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De qual reforma constitucional dos pisos em saúde e educação precisamos?

Autor

  • Élida Graziane Pinto

    é livre-docente em Direito Financeiro (USP) doutora em Direito Administrativo (UFMG) com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ) procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

8 de agosto de 2023, 8h00

Tão logo seja aprovada e promulgada a lei complementar do "regime fiscal sustentável", o teto de despesas primárias estará formalmente revogado e os pisos federais em saúde e educação, a rigor, deverão voltar a se comportar como porcentuais incidentes sobre a receita da União. Tudo isso se dará conforme os artigos 6º e 9º da Emenda 126/2022.

A iminente revogação do artigo 110 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) implicará o retorno dos deveres de aplicação de 15% da receita corrente líquida e de 18% da receita de impostos, respectivamente, em ações e serviços públicos de saúde (Asps) e em Manutenção e Desenvolvimento do Ensino (MDE), na forma dos artigos 198 e 212 da CF/1988.

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Todavia, a agenda de reforma constitucional dos pisos em saúde e educação já tem sido amplamente anunciada pelo Executivo federal e replicada pela imprensa. Como se depreende dos excertos extraídos da reportagem de Idiana Tomazelli para a Folha de S.Paulo, o intuito seria limitar o crescimento dos pisos em moldes análogos às bandas de oscilação das despesas primárias propostas no PLP 93/2023:

"Os mínimos constitucionais de saúde e educação podem ser corrigidos pela mesma regra do limite de despesas prevista no novo arcabouço fiscal, que permite um crescimento entre 0,6% e 2,5% acima da inflação, sugere o Tesouro Nacional em seu Relatório de Projeções Fiscais divulgado na quarta-feira (12).
A opção citada no documento não reflete necessariamente uma decisão de governo, mas é sintoma da preocupação dos técnicos com um desafio já contratado na vigência da nova regra fiscal. Os pisos dessas áreas voltarão a crescer de forma mais acelerada devido ao fim do teto de gastos e à consequente volta da regra constitucional que os vincula à arrecadação, o que deve achatar as demais despesas de forma crescente ao longo dos anos.
'O uso de um indexador consistente [para saúde e educação] com o mecanismo de correção da despesa global aumentaria a previsibilidade destas despesas e reduziria a rigidez orçamentária frente às regras atuais em momentos de expansão da economia', diz o relatório do Tesouro.
[…] Essa simples mudança [causada pelo retorno da vigência dos pisos conforme os artigos 198 e 212 da CF] pode ocupar um espaço de R$ 30 bilhões a R$ 35 bilhões dentro do novo limite de despesas, segundo cálculos de economistas. A diferença se dá porque, sob o teto de gastos, os mínimos foram desvinculados das receitas e passaram a seguir uma regra de correção apenas pela inflação — o que achatou os valores mínimos dedicados a essas áreas.
[…] Simulações do Tesouro ajudam a ilustrar parte do problema. Ao reproduzir as regras do arcabouço sobre a dinâmica fiscal entre 2009 e 2022, o órgão constata que o limite de despesas teria tido um crescimento médio de 1,3% ao ano, já descontada a inflação. Já os indicadores de receita que balizam os mínimos em saúde e educação teriam tido uma expansão média de 3,1% ao ano.
É esse descompasso que preocupa o Ministério da Fazenda. 'O descasamento entre o indexador do limite de despesa e as receitas que vinculam despesas específicas é prejudicial ao planejamento fiscal e pode afetar a composição do gasto público de maneira indesejada, ao reduzir o espaço fiscal disponível para outras políticas', diz o Tesouro."

É notória, pois, a pretensão de desacelerar e, com isso, deliberadamente mitigar a progressividade de custeio garantida constitucionalmente para os direitos fundamentais à saúde e à educação. O que tem motivado a hipótese de uma tal proposta de emenda constitucional para rever os pisos em Asps e MDE seria, primordialmente, o impacto anual estimado de R$ 30 a R$ 35 bilhões nas contas públicas da União e o correlato constrangimento do espaço fiscal das despesas primárias discricionárias [1], com a retomada da vigência dos regimes dados pelos artigos 198 e 212 da CF.

Trata-se de estratégia que visa, direta ou indiretamente, à manutenção dos efeitos contracionistas do teto de despesa primária (fixado pela Emenda 95/2016) para os gastos mínimos em Asps e MDE, ainda que haja a possibilidade de discreta expansão real (nos moldes do PLP 93/2023 entre 0,6 e 2,5% acima da inflação). De todo modo, o objetivo nuclear seria tornar proporcionalmente menores os pisos constitucionais em face do orçamento geral dos entes governamentais.

A despeito de o PLP 93/2023 estar circunscrito apenas à União, tal rebaixamento fiscal das maiores garantias de custeio dos principais direitos sociais inscritos no ordenamento brasileiro se estenderá também aos estados, Distrito Federal e municípios, caso haja a reforma dos arts. 198 e 212 da CF. Tamanha disparidade de regimes fiscais (ora apenas federal, ora nacional), por si só, enseja cautela, na medida em que pode ampliar os conflitos federativos em ambas as políticas públicas.

