Fábrica de Leis

A Constituição em nheengatu: por iniciativas dos e para os povos originários

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1 de agosto de 2023, 8h00

Paramentada com um belo cocar, a ministra Rosa Weber, lideranças judiciárias e indígenas lançaram, no dia 19 de junho deste ano, a primeira tradução da Constituição da República no chamado tupi moderno ou nheengatu. Nossa Lei Fundamental em língua indígena é um grande passo cheio de simbolismo no momento em que o STF é presidido por uma mulher. Seu papel nas comunidades indígenas imunes ao feminicídio entre si, conforme o mapa da violência contra os povos originários evidencia uma cultura de cooperação imunizada contra a violência, mas que não os protege dos ataques dos outros brasileiros.

ConJur
Algumas Constituições reconhecem, oficialmente, as línguas dos povos originários como as do Peru, Bolívia, Nova Zelândia, África do Sul, e em outros países, como Austrália, Angola, Chile, Ruanda, por exemplo, a lei reconhece e facilita o ensino de línguas dos povos originários. Dados de 2014 [1] revelam que a população estimada dos povos originários na América Latina seria de cerca 46 milhões de pessoas, (com cerca de 200 etnias em isolamento voluntário) distribuídas em 826 etnias, estando o Brasil com a maioria delas (305).

Uma longa história de resistência e violências envolve a questão dos povos originários no Brasil e em toda a América pré-colombiana, desde o relato de Bartolomé de Las Casas e até mais recentemente, pela arqueologia. A língua nheengatu escolhida para se dirigir aos povos originários foi uma construção dos portugueses com o fim de sistematizar uma certa língua franca que pudesse alcançar o maior número de indígenas, porém o universo falante as outras línguas, conforme mapeamento linguístico, é muito mais extenso. Nossos povos originários souberam transformar o Nhengatu em instrumento de compreensão, comunicação e identidade para a interlocução. Recentemente, várias iniciativas de tradução de línguas indígenas indicam uma aliança entre tecnologia e cultura linguística [2].

No cenário legislativo pré-Constituição de 1988, os povos indígenas e o indígena enquanto indivíduo deveriam ser tutelados pelo Estado, ou seja, integrados, assimilados. A iniciativa no STF, por sua vez, nos mostra que há que se observar que esses povos têm ancestralidade, culturas e direitos próprios reconhecidos pela nossa Constituição e, por isso, merecem respeito e o direito à diferença no modo de ser de sua cultura, seus costumes, suas línguas.

Leis escritas fazem pouco sentido para os povos tradicionais que trazem a regra dentro de si. O sentido da lei se materializa nos comportamentos que são visíveis e fortemente homogêneos com baixa ou inexistente violação. Um costume reconhecido por uma comunidade tem força normativa, voz e capacidade para vincular indivíduos, permitindo que construam uma identidade e se reconheçam como comunidade.

A discussão é complexa e deve considerar que os povos indígenas têm ascendência pré-colombiana e já habitavam densamente as Américas, especialmente o Brasil, com uma cultura rica e sofisticada, com suas tradições, seus costumes e principalmente se harmonizando com a natureza, de modo que a cultura não indígena (inclusive, a jurídica) interajam de forma harmônica, sustentável e sócio ambientalmente correta.

A ideia de direito positivo se sustenta pelo conjunto de fontes do direito reconhecido pela lei apto a vincular pessoas a um dado território, por um período de tempo. O conhecimento e a consequente documentação desse direito, escrito na língua dos nacionais, permitiram o reconhecimento de uma comunidade jurídica capaz de fazer valer o projeto de sociedade escolhido, aos moldes ocidentais.

