o uso de drogas leves e permitir que as autoridades se concentrassem em questões mais graves relacionadas às drogas. É importante notar que, embora a venda e o consumo pessoal de pequenas quantidades de cannabis fossem permitidos, a produção em grande escala e a distribuição ainda eram ilegais na Holanda [9].

No entanto, quando a Holanda entrou para a União Europeia em 1995, teve que harmonizar suas políticas com as diretrizes e regulamentações da UE. Ainda assim, a Holanda conseguiu manter sua política de tolerância em relação à cannabis. Isso significa que, mesmo sendo membro da UE, a Holanda continuou a permitir a venda e o consumo de pequenas quantidades de cannabis em seus coffee shops [10].

Luxemburgo
Com relação ao Luxemburgo, em 2021 o país encerrou sua política de proibição contra a cannabis. A legalização permite a posse, consumo e cultivo de até três gramas de cannabis. No entanto, a posse, consumo, transporte e compra de cannabis em espaços públicos continuam proibidos. As penalidades foram reduzidas, com multas variando de €25 a €500 para quantidades de até três gramas. Se a posse exceder três gramas, as pessoas podem enfrentar processos criminais [11].

Em relação ao cultivo, os domicílios têm permissão para cultivar até quatro plantas, desde que o cultivo não seja visível de fora. Portanto, Luxemburgo adotou um modelo de legalização mais restritivo que permitirá aos usuários de cannabis consumir cannabis com regras específicas sem enfrentar multas e acusações criminais. O país já havia dado passos significativos em relação à cannabis antes desta lei. Antes das eleições parlamentares de 2018, legalizou a cannabis medicinal e, em 2001, reclassificou a cannabis como uma substância controlada da Categoria B, efetivamente descriminalizando a posse pessoal [12].

Malta
Em 2021, Malta, o menor país da União Europeia, tornou-se o primeiro na Europa a legalizar a cannabis para uso pessoal. O parlamento maltês aprovou o projeto de lei "Uso Responsável da Cannabis" com 36 votos a favor e 27 contra. O projeto, apoiado pelo partido governante de Malta, o Partido Trabalhista, permite a posse, compra e cultivo de maconha para uso pessoal. Os residentes podem cultivar até quatro plantas e comprar produtos de cannabis para uso próprio. O governo maltês trabalhou no projeto de lei por meses antes de sua aprovação [13].

Uma característica importante é que Malta é um país menor, o que lhe confere maior controle sobre suas fronteiras em relação ao tráfico de drogas, podendo implementar medidas mais eficazes para combater o contrabando de drogas para países terceiros. Embora países como a Holanda tenham adotado políticas mais liberais em relação à maconha, Malta foi o primeiro país a estabelecer uma legislação regulamentando o mercado da cannabis [14].

Conclusão
A legalização da cannabis na Alemanha representa uma mudança significativa na abordagem do país em relação às políticas de drogas. A iniciativa de legalizar o uso da cannabis para fins recreativos e medicinais reflete uma crescente conscientização sobre as consequências legais e sociais da política de proibição atual. No entanto, essa mudança enfrenta desafios com o direito internacional e europeu.

O conflito com o direito europeu, principalmente o Acordo de Schengen, pode criar tensões com países vizinhos que têm políticas mais conservadoras em relação à cannabis. Isso pois alguns países podem se opor à legalização da cannabis, o que pode criar problemas relacionados a livre circulação de pessoas e na harmonização das políticas.

Além disso, a posição da União Europeia sobre a legalização da cannabis também pode representar um obstáculo para a Alemanha. A decisão-quadro de 2004 do Conselho da União Europeia reforça a obrigação dos Estados membros de combater o tráfico de drogas, incluindo a cannabis. Assim, a Alemanha deve encontrar uma abordagem que concilie suas políticas internas com as obrigações da UE, respeitando seus compromissos no combate ao tráfico de drogas.

Enquanto a Alemanha lida com esses desafios, os casos da Holanda, Luxemburgo e Malta fornecem perspectivas interessantes sobre como os países da UE têm abordado a questão da cannabis. A Holanda, com sua política de tolerância, conseguiu manter sua abordagem em relação à cannabis mesmo após entrar para a UE. Luxemburgo também adotou uma política de legalização mais restritiva, permitindo o uso e cultivo limitados de cannabis. Malta, por sua vez, se tornou o primeiro país da Europa a legalizar a cannabis para uso pessoal, destacando a diversidade de abordagens dentro da UE. Porém, cabe destacar que Malta é um país menor, o que pode facilitar o controle do tráfico de drogas para países terceiros.

De uma forma geral, a legalização da cannabis na Alemanha e a experiência de outros países europeus mostram que as políticas de drogas dentro da UE são variadas. A Alemanha enfrenta desafios em relação ao direito europeu e internacional, mas também tem a oportunidade de aprender com as experiências de outros países e encontrar uma abordagem que seja adequada para suas necessidades internas e compromissos internacionais. O equilíbrio entre a política interna e as obrigações externas é fundamental para abordar a questão da cannabis de forma abrangente e eficaz na Alemanha e em toda a União Europeia.

 


[12] Ibid.

[14] Ibid.

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