Contas à Vista

Sobre simetria e equalização no federalismo fiscal brasileiro

Autor

  • Fernando Facury Scaff

    é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP) advogado e sócio do escritório Silveira Athias Soriano de Mello Bentes Lobato & Scaff Advogados.

1 de agosto de 2023, 8h00

Sabe-se que nossa sociedade é bastante desigual, inclusive quanto aos estados e municípios. Dessa forma, o tratamento a ser dado para os entes federativos deve ser igual, isto é, simétrico?

Spacca
Marcelo Labanca em seu livro Jurisdição Constitucional e Federação expõe a crença de que a simetria é vinculada à perfeição e a assimetria ao que é imperfeito. Simetria diz respeito à organização, à ordem, enquanto a assimetria sugere desorganização. A simetria foi desenvolvida pelos gregos, como uma forma racional de explicar a beleza, com proporção, equilíbrio e harmonia, sendo usada por eles em diversos campos, como na arte. O problema, relata o autor, "surge quando se aplica o valor da simetria para âmbitos de produção de poder. Notadamente no que tange à distribuição territorial do poder" (p. 08), o que, em sua essência, diz respeito ao federalismo em sociedades marcadamente desiguais, como a brasileira.

Isso vem a calhar com o que estabelece o artigo 3º, III, de nossa Constituição, que estabelece como um dos objetivos de nossa sociedade a redução das desigualdades regionais, além das sociais.

Cabe simetria fiscal no federalismo fiscal brasileiro sabendo-se que somos um país com entes federados assimétricos? Como tratar de forma financeiramente simétrica (isto é, idêntica), o estado de São Paulo e o de Sergipe ou o Acre? Sem falar no âmbito municipal, em face da patente diversidade entre os entes federados?

O sistema financeiro brasileiro é obcecado pela simetria. Um exemplo pode facilitar a compreensão. Norma do Senado estabelece que todos os estados podem se endividar em até 2,0 vezes sua receita corrente líquida. É possível acreditar que as necessidades de endividamento do Acre ou de Sergipe são iguais às de São Paulo? Sei que a base de cálculo (a receita corrente líquida) de cada um será diferente, mas, visando a necessidade de alavancar o desenvolvimento, não seria adequado tratá-los de forma assimétrica, permitindo maior endividamento aos que necessitam de mais recursos para desenvolver seu território? O mesmo ocorre com os municípios, que, pela mesma norma, podem se endividar até 1,2 de sua receita corrente líquida — será que o município do Rio de Janeiro e o de Duque de Caxias devem ser tratados simetricamente? O controle sobre o uso dos recursos é outro assunto, igualmente importante, mas que foge ao tema aqui abordado.

Nem se diga que a modificação da base de cálculo (renda corrente líquida) é suficiente para dar a necessária assimetria. É necessário alterar também as alíquotas. No âmbito tributário isso é de mais fácil visualização, em face do princípio da progressividade na tributação da renda. A alteração da base de cálculo acarreta proporcionalidade, o que seria simétrico, e só com a alteração conjunta das alíquotas é que se obtém a progressividade, obtendo assim, alguma assimetria.

O tratamento financeiramente simétrico é prejudicial para o desenvolvimento nacional, pois alguns entes federados necessitam de mais recursos do que outros. Logo, a simetria, tal como aplicada, implica em tratar os desiguais de forma igual, o que é contra o princípio da isonomia, que determina tratamento desigual buscando igualar situações desiguais, visando reduzi-las. Para tanto, é necessário analisar os critérios de discrímen estabelecidos pelas normas a fim de verificar se o tratamento assimétrico possui fundamento.

Um bom ponto de observação diz respeito aos fundos criados há décadas para repartir a receita do Imposto de Renda e do IPI que são arrecadados pela União, com percentuais a serem distribuídos entre os demais entes federados. Essa lógica compõe a arquitetura do federalismo cooperativo estabelecido em nossa Constituição, e parte do pressuposto que as bases de incidência da renda e da produção são distribuídas em todo o território nacional, a despeito de sua arrecadação competir à União. Por exemplo, a renda pode ser gerada no Piauí, mas o imposto sobre a renda é pago à União, logo, o compartilhamento de parte dessa receita tem por fundamento a amplitude da base de incidência desse tributo em todo o território nacional, e é algo muito mais racional do que criar um imposto de renda estadual, como se vê nos Estados Unidos e foi previsto originalmente na Constituição de 1988 para ser cobrado como um adicional.

Nas transferências obrigatórias para os estados no Fundo de Participação dos Estados (FPE), a regra de discrímen (assimetria) leva em consideração a população e o inverso da renda domiciliar per capita, considerando de forma antecedente que 85% dos recursos são divididos entre os estados das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste e 15% para divisão entre os estados das regiões Sul e Sudeste.

Nas transferências obrigatórias para os municípios no Fundo de Participação dos Municípios (FPM), a regra de discrímen leva em consideração, inicialmente, o fato de serem ou não capitais — estas rateiam 10% do Fundo —, os demais dividem 86,4% dos recursos (FPM-Interior), considerando a população de cada cidade e a renda per capita de cada estado, o que implica em menor valor para cada município caso componha um estado com muitos municípios. A recente Lei Complementar 198 buscou reduzir o impacto financeiro do Censo para as cidades que tiveram sua população reduzida. Existe ainda um percentual de re-rateio (3,6%) para os municípios com população superior a 142 mil habitantes.

Será que estes critérios de discrímen para tais assimetrias estão adequados ou poderiam ser melhor desenhados? Afinal, não basta ser assimétrico, pois o critério de discrímen pode agravar as desigualdades, ao invés de reduzi-las, ou ter impacto muito menor que o pretendido.

Este tema é o cerne do federalismo fiscal e, como se trata de uma questão de distribuição de poder, bolir com ele pode gerar uma enorme revolução federativa, e não tem sido objeto sequer de pesquisas jurídicas, havendo apenas propostas de economistas, como se vê na de Marcos Mendes, na de Constantino Mendes, do Ipea, e no estudo de Teresa Ter-Minassian, do FMI. Em síntese, propõem transformar o atual sistema de singela distribuição para o de equalização, adotando, por exemplo, a diferença de renda líquida per capita como parâmetro.

Equalizar implica em considerar outras variáveis que não a singela distribuição. Um exemplo: os recursos do FPE são transferidos independentemente do aumento de arrecadação do ICMS ou da obtenção de outras receitas, como a dos royalties do petróleo ou da mineração — neste caso, havendo outras receitas, a transferência poderia ser ampliada ou reduzida, a depender do objetivo a ser alcançado. Pode haver equalização em face de outros parâmetros, como a quantidade de leitos públicos hospitalares por habitante ou de vagas em escolas públicas por município. Os exemplos poderiam se multiplicar.

Vale referir que esse modelo de transferências fiscais não é um pires na mão, que estados e municípios apresentam à União, mas faz parte do arranjo constitucional de federalismo cooperativo brasileiro, constituindo-se em receitas próprias desses entes federados, embora não se constituam em receitas diretamente arrecadadas por eles. O pires na mão se refere às transferências voluntárias, que tem volume muito menor de recursos.

Reconhecer a diferença entre os entes federados, e transferir recursos de conformidade com um conjunto de variáveis politicamente determinadas, seria uma boa forma de implementar um federalismo fiscal assimétrico, contribuindo para um país mais justo, e a criação de fundos de equalização seguramente é um forte instrumento para isso.

Autores

  • é professor titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), advogado e sócio do escritório Silveira, Athias, Soriano de Mello, Guimarães, Pinheiro & Scaff Advogados.

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