Segunda Leitura

Executivo e Judiciário entram em rota de colisão em Israel

Autor

  • Vladimir Passos de Freitas

    é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná pós-doutor pela FSP/USP mestre e doutor em Direito pela UFPR desembargador federal aposentado ex-presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª Região. Foi secretário Nacional de Justiça promotor de Justiça em SP e PR e presidente da International Association for Courts Administration (Iaca) da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

6 de agosto de 2023, 8h00

Israel, país localizado no Oriente Médio, considerado Terra Santa por judeus, cristãos e muçulmanos, possui nos seus 22.145 km² de extensão uma população em torno de nove milhões de habitantes e um progresso de elevado nível em diferentes áreas. Mas os seus problemas estão na mesma proporção de sua importância, sendo a disputa de terras com a Palestina um deles.

Spacca
O primeiro-ministro Benjamin Netanyahu, eleito pela união de diversas correntes de direita, pressionado por seus apoiadores e inconformado com as decisões da Corte Suprema, enviou ao Legislativo a chamada reforma judicial, ou seja, "um pacote de projetos de lei que precisam passar por três votações no Knesset, o Parlamento israelense" [1].

Para Netanyahu, a corte interfere em atos que lhe são estranhos e é preciso reequilibrar os três Poderes. Porém, para os seus opositores, isso enfraquecerá a democracia, pois a corte é o único órgão que controla os excessos dos demais Poderes.

Mas o que pretende a reforma judicial? Entre outras coisas: a) dar poderes ao Parlamento para que possa rever determinadas decisões da Suprema Corte; b) dar mais poderes aos políticos para a nomeação de juízes, atualmente da competência exclusiva da Suprema Corte; c) permitir que os ministros de Estado possam indicar seus assessores jurídicos; d) impedir que a Suprema Corte declare irracionais as decisões do Poder Executivo, por exemplo, a nomeação de ministros de Estado [2].

Ocorre que houve uma reação enorme contra a iniciativa, e milhares de pessoas saíram às ruas para protestar, fato que motivou o fatiamento do pacote de reformas. E assim, desde logo foi excluída a possibilidade de o Parlamento revisar decisões judiciais. Em contraponto, a proibição de a corte julgar com base na racionalidade foi aprovada no Parlamento por 64 votos a 0 (os parlamentares da oposição retiraram-se em sinal de protesto).

A polêmica surgida pode fazer supor que tal fato só ocorre em Israel. Ledo engano, na verdade ele acontece na maioria das democracias. Não se imagina algo semelhante em ditaduras asiáticas, africanas ou latino-americanas, mesmo que formalmente tenham três Poderes, mas dois submissos ao Executivo. Nelas, nenhum juiz, de qualquer instância, se atreverá a decidir contra o governo.

Vejamos alguns exemplos.

Inevitável, aqui, começar pelos Estados Unidos, país onde teve início a efetivação de tripartição de Poderes proposta por Montesquieu. Refiro-me ao caso Marbury vs. Madison, julgado pela Suprema Corte norte-americana em 1803. John Marshal, presidente da Corte, negou a posse de Marbury, que havia sido nomeado juiz federal no governo anterior, considerando-a nula, porque incompatível com a Constituição. Portanto, nos Estados Unidos a intervenção do Judiciário é permitida, porém ela é exercida com extrema cautela.

Da mesma forma, com esporádicas exceções, ocorre na Europa, onde as democracias são consolidadas. Por exemplo, a França possui uma Justiça Administrativa que tem na cúpula o Conselho de Estado, com funções administrativas (v.g., ajudar na redação de projetos de leis e atos administrativos) e jurisdicional (julgar, em última instância, as causas em que a administração é parte).

Contudo, há países em que os Tribunais Constitucionais ou as Cortes Supremas do Poder Judiciário mostram-se mais aguerridos e disto surge tensão entre os Poderes de Estado. Mas atenção, haver autonomia de Poderes na Constituição não significa que há autonomia no mundo real.