Vale lembrar que a consecução das Asps no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS) e a oferta estatal da educação básica obrigatória são deveres materialmente inalienáveis, sendo responsabilidade solidária dos três níveis da federação a consecução tempestiva e plena dos respectivos instrumentos de planejamento setorial.

Aliado à reforma tributária que altera estruturalmente grande parte da base de cálculo dos pisos, um rearranjo dessa envergadura tende a se configurar como guinada de 180º no regime jurídico dos deveres de gasto mínimo em saúde e educação. Trata-se, como já dito, de proposta que visa à redução proporcional dos pisos de forma federativamente generalizada, sem que as obrigações materiais que resguardam os respectivos direitos fundamentais tenham sido equivalentemente rebaixadas.

A desaceleração da disponibilidade financeiro-orçamentária para o custeio vinculado dos direitos à saúde e à educação provavelmente será acompanhada da postergação e/ou do descumprimento total ou parcial das metas dos planejamentos sanitário e educacional.

Rebaixar os pisos em saúde e educação é escolha fiscalmente controversa, na medida em que impõe retrocesso vedado constitucionalmente. Exatamente há sete anos Fábio Konder Comparato, Heleno Taveira Torres, Ingo Wolfgang Sarlet e esta articulista escrevemos um artigo em que questionávamos a PEC 241/2016, que deu origem à Emenda 95/2016, nos seguintes termos:

"Caso seja aprovada tal proposta, a sociedade brasileira trocará, por vias oblíquas e inconstitucionais, as vinculações positivas de gasto mínimo em saúde e educação por uma vinculação negativa (gasto máximo), certamente restritiva daqueles pisos, sem qualquer avanço sobre a qualidade do gasto no ciclo orçamentário.
Em um contexto de crise política e econômica, promete-se ser essa uma medida imperativa de ajuste fiscal e até de eficiência do gasto público, mas cujo risco de retrocesso vedado constitucionalmente na consecução dos direitos fundamentais cria severa dificuldade de compreensão sobre o quanto se possa ganhar a longo prazo.
Por óbvio, reconhecemos que é preciso avançar e corrigir distorções, desvios e abusos. Há mesmo elevado grau de correlação entre a corrupção, a má-gestão e a baixa qualidade dos gastos mínimos em saúde e educação. Mas, para enfrentá-la, não nos parece ser resposta adequada a ampliação irrestrita da discricionariedade orçamentária, com prejuízo dos esforços em favor da educação básica obrigatória dos quatro aos 17 anos de idade e no Sistema Único de Saúde, de cobertura pública integral e universal.
Tal inversão de piso para teto desprega a despesa do comportamento da receita e faz perecer as noções de proporcionalidade e progressividade no financiamento desses direitos fundamentais. Assim, o risco é de que sejam frustradas a prevenção, a promoção e a recuperação da saúde de mais de 200 milhões de brasileiros. Ou de que seja mitigado o dever de incluir os cerca de 2,7 milhões de crianças e adolescentes, de quatro a 17 anos, que ainda hoje se encontram fora da educação básica obrigatória.
Oito décadas, desde a sua instituição pela Constituição de 1934, ensinaram-nos a não negociar o mínimo de custeio para a educação, a dele não abrir mão. Quase três décadas nos ensinaram a primar pela defesa da saúde em sua dimensão sistêmica, pública, universal e integral.
Estamos em pleno processo pedagógico e civilizatório de educar e salvaguardar a saúde de nossos cidadãos, o que não pode ser obstado ou preterido por razões controvertidas de crise fiscal. Nada há de mais prioritário nos orçamentos públicos que tal desiderato constitucional, sob pena de frustração da própria razão de ser do Estado e do pacto social que ele encerra."

Ora, é iníquo alterar o texto permanente da Constituição para rebaixar o piso da proteção social (quiçá passemos a falar em subsolo da saúde e porão da educação), em caráter definitivo e com efeitos nacionais, enquanto sequer é proposta uma correlata reflexão acerca da pressão exercida pelas despesas financeiras sobre a dívida pública.

É, por sinal, paradigmático o contraste entre o impacto da retomada dos pisos como proporção porcentual da arrecadação federal (cerca de R$30 bilhões/ano), por força da revogação iminente do teto, de um lado; e o impacto estimado em R$21 bilhões anuais decorrente da recente redução da taxa Selic em 0,5%, conforme decisão do Comitê de Política Monetária da semana passada, de outro lado. Como visto, há alternativas mais equitativas para tornar sustentável a trajetória da dívida pública brasileira, sem asfixiar o custeio das políticas públicas de saúde e da educação ou adiar indefinidamente o cumprimento das metas dos respectivos planejamentos setoriais.

