Interesse Público

Tema 1.199 não restringe retroatividade só na modalidade culposa na improbidade

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10 de agosto de 2023, 8h00

A Lei 14.1230/21 imprimiu diversas alterações na Lei 8.429/92 (Lei de Improbidade Administrativa), apresentando-se, no cenário jurídico nacional, como uma tentativa de "retorno do pêndulo", e remédio ao "apagão dos tokens". Quem nunca licitou, contratou ou ordenou despesas na Administração Pública talvez não se sinta tocado pela necessidade da mudança.

Bem verdade que a primeira decisão do Supremo Tribunal Federal sobre a Lei 14.230/21 (Tema 1199) temperou alguns efeitos das alterações da nova lei, particularmente quanto: a) ao reconhecimento da constitucionalidade da exclusão da culpa como elementar do tipo de improbidade administrativa prevista no artigo 10; b) à aplicação retroativa mitigada da "abolitio maleficium" (alcançando apenas os processos em curso e excluindo as decisões com trânsito em julgado); c) irretroatividade do prazo de prescrição geral (que poderia ou não ser mais benéfica) ou intercorrente, cujo dies a quo compreendeu ser a data de vigência da nova lei.

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As demais temáticas de que cuidou o legislador permanecem ainda sem discussão no âmbito do STF, porém, considerando-se o sistema jurídico de base romanista a que se filia o Brasil, que tem na lei a fonte primordial do Direito (especialmente do Direito Administrativo), a expectativa era de que as novas regras da Lei 14.230/21 passassem a ser o amparo de decisões judiciais locais e regionais, o que nem sempre se tem verificado na prática.  

A intenção do presente texto é tentar desmistificar a decisão do tema 1199 pelo STF, em ordem a destacar em que se constituiu a sua ratio decidendi, verificando a possibilidade de sua aplicação a casos com semelhante perfil, sem a necessidade de novo pronunciamento do STF.   

Convém iniciar o texto pela delimitação do tema 1199, descrita segundo o voto do ministro Alexandre de Moraes, ao tratar da matéria no Plenário do STF (voto condutor do Acórdão do ARE 843989/PR, p. 5):

"Na presente repercussão geral, coloca-se para exame definir se as novidades inseridas na LIA devem retroagir para beneficiar aqueles que tenham cometido atos de improbidade administrativa na modalidade culposa, bem como quanto aos prazos de prescrição geral e intercorrente."

No julgamento do mérito, prevaleceu o entendimento de que a regra da nova lei seria irretroativa para a prescrição e parcialmente retroativa para a modalidade culposa de atos de improbidade administrativa. No último caso, a retroatividade alcançaria processos em curso, porém não processos concluídos, transitados em julgado.  

A questão do ato de improbidade culposo tem relação direta com a atipicidade superveniente das condutas descritas no artigo 10 da LIA, porquanto, sem a descrição do delito pela nova lei, inviável se torna a subsunção com base na lei revogada (nullum crimen nulla poena sine lege).  

Em outros termos, deixando à parte a prescrição (tratada pelo STF como assunto de natureza processual), ao determinar que a norma revogadora do tipo infracional culposo alcançaria atos praticados anteriormente à sua vigência, respeitado, apenas, o limite da coisa julgada, o Supremo Tribunal Federal acabou por reconhecer, por maioria de votos (sete a quatro), a aplicação da teoria da retroatividade média ou mitigada das normas materiais mais benéficas ao direito administrativo sancionador [1]

Dessa forma, são passíveis de questionamentos posições jurídicas que pretendam dar interpretação restritiva às hipóteses de aplicação retroativa da Lei nº 14.230/21, adstringindo-se a temática em discussão aos atos qualificados como ímprobos culposos, ainda não transitados em julgado. Do ponto de vista prático, a orientação deixa de aplicar outras disposições mais benéficas da Lei 14.230/21 (também no aspecto relacionado à atipicidade das condutas), sob o argumento de que não foram tratadas pela Suprema Corte na apreciação da Repercussão Geral do ARE 843989/PR, relator ministro Alexandre de Moraes.

É dizer que o pronunciamento da Suprema Corte passa a ser uma espécie de ato condição para a aplicação das novas regras da Lei 14.230/21, e são várias, que tornam atípicas condutas antes constantes do raio de incidência da Lei de Improbidade Administrativa. Ora, se uma lei deixa de tipificar determinada conduta como delituosa, não é mais possível aplicar essa lei revogada a processos em curso, porque os fatos hostilizados simplesmente deixaram de ser típicos (não há delito sem lei anterior que o define). Uma tal tipificação exigiria disposição expressa no sentido da ultratividade da lei antiga, situação que não se encontra nas disposições da Lei 14.230/21.

Ao propósito, colhem-se as seguintes passagens do voto vencedor do ministro Alexandre de Moraes no voto do tema 1199:

"A norma mais benéfica prevista na Lei 14.133/21  revogação da modalidade culposa do ato de improbidade administrativa , portanto, não é retroativa e, consequentemente, não tem incidência sobre a eficácia da coisa julgada, nem tampouco durante o processo de execução das penas e seus incidentes, uma vez que, nos termos do artigo 5º, XXXVI. […] 'Ressalte-se, entretanto, que apesar da irretroatividade, em relação a redação anterior da LIA, mais severa por estabelecer a modalidade culposa do ato de improbidade administrativa em seu artigo 10, vige o princípio da não-ultratividade, uma vez que não retroagirá para aplicar-se a fatos pretéritos com a respectiva condenação transitada em julgado, mas tampouco será permitida sua aplicação a fatos praticados durante a sua vigência, mas cuja responsabilização judicial ainda não foi finalizada'. […] 'Em virtude do princípio tempus regit actum, não será possível uma futura sentença condenatória com base na norma legal revogada expressamente'."

