Território Aduaneiro

Cross-border e-commerce, descaminho digital e algumas reflexões

Autor

  • Fernando Pieri Leonardo

    é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados mestre em Direito pela UFMG pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa professor de Direito Aduaneiro e Tributário Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG multiplicador do Programa OEA da Receita Federal membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

25 de abril de 2023, 8h00

Na última semana, as compras eletrônicas internacionais voltaram a ganhar destaque e debate. O governo anunciou que iria taxar as compras abaixo de US$ 50, com a mesma alíquota de 60% com que tributa as aquisições em valores superiores a esse [1]. As justificativas seriam o grande volume dessas importações em que os valores são declarados a menor do que os realmente negociados, o fracionamento das compras para que permaneçam no limite da isenção e a falsidade nas informações de quem seriam os remetentes e os destinatários, a fim de que figurem nas declarações como pessoas físicas, condição para a dispensa do imposto. Essa não é uma temática nova. Já havia sido destacada em 2022, pelo governo anterior [2]. No decorrer da semana, o ministro da Fazenda, Fernando Haddad, voltou atrás na intenção de acabar com a faixa de isenção, declarando que as fraudes seriam combatidas administrativamente.

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A par de aspectos da política econômica do governo, o tema tem várias facetas que permitem reflexões sobre o controle aduaneiro dessas operações e seus desafios. Primeiramente, vejamos o contexto em que a discussão se insere. As operações em tela, com isenção, são realizadas através de remessas internacionais [3]. No ano passado, 181.666.752 volumes (importações, 178.666.468; exportações, 3.000.284) cruzaram as fronteiras brasileiras, em operações realizadas através de remessas internacionais. Para a entrada desses volumes foram registradas 5.075.902 DIRs — declarações de importação remessa [4], no Siscomex Remessa, utilizando-se de uma das duas modalidades de remessa internacional, a saber: (1) remessa expressa, transportada sob responsabilidade das empresas de courier habilitadas a operar pela RFB [5], por via aérea, para prestação de serviço expresso e entrega porta a porta, amparada por conhecimento de carga courier; (2) remessa postal: transportada sob responsabilidade da Empresa de Correios e Telégrafos (ECT), por meio do sistema postal internacional, respeitados limites e condições da legislação postal internacional e brasileira. Foram arrecadados R$ 1.502.847.176 (II + multas) com as remessas internacionais, representando um crescimento de 11,39% em relação ao valor recolhido em 2021. As declarações e os volumes de remessas expressas, em 2022, decresceram em relação a 2021, respectivamente, 8,82% e 9,49%, mas os valores importados subiram 9,62%. Na remessa postal, ao contrário, houve crescimento expressivo no comparativo com os resultados de 2022, tanto em declarações (31,75%), volumes (39,44%) e valores (32,63%) [6], o que demonstra um interesse bem maior dos usuários brasileiros pela remessa postal.

Dentre as diferenças, para se optar entre o uso da remessa expressa ou postal, podemos destacar o limite de peso (na expressa sendo definido pela empresa courier; na postal, fixado em 30 kg), na forma de pagamento (na expressa: definida pela empresa courier; na postal, exclusivamente através do sítio eletrônico da ECT), mas é na tributação que está a principal distinção entre ambas, já que na utilização da remessa postal, é concedida isenção do imposto de importação para bens no valor de até US$ 50 (de mininis), quando remetente e destinatários são pessoas físicas [7].

Em ambas as modalidades, nos termos do artigo 1º da Portaria MF no 156, de 24 de junho de 1999, aplica-se o regime de tributação simplificado (RTS), instituído pelo Decreto-lei no 1.804, de 3 de setembro de 1980, e regulado pela IN RFB no 1.737, de 15 de setembro de 2017, para aos bens no valor de até US$ 3.000, destinados a pessoa física ou jurídica, com recolhimento de imposto de importação à alíquota de 60%, independente da sua classificação tarifária. Os demais tributos federais exigidos no regime comum de importação, quais sejam IPI, Pis-importação e Cofins-importação, são isentos [8].