As categorias de análise para interpretação dos direitos constitucionais dos indígenas necessitam ser interpretadas de forma sistêmica, trazendo a convergência de institucionalidades. Para a implantação de políticas públicas envolvendo múltiplas intervenções com vários atores sociais, leis e ações governamentais com temas de interesse dos povos indígenas devem considerar a pluralidade de cada etnia e reconhecer seus costumes como fontes do direito nacional, com provas de teor e vigência em estatuto próprio, muito além da atual disciplina do artigo 376 do Código de Processo Civil em vigor.

Spacca
Na concepção ocidental do direito escrito, anterior às questões postas pela Legisprudência, Legística, Avaliação Legislativa inclui como especial importância as estratégias para um conhecimento real da norma jurídica, o planejamento das condições para a sua efetividade. Assim, a publicação oficial formal, o lugar da incidência assumem muito valor, em detrimento da real adesão às normas, para as quais, é tolerável não serem levadas a sério. No mundo dos costumes, ignorá-los significa o seu fim.

A convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) destaca o princípio da consulta livre, prévia e informada a qualquer política e atividade que afete os povos indígenas e disciplina o critério para sua autoidentificação e heteroidentificação e de autodeterminação. Uma interpretação conforme os costumes originários e a nossa Constituição sinaliza que a identidade indígena não é perdida porque uma pessoa frequenta a universidade ou porque usa algum aparelho eletrônico, roupas ou sapatos. Sua condição de indígena prevalece se, convictamente, assim se identifica e se é identificado por sua comunidade.

As recentes iniciativas do uso de linguagem simples no Judiciário também sinalizam a tendência de maior preocupação com questões da linguagem. Afinal, já bastam as leis complicadas, obscuras, contraditórias, disfuncionais que não façam sentido quando confrontadas com o dinamismo social, e que são o grande foco do imenso aparato do Judiciário.

Coube também ao sistema de administração da Justiça outras iniciativas focadas especificamente para as comunidades dos povos originários. No Canadá, desde os anos 2000, o EducaLoi, uma associação de advogados, notários e membros da sociedade de informação jurídica usou rádios comunitárias em comunidades indígenas para que o direito estatal pudesse ser "verbalizado" transmitido, oralmente, por mulheres indígenas. Em Minas Gerais, o Tribunal Regional Eleitoral apoiou projeto para uso da urna eletrônica pela etnia Maxacali por meio de signos de sua própria cultura.

Mas, ainda hoje, as leis são escritas em linguagem não natural.

O uso de estruturas da retórica que remonta à Idade Média e se vale de estruturas linguísticas, proposições escritas sob a forma de "artigos", orientadas por "alíneas" e "parágrafos", com uma linguagem e termos decorrentes de milênios de uma tradição documentada por homens, na língua do conquistador, não obstante a regra da escrita em "vernáculo", o português, ainda convivemos com "caput" e outras pérolas do Latim.

Recentemente, no Canadá o uso de um emoji foi considerado consentimento válido em compra e venda grãos pelo Tribunal de King's Bench, na província de Saskatchewan. O mesmo Canadá que adota o bilinguismo ( para a língua inglesa e francesa) e o bijuridismo (sistema de direito consuetudinário e sistema de direito escrito).

Nossa Constituição lida, em português, hoje em dia, por muitas pessoas, não indígenas soa incompreensível e quimérica, como projeto maior da nação do que "deve ser", mas que não escolheu um projeto de nação plurinacional que reconheça o papel da das outras linguagens na representação de mundo, na perpetuação da tradição e valores de um povo.

A inciativa da publicação da Constituição em língua indígena traz ainda a estridente ausência dos Legislativos quanto ao tema e o que nos auxilia na compreensão da exclusão do estado plurinacional, do reconhecimento da necessidade de amplificação das condições para o real conhecimento da lei ou na ampliação linguística do conhecimento da lei, ou de legislações que de fato permitam a vida dos povos indígenas e do seu conhecimento.

