Opinião

O cotidiano das mulheres e a (in)justiça ambiental

Autores

  • Sandra Cureau

    é subprocuradora-geral da República ex-vice-procuradora-geral da República e ex-vice-procuradora-geral eleitoral foi procuradora-regional eleitoral no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.

  • Inês Virgínia Prado Soares

    é desembargadora no Tribunal Regional Federal da 3ª Região mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e realizou pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo - NEV-USP (2009-2010).

26 de abril de 2023, 21h11

No contexto urbano ou rural, os problemas socioambientais e a busca de soluções para estes permeiam o cotidiano das mulheres, desde as que desenvolvem tarefas pouco ou não remuneradas até as ocupantes de altos postos no setor público ou privado.

Tem se notado que a presença de mulheres em altos postos corporativos aumenta o índice ESG (sigla em inglês para Meio Ambiente, Social e Governança) da empresa. Ao mesmo tempo, pesquisas indicam um baixo percentual de participação feminina em conselhos e diretorias de companhias abertas que, no Brasil, foi em torno de 15%, em 2022; e que, embora haja criação de novas vagas de trabalho com exigência de alto grau de escolaridade e, por consequência, com maior remuneração, o segmento feminino é pouco contemplado com essa novidade, porque a formação e a força de trabalho das mulheres estão voltadas a ocupações que pagam menos.

Dentre tantas matérias publicadas no mês de março, por ocasião das celebrações do dia internacional da mulher, destacam-se duas matérias veiculadas pela Folha de S.Paulo:  no dia 4 de março, a matéria na qual se afirmava que, "se há uma característica marcante no movimento dos sem-teto no centro de São Paulo é a liderança feminina". Esta presença acentuada das mulheres tem se revelado, também, nos movimentos indígenas e de outros grupos sociais, em especial naqueles que atuam em defesa do meio ambiente ou que o utilizam de maneira sustentável; e no dia 8 de março, a jornalista Jéssica Maes chamou a atenção para o fato de que os problemas sociais, causados pela crise do clima, "impactam as mulheres de forma desproporcional".

Não basta falar de representatividade feminina em altos postos empresariais e de discrepância de salários entre gêneros se não houver políticas públicas e programas corporativos que fortaleçam e valorizem as que estão na base da pirâmide, protegendo o meio ambiente e os valores culturais. Não há justiça ambiental sem equidade de gênero. A emergência climática pede urgência na promoção de mecanismos para o fortalecimento do papel feminino na preservação do ecossistema brasileiro.

As mulheres são um dos pilares das comunidades tradicionais, o que as leva a deter saberes particulares e responsabilidades específicas em relação às suas famílias, à sua coletividade e aos seus territórios.

pesquisas que indicam que, na América Latina, as mulheres têm um importante papel na conservação da agro biodiversidade. Dados da organização Save the Children apontam que mulheres e meninas representam mais de 40% da força de trabalho na agricultura, respondendo por até 80% da produção de alimentos. Atuam como agentes de transformação. 

O ônus dos cuidados e da transmissão oral dos conhecimentos sobre o cuidar (e também sobre a cura no ambiente doméstico) é protagonizado por mulheres. Em 2020, nos primeiros meses de pandemia da Covid-19, houve notícias do uso de conhecimentos tradicionais, como alternativa das comunidades para lidar com a enfermidade. No ano seguinte, em 2021, as mulheres indígenas protagonizaram o lançamento de uma cartilha sobre plantas medicinais que podem ser  usadas contra Covid.

Na entrevista de Cecília Piratapuya, uma das fundadoras da Associação dos Artesãos Indígenas de São Gabriel da Cachoeira (Assai) e idealizadora dos encontros, no período da pandemia, quando a agenda de viagens para feiras de artesanatos foi suspensa, entre  artesãs e artesãos para que mostrassem as plantas que utilizadas por eles para protegerem suas famílias da Covid-19, chama atenção sua explicação sobre os papéis masculinos e femininos no tratamento da doença, com destaque para a relevância do papel da mulher e o valor do cuidado na vivência prática (efetividade) dos conhecimentos tradicionais. Em resposta à pergunta se "o conhecimento das plantas medicinais vem principalmente das mulheres?", Cecília Piratapuya afirmou que "Não. Eu vou dizer que não. É mais dos homens. Eles que trazem para nós. Só que nós, mulheres, a gente se interessa mais, cuida mais da parte do conhecimento. Eles falam para nós, a gente vai passando para outras mulheres, as mulheres trocam, falam como fazem. Mas sem o trabalho da mulher não ia ter esse tratamento".

A fala transcrita acima realça algo muito evidente na sociedade: o ônus dos cuidados e da transmissão não formal dos conhecimentos sobre o cuidar é protagonizado, em geral, por mulheres, mas o tema é quase ignorado pelos atores do direito, inclusive pelos pesquisadores dos direitos culturais, embora esteja presente no cotidiano feminino de maneira intensa, permeando as relações públicas e privadas, com uma naturalização e um assentamento da desigualdade entre gêneros e de injustiças.