O comércio eletrônico transfronteiriço, segundo a Organização Mundial das Aduanas (OMA), é reconhecido quando: (a) o pedido e suas comunicações, compra e venda, e pagamento, são via online; (b) envolve transações transfronteiriças com movimentação de carga; (c) mercadorias são tangíveis; (d) destinadas a compradores consumidores, sejam eles comerciantes ou não [9]. Conforme escreveu Daniela Lacerda Chaves [10], pode ocorrer nas operações entre pessoas físicas, consumer to consumer (C2C); entre pessoa jurídica e física, business to consumer (B2C), e entre pessoas jurídicas, business to business (B2B). Frank Heijamann e John Peters, autores da obra Customs — Inside Anywhere, Insights Everywhere [11], destacam as diferenças entre o modelo comum de comércio cross-border e o do e-commerce. No caso desse afirmam que há uma ruptura com a cadeia tradicional de comércio. Tradicionalmente, nas vendas físicas, teríamos o fabricante, o distribuidor e o revendedor que seria acionado pelo consumidor. Para os autores, os avanços tecnológicos da comunicação permitiram a compra diretamente junto ao exportador. Observam que as mudanças colocam pressão no fluxo de informações, na medida em que um exportador que seja um comerciante, com maior experiência, tem mais perspectivas de cumprir a legislação aduaneira e oferecer as informações necessárias e corretas à aduana. Nesse sentido, o crescimento exponencial do e-commerce transfronteiriço e a má qualidade das informações disponíveis apresentam novos e grandes desafios para a Aduana, que se vê diante de um enorme e crescente volume de encomendas e declarações, com reduzida (ou sem) possibilidade de controle prévio das informações relativas à operação [12]. Somam-se a isso as novas formas de negócio e organização empresarial no e-commerce, como a existência dos marketplaces (lojas virtuais agregando vários fornecedores e produtos às suas prateleiras), novos meios de pagamentos e pulverização de pessoas e empresas tanto na origem (exportação), quanto no destino (importação), revelando maior grau de risco aduaneiro por falta de informações prévias dos atores, do histórico de suas operações, dos produtos negociados e de seu valor, facilitando o subfaturamento e o comércio de produtos falsos, com ameaças à segurança da sociedade e potenciais prejuízos para as empresas nacionais.

A preocupação externada pelo governo brasileiro, relacionada às importações via remessa internacional, que burlam o de minimis, não é, de forma alguma, exclusiva do Brasil. Conforme registrou o secretário-geral da OMA, Kunio Mikuriya [13], com o aumento do volume do e-commerce internacional, houve um aumento do número de "low-value" shipments em todo o mundo. Controlar esse fluxo de mercadorias para evitar operações com bens restritos ou proibidos e identificar cargas que tenham sido divididas ou subfaturadas para sonegar tributos é um grande desafio para grande maioria dos países membros. Veja-se que a preocupação nacional é compartilhada pela maioria do países, inclusive naqueles em que o de minimis é muito superior ao brasileiro, como é o caso dos EUA, que tem um montante de minimis de US$ 800, pela UE com o limite em EUR 150 e no Peru, em US$ 200 [14].

No entanto, em outra vertente, o e-commerce internacional promove novas oportunidades de crescimento para a economia global, estimula novas tendências de consumo e postos de trabalho. Outrossim, ainda nos pontos positivos, como reconhece a OMA, esse crescimento sem precedentes do cross-border e-commerce revolucionou o modo de se fazer negócios e consumir, vender e comprar, ampliando as possibilidades de escolha de produtos, inovações nos transportes, pagamentos e formas de entrega, e ainda abriu oportunidades de acesso a mercados globais para micro, pequenos e médios empreendimentos, com menores barreiras de entrada e custos reduzidos [15].

