Controvérsias Jurídicas

Quebra de sigilo telefônico de aparelho de pessoa não citada em mandado de busca

Autor

  • Fernando Capez

    é procurador de Justiça do MP-SP mestre pela USP doutor pela PUC autor de obras jurídicas ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP presidente do Procon-SP e secretário de Defesa do Consumidor.

3 de agosto de 2023, 8h00

O Superior Tribunal de Justiça, ao julgar o AgRg no HC 792.531-SP [1], fixou o entendimento segundo o qual o ingresso no domicílio de uma pessoa investigada não autoriza a devassa indiscriminada do sigilo de dados telefônicos de terceiros não investigados, pois o simples fato do celular de terceiro ser também utilizado pelo investigado, não dispensa a autorização judicial para quebra de seu sigilo.

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No caso, o Ministério Público Federal insurgiu-se contra a decisão de concessão de habeas corpus, a qual reconheceu a nulidade das provas obtidas por meio da indevida quebra de sigilo de dados do celular da esposa de coinvestigado, por não ser objeto do mandado de busca e apreensão autorizador da diligência. A Corte Superior entendeu ser necessária a determinação de forma específica para a apreensão e posterior quebra do referido sigilo, pois o mero uso do celular pelo investigado não diminui a proteção à intimidade da sua esposa. Assim, negado provimento ao agravo regimental.

A Constituição Federal, em seu Título II, trata dos direitos e garantias fundamentais, com vistas a assegurar a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à segurança e à propriedade.

Embora sejam garantias indispensáveis à concretização da dignidade humana e inerentes ao Estado Democrático de Direito, podem ser relativizadas de acordo com as peculiaridades do caso concreto, como observa Celso de Mello: "Não há no sistema constitucional brasileiro, direitos ou garantias que se revistam de caráter absoluto, mesmo porque razões de relevante interesse público ou exigências derivadas do princípio de convivência das liberdades legitimam, ainda que excepcionalmente, a adoção, por parte dos órgãos estatais, de medidas restritivas das prerrogativas individuais ou coletivas, desde que respeitados os termos estabelecidos pela própria Constituição" [1].

Surgindo conflito entre dois ou mais princípios constitucionais, não ocorre a revogação de um pelo outro, mas a comparação entre eles, a fim de verificar qual deve prevalecer na hipótese concreta.

É o caso da relativização do direito à intimidade (CF, artigo 5º, X) e da inviolabilidade do sigilo das comunicações telefônicas (CF, artigo 5º, XII), para fins de investigação penal ou instrução processual penal, ditada pela necessidade e razoabilidade do caso concreto. Há situações em que o interesse maior da sociedade no combate à criminalidade prevalece sobre as garantias constitucionais protetivas do cidadão.

A Lei 9.296/1996 (Lei das Interceptações telefônicas) determina que a interceptação telefônica depende de ordem do juiz competente para o julgamento da ação penal, exige indícios razoáveis de autoria ou participação em crime apenado com reclusão, e só pode ser autorizada se não houver outro meio (artigos 1º e 2º).

Por se tratar de medida que excepciona direito fundamental, o conceito de interceptação telefônica deve ser entendido de forma restrita, nos exatos limites da lei, e no caso, não se verificava qualquer indício de autoria delitiva por parte da esposa. A investigação era destinada a apurar a prática de crime por parte de seu marido, sendo ele o destinatário da ordem de busca e apreensão.

Nesse sentido, já se manifestou também o STJ [2]: "Sem demonstrar a presença de indícios da participação dessas pessoas estranhas à ação penal em qualquer atividade delitiva, correta, portanto, a decisão do Juízo de primeiro grau, mantida pelo Tribunal de Justiça, uma vez que a medida postulada não se apresenta razoável ou proporcional, mas, bem ao contrário, atenta contra a privacidade de quem, até prova do contrário, não guarda relação com o processo criminal". De igual modo, ao estabelecer que o resultado da diligência não justifica a ausência de autorização judicial específica, pois o fato de terem sido encontrados objetos ilícitos não convalida a abordagem policial [3].

O malabarismo hermenêutico malsucedido tornou inválida promissora investigação e contaminou as provas derivadas daquela origem envenenada. Independentemente de sua utilidade, as provas foram maculadas pelo pecado original da ilicitude (teoria da árvore dos frutos envenenados), anulando-as. Como bem observou o magistrado de origem, "a decisão não pode ser interpretada como carta branca para que as autoridades tenham o poder de quebrar o sigilo de terceiros para, posteriormente, ser feito o juízo de pertinência e utilidade. Este juízo deve ser anterior, fundamentando a decisão que defere a quebra do sigilo".

O atalho probatório nem sempre é o melhor caminho, pois normalmente a estrada termina no abismo da nulidade, garantindo a impunidade que se pretendia combater, de boa-fé, mas com má técnica. Investigar com respeito à Constituição mantém a higidez da persecução penal e assegura a eficácia da defesa social. O abuso, ao contrário, contribui para o fracasso do Estado em uma de suas mais importantes missões, a proteção da pessoa humana, seja vítima, seja investigado.

 


[1] Rel. ministro Reynaldo Soares da Fonseca, por unanimidade, 5ª Turma, julgado em 14/2/2023, DJe 27/2/2023.

[2] RMS n. 32.597/SP, relator ministro Ribeiro Dantas, 5ª Turma, julgado em 5/4/2016, DJe de 15/4/2016

[3] HC n. 728.920/GO, relator ministro OLINDO MENEZES (Desembargador Convocado do TRF 1ª Região), 6ª Turma, julgado em 14/6/2022, DJe de 20/6/2022

Autores

  • é advogado, procurador de Justiça aposentado do MP de SP, mestre pela USP, doutor pela PUC, autor de obras jurídicas, ex-presidente da Assembleia Legislativa de SP, do Procon-SP e ex-secretário de Defesa do Consumidor.

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