Assim, o campo teórico que se convencionou chamar de "economia dos cuidados" (care economy em inglês), embora tenha sido incorporado ao Direito, pelo sistema de Seguridade Social (beneficiando mulheres da lida campesina, o que pode abranger essas que atuam na transmissão dos conhecimentos tradicionais) ou na esfera cível/direito de família, por exemplo, ainda não é um tema merecedor da devida atenção e destaque sob a ótica dos direitos coletivos das mulheres, muito menos dos direitos culturais e da formação do patrimônio imaterial brasileiro.

Como lidar com a "economia dos cuidados" é um desafio para corporações e gestores públicos, não apenas no cenário local, mas também global. A OnG britânica Oxfam lançou, em 2020, um documento intitulado Time to Care: unpaid or underpaid care work and the global inequality crisis, no qual lança luzes para a questão de gênero no problema da desigualdade econômica mundial. No âmbito local, a OnG Think Olga tem se dedicado a discutir o tema do Cuidado em oficinas, textos escritos, podcasts e divulgação de conteúdos em redes sociais.

Sob a perspectiva da sustentabilidade e do exercício dos direitos ambientais e culturais também não há, no desenho e execução de políticas públicas, ações que transformem a realidade de duplas ou triplas jornadas femininas ou que valorizem, social ou financeiramente, as tarefas ligadas ao cuidado. 

Muitas das atividades que as mulheres desenvolvem, especialmente quando se trata de povos indígenas e populações tradicionais, têm ligação estreita com os fatores que influenciam a preservação do meio ambiente e o clima, tais como aquelas realizadas com o uso da água, do solo e da variedade de plantas características da região em que exercem o seu modo de vida. Embora desenvolvam um papel fundamental no enfrentamento dos problemas ambientais e no desenvolvimento de ações que contribuem para a conservação da natureza, as mulheres das comunidades indígenas e tradicionais ainda buscam ser aceitas como lideranças. Tanto a ideologia cultural as desvaloriza, como as classificações sócio estruturais buscam excluí-las da participação nos domínios em que reside o maior poder social.

Ao mesmo tempo, pesquisas realizadas apontam que as mulheres têm maior consciência e envolvimento em relação à preservação do meio ambiente, estando mais cientes dos riscos das mudanças climáticas. Esse envolvimento também é político e no Brasil se confirma, no cenário atual, com o comando, no governo federal, das pastas do meio ambiente e clima e dos povos indígenas por ministras mulheres.

Há um compromisso assumido para o futuro. A Agenda 2030 da ONU, ao estabelecer 17 Objetivos do Desenvolvimento Sustentável (ODS), indicou o alcance da igualdade de gênero e do empoderamento de todas as mulheres e meninas, como o ODS de número 5.

Importantes documentos internacionais, desde 1979, têm disposto expressamente sobre a igualdade de gênero, reconhecendo o papel significativo que as mulheres do meio rural desempenham na sobrevivência econômica de suas famílias e que suas atividades se baseiam, em grande parte, no respeito e preservação dos ecossistemas: a Convenção da Mulher entrou em vigor em 1981; a  Declaração de Viena, em 1993; e a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, conhecida como "Rio-92", em 1992.Nesta última, dois documentos relevam em importância: a Agenda 21, que buscou estabelecer objetivos claros que protegessem, incentivassem e implementassem as estratégias conservacionistas propostas pelas mulheres, e a declaração "O Futuro que Queremos", que destinou uma gama de artigos para destacar o valor das atitudes femininas ligadas à natureza, reconhecendo, enfaticamente, a sua posição de liderança e promovendo a participação plena da mulher na gestão do meio ambiente.

A Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), aprovada na Rio-92, reconhece o papel diferenciado das mulheres na dinâmica social das comunidades em que vivem, em razão das práticas sustentáveis promovidas por elas.

Na COP5 (2000, Quênia), iniciou-se o processo de reconhecimento formal do papel fundamental desempenhado pelas mulheres e suas organizações na conservação e utilização sustentável da diversidade biológica. Na COP26 (2021, Escócia), foi destacado que gênero e clima estão profundamente interligados e ressaltado que o impacto da mudança climática afeta as mulheres e meninas de forma desproporcional. Na COP27 (2022, Egito), na programação do Brasil Climate Action Hub, aprofundando a constatação da COP 26, o debate foi sobre como ampliar a conscientização sobre o papel de liderança que as mulheres podem desempenhar nas ações para proteção ambiental e justiça climática.

Apesar das reflexões sobre mulheres e clima, a desigualdade entre gêneros restou longe de ser superada na COP 27, a começar pela participação feminina nas delegações oficiais dos países – menos de 34%, segundo matéria da BBC, que ainda destacou que, na foto inaugural da conferência, estavam 110 líderes mundiais, dos quais apenas dez eram mulheres.

Os retratos tão masculinos ainda não constrangem. Ainda. As fotografias das mulheres ainda não retratam tudo o que fazem pelo meio ambiente e pela humanidade. Ainda.

Autores

  • é subprocuradora-geral da República, ex-vice-procuradora-geral da República e ex-vice-procuradora-geral eleitoral. Foi procuradora-regional eleitoral no Rio Grande do Sul e no Rio de Janeiro.

  • é desembargadora federal no Tribunal Regional Federal da 3ª Região, mestre e doutora em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), e realizou pesquisa de pós-doutorado no Núcleo de Estudos de Violência da Universidade de São Paulo - NEV-USP (2009-2010).

Tags:

Encontrou um erro? Avise nossa equipe!