O desafio da aduana no tema, portanto, é buscar medidas que promovam o comércio legítimo, seguro e em conformidade, também nesse crescente e irrefreável e-commerce internacional. Com esse foco, as experiências de outros países, muitas delas já observadas pela aduana brasileira, como a inspeção não invasiva, podem contribuir sobremaneira. Veja-se, por exemplo, a aduana da Coreia aproveitando a tecnologia no uso do blockchain (visando centralizar as informações de todos as partes envolvidas — vendedor, courier, transportadores e despachantes aduaneiros enviando suas informações em tempo real para a aduana, que as recebe e confirma sua correção), da inteligência artificial (para escanear e identificar melhor os produtos na inspeção não invasiva) e do big data (visando controle do valor aduaneiro com maior amplitude de informações e maior eficiência) [16].

A OMA preconiza oito princípios orientadores para as aduanas exercerem seu papel em relação ao e-commerce transfronteiriço [17]. Entre eles está a parceria entre a aduana e as empresas. Especialmente os couriers e os marketplaces são quem tem maiores possibilidades de reunirem as informações necessárias e de forma antecipada para a análise da aduana. Com as informações antecipadas, a aduana promove uma gestão de risco mais eficiente e inteligente. Muitos dos marketplaces e couriers, no Brasil, já possuem sistemas em que promovem gestão de risco, equipes de compliance, confirmação de informações de CPF de importadores, avaliação de valores, descrição e NCM de mercadorias importadas, buscando assegurar conformidade e segurança em suas operações. O Programa OEA é citado nas discussões internacionais como uma ferramenta que pode e deve ser ampliada para certificação de intervenientes com atuação no e-commerce. É uma medida muito pertinente e que pode contribuir para regularidade, controle, segurança e facilitação dessas operações. Aliás, o Programa OEA é uma comprovação de como a parceria entre a aduana e as empresas acrescenta para a finalidade comum de promoção do comércio internacional legítimo.

Por fim, duas observações: o tema é bastante complexo e eliminar o de minimis não nos parece seja a melhor solução, ademais de seguir na contramão da maioria dos países que o adotam. Nesse sentido, não se deve olvidar as previsões do Acordo sobre Facilitação do Comércio/OMC (AFC), em seu artgo 8.2. "d", e da Convenção de Quioto Revisada/OMA (CQR), em sua norma 4.13. A explosão do e-commerce transfronteiriço é fenômeno global e seus desafios também. A parceria, diálogo e contribuições das empresas e da academia, somadas às experiências de outros países, certamente, são um caminho a ser seguido. No dia 20, quinta-feira passada, foi divulgado que o governo está avaliando possibilidade de cobrança do imposto de importação no momento da compra [18]. A mudança, a ser avaliada, inclusive quanto a sua legalidade, poderia reduzir possibilidades de manipulação artificial do valor aduaneiro e mitigar o descaminho. No caso, tecnicamente, embora se diga que tem havido "contrabando digital" por se utilizar indevidamente o de minimis, o que se constata no caso e que precisa ser extirpado, é um "descaminho digital".

 


[1] Disponível em: link. Acesso em 20/4/23.

[2] E, à época, foi objeto de análise em artigo publicado nessa coluna por Fernanda Kotzias: Faz sentido tributar compras pequenas de plataformas internacionais? link.

[3] Nos termos definidos no Balanço Aduaneiro de 2022, publicado pela Aduana, "remessa internacional é o conceito que engloba os volumes relativos a encomendas, pacotes, presentes, correspondências, documentos ou bens que chegam ou saem do País transportados por Empresas de Courier ou pelos Correios". Disponível em link. Acesso em 20/4/23.

[4] Art. 31 e 34 a 40, da Instrução Normativa RFB no 1.737, de 15 de setembro de 2017.

[5] São 41 empresas atualmente habilitadas a operar no Brasil em remessa internacional expressa. Disponível em link. Acesso em 20/4/2023.

[6] Dados do Balanço Aduaneiro de 2022. Disponível em link. Acesso em 20/4/2023.