É dizer, portanto, que, na conjugação das noções de retroatividade e não ultratividade, tendo como parâmetro apenas a coisa julgada (para trás) e a impossibilidade de tipificação da conduta (para frente), o voto condutor da decisão da Suprema Corte reconhece não haver sobrevida automática a quaisquer disposições materiais mais punitivas da lei revogada. A doutrina explica as razões constitucionais:

"[A] Constituição consagra é o direito fundamental de que a pessoa só pode ser punida se houver lei vigente ao tempo do ilícito e da punição. Ou seja, se a conduta foi praticada ao tempo da lei e se esta vige no exato momento de aplicação definitiva da sanção: naquele instante em que o ato judicial se torna real, concreto, exigível sem direito a recursos contra a decisão que o proferiu. Por isso que não parece constitucional punir hoje, com fundamento em lei que não mais existe (ainda que o fato tenha sido praticado ao seu tempo e até se o processo judicial esteja em desenvolvimento). Mesmo porque a capacidade punitiva do Estado precisa ser entendida restritivamente e só existe em decorrência da lei, inclusive quando da definição de se houve (ou não) um ilícito punível. O direito punitivo  tanto o penal, quanto o administrativo e político  não é imune a essa estruturação constitucional. Se não fosse assim, bastaria ao legislador transformar em ilícitos administrativos todos os crimes, e estariam aniquiladas as garantias constitucionais penais. O que a Constituição impede é a persistência dos efeitos punitivo-penais da lei revogada." [2]

Como se não bastasse, a contagem matemática dos votos dos ministros do Supremo Tribunal Federal no julgamento e aprovação do tema 1199, na parte atinente à retroatividade da abolição do delito culposo, corroboram com as premissas aqui sustentadas, a ver:

Votos pela retroatividade de normas de Direito Material mais benéficas de Direito Administrativo Sancionador
1) Ministro Alexandre de Moraes: retroatividade mitigada (respeitada a coisa julgada)

2) Ministro André Mendonça: retroatividade total (admitindo ação rescisória)

3) Ministro Nunes Marques: retroatividade total (admitindo rescisão ampla)

4) Ministro Dias Toffoli: retroatividade total (admitindo rescisão ampla)

5) Ministro Ricardo Lewandowisky: retroatividade total (segue André Mendonça no voto), mas adere à tese maioria (ministro Alexandre de Moraes)

6) Ministro Gilmar Mendes: retroatividade total (admitindo rescisão ampla)

7) Ministro Luiz Fux: retroatividade mitigada (segue o Min. Alexandre Moraes)

Votos contrários à retroatividade de normas de Direito Material mais benéficas de Direito Administrativo Sancionador
1) Ministro Edson Fachin (irretroatividade total)

2) Ministro Roberto Barroso (irretroatividade total)

3) Ministra Carmem Lúcia (irretroatividade total)

4) Ministra Rosa Weber (irretroatividade total)

Como se vê, a tese da irretroatividade plena contou com quatro votos (e foi derrotada), ao passo que a retroatividade total, sem o limite da coisa julgada, também contou com quatro votos (tendo sido parcialmente derrotada). Por outro lado, a tese do relator, que se tornou a vencedora, contou com três votos, e concluiu pela retroatividade ou irretroatividade parcial, as you wish, respeitada a coisa julgada. A retroatividade média da norma de conteúdo material contou assim com sete votos dos excelentíssimos ministros do STF.

Logo, a decisão da Suprema Corte terminou por assentar a retroatividade mitigada em matéria de tipificação de atos de improbidade administrativa, considerando aplicável a nova lei aos processos em cursos (não transitados em julgado) [3]. Se assim o fez, relativamente ao tipo culposo do artigo 10 da LIA, implicitamente também o fez em relação a quaisquer condutas que deixaram de ser tipificadas como atos de improbidade administrativa na nova lei.

Eis a ratio decidendi do tema 1199, porque: ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio, diz o brocardo.

 


[1] Conforme esclarece o ministro Roberto Barroso, com base na doutrina de José Carlos de Matos Peixoto (Curso de Direito Romano, Editorial Peixoto S.A., 1943, tomo I, p. 212-213), "a retroatividade máxima ocorre 'quando a lei nova abrange a coisa julgada (sentença irrecorrível) ou os fatos jurídicos consumados'; a retroatividade média se dá ‘quando a lei nova atinge os direitos exigíveis, mas não realizados antes de sua vigência'; a retroatividade mínima sucede ‘quando a lei nova atinge apenas os efeitos dos fatos anteriores, verificados após a sua entrada em vigor'". (ADI 1220, relator(a): ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 19/12/2019, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-055  DIVULG 12-03-2020  PUBLIC 13-03-2020).

[2] MOREIRA, Egon Bockman. BINENBOJM, Gustavo. Aqui. Acesso em 10.08.2023. 

[3] Nesse sentido, o Enunciado 38 do IBDA (Instituto Brasileiro de Direito Administrativo): "No Tema 1199, o STF reconheceu a incidência das normas da Lei nº 14.230/21 que sejam mais favoráveis ao réu, quando admitiu a constitucionalidade da exclusão da modalidade culposa e a fez aplicável aos processos em curso. Assim, qualquer alteração da lei nova, desde que mais favorável ao réu, deve ser aplicada imediatamente às ações em curso (lex mitior). Porém, quando as alterações forem mais gravosas (lex gravior), apenas incidirão para fatos posteriores à entrada em vigor da Lei nº 14.230/21".

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