O artigo 59 da Constituição dispõe sobre processo legislativo e cria um dever de legislar ao determinar que a "Lei complementar disporá sobre a elaboração, redação, alteração e consolidação das leis". A Lei Complementar 95/98 já necessita ser revisada. Não obstante o fato de dispor sobre os critérios de validade de atos normativos de origem legislativa, executiva e judicial é desconsiderada, em diversos pontos, como é evidente na nossa cultura de "jabutis" em projetos de leis dos mais diversos.

Dentre as suas regras vigentes, há a previsão que leis de grande alcance social não devam ter eficácia imediata. Isto significa que a publicidade, requisito essencial para o direito escrito, precisa se ocupar de estratégias para o conhecimento real da lei.

Em outra Lei mais recente, a Lei de Acesso a informação (LAI) que especificamente trata da disponibilização de informações estatais (as legislações são informações com caráter vinculante) dispõe que a informação deva ser disponibilizada de forma transparente, clara e de fácil compreensão.

Leis que façam sentido para uma dada comunidade serão mais ou menos (re)conhecidas se as pessoas por elas afetadas puderem estar presentes no seu percurso formativo e que estratégias sintonizadas com o nosso tempo possam potencializar o arsenal comunicacional seja quanto às diversas linguagens, seja quanto aos meios.

A elaboração de legislações que amparem políticas públicas eficazes, eficientes e efetivas, devem incluir temas voltados para educação diferenciada a partir de suas línguas nativas, políticas de saúde coletiva, uso e aplicações tecnológicas, acesso à internet (inclusão digital) e especialmente, a demarcação de suas terras.

O processo de desconsideração dos costumes e práticas indígenas como fonte de conhecimento ainda perdura até os dias atuais, facilita o desconhecimento da realidade social desses povos, sua cultura de cooperação, sua consciência do coletivo, sua convivência e manuseio harmônico e sustentável do meio ambiente, sua relação de respeito e cuidado com a sua territorialidade. O resultado é também o risco de perda de fontes de aprendizagem para a sociedade autointitulada de civilizada e suas atividades quase sempre predatórias e irracionais que interferem no problema global das mudanças climáticas.

O artigo 231[3], da nossa Lei Fundamental, do nosso projeto de nação dispõe serem reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. O artigo 231 trouxe direitos até então inéditos para esses povos que impuseram uma interpretação dirigente, sob o paradigma da interação, a não assimilação, o direito a diferença, o respeito ao estilo de vida dos povos indígenas.

A representação linguística da nossa Lei Maior em linguagem indígena é também importante porque abre janelas para apontar novas discussões sobre Estado plurinacional, a criação do novo Estatuto dos Povos Indígenas até hoje paralisada, com início dos anos 90, no Congresso Nacional.

O território brasileiro conta com a presença indígena em todas as regiões e demandaria ações legislativas não só do Congresso, mas também nas cidades onde estejam e nas vizinhanças dos seus territórios. Por fim, as políticas públicas transversais em educação indígena deveriam estar presentes não só para os estudantes indígenas nas suas línguas, mas seus valores e mitos, histórias e costumes (práticas de justiça restaurativa), crenças, tradições, direitos constitucionalmente assegurados para esses povos deveriam estar presentes nos programas de ensino da educação não indígena, mas igualmente brasileira.

 


[1] MORI, Angel Corbera. Diversidade Linguístico-Cultural Latino-Americana e os direitos linguísticos dos povos originários. 2014.

[3] Art. 231. Guvernu umaã indio ta resé, mayê ta umuyã ta yumuatiri sa arã, ta rikusái ta resé, ta nheenga tá resé, ta ruyari sa asui maã taãmusasá waitá ta raíra u rayera ta supé,asui iwí resé waára mamé ta raãumuyã ambira tá taikú uikú waá kuxiíma suiwaára,yawéwa rupí Uniãutẽ umukamé, ũbeu amú ta supé yãindigena ta iwí, papéra rupí, asui usú umuyakũta iwí resé, ti aáram ne mayê míra ta tayuíri ta wiké ápe

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