[7] O Decreto-lei no 1.804/80 prevê como limite de isenção US$ 100,00 e não restringe a operação em sua origem a pessoas físicas. A Portaria MF no 156/99 reduziu o limite para US$ 50,00 e incluiu o exportador ser pessoa física como requisito para aplicação da isenção. O questionamento da legitimidade da Portaria, frente à previsão legal superior, provoca discussões que vêm sendo levadas ao judiciário. Sobre o tema, o Superior Tribunal de Justiça já se manifestou reconhecendo legitimidade à portaria ministerial quanto ao exercício de sua competência: Neste panorama as remessas postais internacionais de bem de valor superior a U$ 50,00, ainda que inferiores a US$ 100,00 se submetem a incidência do imposto de importação a alíquota de 60% .” REsp. no 1.724.510 – PR, relator min. Francisco Falcão, publicada em 14/06/2019. Disponível em: link, Acesso em 21/04/23.

[8] Art. 99, do Regulamento Aduaneiro, Decreto no 6.759/09.

[9] WCO, Framework of Standarts on Cross-border E-commerce, June 2022. Disponível em: link. Acesso em 21/04/23.

[10] CHAVES, Daniela Lacerda. E-commerce Crossborder: dificuldades e alternativas para o exercício do adequado controle aduaneiro, in PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves e REIS, Raquel Segalla, coord.. Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo blanch, 2023, p. 314-330.

[11] HEIJMANN, Frank, PETERS, John. Customs – Inside Anywhere, Insights Everywhere. Rotterdam: ed. Trichis Publishing BV, 2022, p. 312-316.

[12] Destacamos os três grandes desafios da Aduana brasileira vislumbrados por Daniela Lacerda com o aumento das operações de e-commerce: "o grande volume de bens; a falta de informações sobre o exportador, importador e sobre os bens importados até o momento efetivo da sua chegada ao país, e a dificuldade de controle sobre o valor declarado das importações". CHAVES, Daniela Lacerda. E-commerce Crossborder: dificuldades e alternativas para o exercício do adequado controle aduaneiro, in PEREIRA, Cláudio Augusto Gonçalves e REIS, Raquel Segalla, coord. Ensaios de Direito Aduaneiro II. São Paulo: Tirant lo blanch, 2023, p. 314-330.

[13] Disponível em: link. Acesso em 21/04/23.

[14] Os valores de mininis em vários países encontram-se publicados em pesquisa promovida pela Global Express Association (link), e foram comentados no perfil Portal Aduaneiro no Instagram, de autoria de Rosaldo Trevisan: link. Cabe destacar que na União Europeia foi abolido, em julho de 2021, o montante de minimis para o VAT (imposto sobre o valor agregado), equivalente a nossos impostos sobre o consumo, sendo atualmente a isenção europeia restrita ao imposto de importação.

[15] WCO, Framework of Standarts on Crossborder E-commerce, June 2022. Disponível em: link. Acesso em 21/4/23

[16] Disponível em: link. Acesso em 21/4/23.

[17] São eles (1) fornecimento de dados eletrônicos da operação de maneira antecipada permitindo um eficiente gerenciamento de riscos das operações; (2) adotar medidas de facilitação e simplificação de procedimentos; (3) assegurar segurança e proteção; (4) garantir a arrecadação prevista em lei; (5) promover medição e análise de dados; (6) parcerias com outras Aduanas, com outros órgão governamentais e com o Setor Privado; (7) conscientização pública, divulgação e capacitação e (8) promover a adequação legislativa

Autores

  • é sócio fundador da HLL & Pieri Advogados, mestre em Direito pela UFMG, pós-graduado em Direito Aduaneiro Europeu pela Universidade Católica de Lisboa, professor de Direito Aduaneiro e Tributário, Membro da Comissão Especial de Direito Aduaneiro do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Direito Aduaneiro da OAB-MG, multiplicador do Programa OEA da Receita Federal, membro de nº 51 da Academia Internacional de Direito Aduaneiro.

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