Para que se tenha clareza da dimensão do conflito distributivo, reportagem de Alexandre Martello, no canal G1, destaca que, se a taxa básica de juros no Brasil fosse reduzida a cerca de 10% até o final de 2023, a estimativa de alívio sobre a dívida pública seria equivalente a R$ 100 bilhões já em 2024. Trata-se de montante tão significativo que o Secretário do Tesouro Nacional, Rogério Ceron, chegou a avaliar que, se a taxa Selic chegasse a 10%, "haveria quase um Bolsa Família por ano economizado em termos de juros que estão sendo pagos na dívida pública".

Eis a razão pela qual é falso o conflito distributivo entre saúde e educação (despesas obrigatórias com controle de fluxo de pagamento), de um lado, e as despesas discricionárias que amparam as demais políticas públicas, de outro. Ou o ajuste fiscal incide amplamente sobre as finanças públicas brasileiras e, portanto, passa a tratar também da gestão da receita e das despesas financeiras; ou seu foco restrito às despesas primárias se revelará, por definição, iníquo.

Nem se diga que aqui estamos a defender a imutabilidade dos pisos, porque o seu aprimoramento é medida desejável de justiça fiscal e eficiência alocativa. Reconhecemos a necessidade de superar a estrita dimensão quantitativo-formal de pisos e tetos, porque o desafio mais complexo que a sociedade brasileira tem diante de si é o da ordenação legítima de prioridades.

É preciso aprender a alocar os recursos públicos à luz da tríade inscrita no artigo 70 da Constituição: legitimidade, economicidade e legalidade, sem reducionismos maniqueístas. A grande reforma ausente na agenda governamental do país é a da qualidade e efetividade dos serviços públicos.

Para quem almeja, de fato, melhores saúde e educação públicas, o ponto de partida para tanto é resgatar e enfrentar seus gargalos operacionais sistêmicos. No âmbito do SUS, o desafio é efetivamente resguardar a resolutividade da atenção primária à saúde de 80% a 90% dos problemas mais comuns de saúde da população (a esse respeito, vide estudo da Rede de Pesquisa em Atenção Primária à Saúde e da Associação Brasileira de Saúde Coletiva). No financiamento da educação, nenhum impasse é mais crônico do que a falta de regulamentação do custo aluno qualidade, a que se refere o artigo 211, §7º da CF/1988, tal como Salomão Ximenes e esta articulista escrevemos aqui.

Eis uma agenda de debates que precisamos travar, com consistência teórica e compromisso institucional, sob pena de a constitucionalização permanente e federativamente generalizada do subsolo da saúde e do porão da educação abrirem espaço fiscal para ainda maior iniquidade na consecução dos principais direitos sociais inscritos em nosso ordenamento.

 


[1] Ainda segundo a reportagem https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2023/07/tesouro-sugere-limitar-crescimento-de-pisos-de-saude-e-educacao-sob-novo-arcabouco-fiscal.shtml em comento, "A manutenção das regras atuais pode ter um efeito nefasto sobre as despesas discricionárias, que incluem custeio da máquina e investimentos excedentes ao piso de 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB) criado pela proposta.

Em suas simulações, o Tesouro dividiu os gastos discricionários em duas categorias: rígidos (que incluem despesas imunes a cortes, como os mínimos constitucionais, as emendas e o piso de investimentos) e os demais (que estão sujeitos a bloqueios e contingenciamentos para cumprir as regras fiscais).

Em 2024, as despesas discricionárias rígidas chegam a R$ 159 bilhões, enquanto as demais alcançam R$ 63 bilhões. Com o passar dos anos, os gastos rígidos crescem continuamente, enquanto os demais chegam a um pico de R$ 101 bilhões em 2026, mas passam a cair até serem reduzidos a R$ 39 bilhões em 2032. Os números são exibidos a preços de 2023.

Um ponto importante é que este cenário não contempla o esforço adicional de arrecadação que o governo precisa fazer para cumprir as metas fiscais traçadas até 2026.

O paradoxo é que, se Haddad tiver sucesso em seu plano de elevar as receitas, a situação pelo lado das despesas (caso a dinâmica delas não seja modificada) ficará ainda mais apertada — justamente porque os mínimos constitucionais, as emendas e o FCDF crescem acompanhando a bonança pelo lado da arrecadação.

Nesse cenário, o espaço para as discricionárias como um todo ficaria menor em 2024, e quase todo ele seria ocupado pelos gastos rígidos, que somariam R$ 168 bilhões. Restaria apenas R$ 1 bilhão para as demais despesas. Em todo o período analisado, o pico para esses outros gastos livres seria de R$ 55 bilhões em 2028.

'O elevado nível de vinculações tende a extinguir a discricionariedade alocativa, pois reduz o volume de recursos orçamentários livres que seriam essenciais para implementar projetos governamentais prioritários, que atendam as necessidades da população em cada momento do tempo', alerta o Tesouro ao recomendar as mudanças".

Autores

  • é livre-docente em Direito Financeiro (USP), doutora em Direito Administrativo (UFMG), com estudos pós-doutorais em administração (FGV-RJ), procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora (FGV-SP).

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