O Chile revela vários casos de atuação da Suprema Corte intervindo em questões de saúde, construção de ciclovias e planos de descontaminação em caso de emissões de poluentes. O caso de Quintero y Puchuncaví é de todos o mais emblemático. Trata-se de um complexo de indústrias [3] termoelétricas, de combustíveis, de produtos químicos, à beira-mar, em Valparaíso, causadoras de contaminação grave e problemas de saúde nos moradores locais. Em 2019, a Suprema Corte de Justiça determinou uma série de medidas, gerando forte polêmica nacional [4]. Os professores Silva e Vega, logo após a decisão, teceram severas críticas ao ativismo judicial. Em posição oposta, o Instituto Nacional de Derechos Humanos (INDH), autor da ação, publicou recentemente matéria na qual afirma que pesquisa de janeiro deste ano revela que, em matéria de contaminação, o avanço foi débil [5].

Na Argentina, a Suprema Corte de Justiça passa por problema mais grave, certamente influenciado pelas eleições para presidente da República em 22 de outubro. A ex-presidente Cristina Kirchner, condenada a seis anos de prisão pelo Tribunal Federal 2 de Buenos Aires, ingressou perante a Corte Suprema de Justiça da Nação com um pedido de suspeição dos julgadores. A corte, por unanimidade, decidiu manter os juízes no cargo. O fato levou o presidente da República e 11 governadores de províncias a pedir o juicio político, ou seja, o impeachment dos ministros Rosenkrantz, Maqueda e Lorenzetti, por mau desempenho das funções, o que inclui intervenção em atos de outros Poderes de Estado [6]. O processo tramita na Comissão de Juicio Politico da Câmara de Deputados, em fase de ouvida de testemunhas [7].

No México, o conflito também ocorre, ainda que em menor intensidade. Exemplo típico é o caso da Política de Eletricidade, um acordo sobre o sistema elétrico celebrado pelo Ministério da Energia e participantes do setor elétrico para distribuição de energia. Um juiz de uma Vara de Ações Econômicas, provocado por ação que reclama causar o acordo danos ambientais, à saúde e ofensa ao princípio da transparência, suspendeu a sua vigência. Em artigo, Dominguez mostra as dificuldades para fixarem-se as linhas demarcatórias de competência entre o Executivo e o Judiciário [8].

Na Colômbia, a Corte Constitucional vem dando decisões com intervenção direta nas políticas públicas. Bom exemplo disso é a sentença de 2015, que reconheceu o direito dos cidadãos à saúde, determinando ao Estado que fornecesse as garantias mínimas, deixando claro não caber, no caso, a alegação de falta de recursos [9].

O Brasil recomenda análise com exclusividade. Registre-se, apenas, que há tensão entre o Judiciário e o Legislativo. Por exemplo, dia 2 passado o presidente do Senado manifestou no Plenário a sua contrariedade com julgamento em andamento no STF a respeito da descriminalização do uso de drogas, hipótese que considera da competência do Legislativo [10].

Voltando ao caso de Israel, a situação parece indicar que a ação de Netanyahu foi pensada estrategicamente no sentido de propor o máximo para negociar o possível. Seu maior inconformismo é com as decisões baseadas na chamada irracionalidade.

Trata-se do que para nós é chamado de princípio da razoabilidade, versão moderna do antigo "Direito é bom senso". Razoável é o que é justo, coerente, racional, sensato, não excessivo, que corresponda ao bom senso, enfim. Esse princípio é aceito pela doutrina e jurisprudência, muito embora não previsto na Constituição. Apesar do grau de subjetivismo que traz consigo, é muito importante para adequar a norma à realidade.

Mas, se o princípio da razoabilidade é bom, por que o primeiro ministro Netanyahu quer bani-lo do mundo jurídico israelense?

Por uma razão muito simples. Se aplicado por juízes maduros, equilibrados, ele é de grande utilidade, pois supre as omissões do sistema normativo. Mas, se aplicado por juízes sem tais predicados, ele pode tornar-se instrumento de pressão do Judiciário sobre os demais Poderes de Estado. Daí para uma ditadura judicial, mascarada por decisões pretensamente sábias, recheadas de citações ou frases de efeito, é um passo. E contra tal conduta não haverá a quem ocorrer.

Estará a Corte Suprema de Israel assim procedendo? É difícil uma avaliação séria, pois ela exigiria pesquisa de no mínimo 20 julgamentos da corte em determinado período de tempo.

Aguardemos o desfecho do confronto estabelecido em Israel. A radicalização, seja de que lado for, seria desastrosa. Se a Corte insistir na sua atual forma de conduta, sofre o risco de ver desobedecidas suas ordens, e isso seria péssimo para a sua imagem e para a democracia. Se Netanyahu desobedecer à decisão da corte, estará passando ao mundo a imagem de um ditador, com sérias consequências na sua credibilidade e efeitos na área político/econômica.

Espera-se que a razoabilidade esteja presente na cabeça dos juízes da corte e dos membros do Poder Executivo, a fim de que encontrem a melhor solução, pois ela terá reflexos em muitos países.

 


[1] CNN BRASIL. Israel: entenda o polêmico projeto de lei que limita poderes da Suprema Corte, 27 jul. 2023. Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/israel-entenda-o-polemico-projeto-de-lei-que-limita-poderes-da-suprema-corte/. Acesso em 2 ago. 2023.

[2] AXIOS. RAVID, Baraque. Whato to know about Israel´s contentious judicial overhaul plan. Disponível em: https://www.axios.com/2023/07/24/israel-judicial-overhaul-reform-explained. Acesso em 2 ago. 2023.

[3] OLCA. Más allá de Codelco Ventanas: las otras 10 empresas contaminantes de Quintero Puchuncaví. Disponível em: https://olca.cl/articulo/nota.php?id=109520. Acesso em 3 ago. 2023.

[4] SILVA, Luis Alejandro Silva e VEGA, Luis Cordero, ¿La Corte Suprema está determinando las políticas públicas? LATERCERA, 1º jun. 2019, P. 10.

[5] INDH. INDH detectó que a cuatro años de fallo de Suprema zona de Quintero-Puchuncaví aún no cuenta con sistema de medición de contaminantes. Disponível em: https://www.indh.cl/indh-detecto-que-a-cuatro-anos-de-fallo-de-suprema-zona-de-quintero-puchuncavi-aun-no-cuenta-con-sistema-de-medicion-de-contaminantes/. Acesso em 3 ago. 2023.

[6] El Cronista. Martin Dinatale. Pelea con la Corte: Alberto Fernández presentó el pedido de juicio político con apoyo de 11 gobernadores propios. Disponível em: https://www.cronista.com/economia-politica/pelea-con-la-corte-alberto-fernandez-presenta-el-pedido-de-juicio-politico-sin-apoyo-de-algunos-gobernadores-propios/. Acesso em 9 mar. 2023.

[7] GenteBA. La Comisión de Juicio Político de Diputados retomó el proceso contra los miembros de la Corte Suprema de Justicia. Disponível em: https://www.genteba.com/2023/08/01/la-comision-de-juicio-politico-de-diputados-retomo-el-proceso-contra-los-miembros-de-la-corte-suprema-de-justicia/. Acesso em 3 ago. 2023.

[8] DOMINGUEZ, Guillermo Torres. Políticas públicas, revisão judicial e a última palavra sobre a nova política energética no México. Disponível em: Políticas públicas, revisión judicial y la última palabra sobre la nueva política energética en México | Centro de Estudios Constitucionales. Acesso em 3.ago.2023.

[9] COLÔMBIA. Corte Constitucional. Processo T-1315769, 11 nov. 2015. Disponível em: https://www.corteconstitucional.gov.co/relatoria/2008/T-760-08.htm. Acesso em 3 ago. 2023.

[10] TV Senado. YouTube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=aHIleCaIimY. Acesso em 3 ago. 2023.

Autores

  • é professor de Direito no PPGD (mestrado/doutorado) da Pontifícia Universidade Católica do Paraná; pós-doutor pela FSP/USP, mestre e doutor em Direito pela UFPR; desembargador Federal aposentado, ex-Presidente do Tribunal Regional Federal da 4ª. Região. Foi Secretário Nacional de Justiça, Promotor de Justiça em SP e PR, presidente da International Association for Courts Administration (Iaca), da Associação dos Juízes Federais do Brasil (Ajufe) e do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (Ibrajus).

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