Opinião

O debate sobre o patrimônio cultural e a carta escrita em ouro

Autor

  • Humberto Cunha Filho

    é professor de Direitos Culturais nos programas de graduação mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (Unifor) presidente de honra do Instituto Brasileiro de Direitos Culturais (IBDCult) e autor dentre outros dos livros “Teoria dos Direitos Culturais” (Edições SESC-SP) e “(F)atos Política(s) e Direitos Culturais” (Dialética).

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24 de abril de 2023, 19h13

O manifesto político mais famoso do ocidente é datado de 1215 e chama-se Magna Carta, que foi escrita pelos barões ingleses e apresentada ao rei João, dele reivindicando direitos econômicos relacionados a um abrandamento da tributação, e até socioculturais como, nos casos de crimes, os cidadãos serem julgados por seus pares segundo os costumes locais, também chamados de lei da terra. A importância da Magna Carta pode ser medida pelo fato de que o seu nome se transformou em sinônimo de constituição política dos países.

O segmento cultural aparenta gostar de criar cartas, sendo exemplo destas, as duas Cartas de Fortaleza (1997 e 2007), ambas para o patrimônio cultural imaterial, e a Carta Ibero-Americana de Direitos da Cultura (2006), costumeiramente elaboradas não por barões, mas por intelectuais que acreditam traduzir os anseios da cidadania no que concerne ao universo cultural.

Ane Souz
Ane Souz

Um novo documento do gênero chegou recentemente à cena, a Carta de Ouro Preto para a Legislação Brasileira de Patrimônio Cultural, aprovada em 5 de abril de 2023, como último ato de um seminário nacional organizado pela universidade federal que leva o nome da cidade e pelo Ministério Público de Minas Gerais, reunindo, ademais, entre realizadores, colaboradores e apoiadores institucionais, mais de 150 entidades, órgãos, grupos e coletividades, que contribuíram com a elaboração do documento e com o evento que lhe deu luz, em todos os momentos do processo, desde o nome, passando por perguntas formuladas aos palestrantes, indo a sugestões sobre o preâmbulo, os considerandos, os critérios de interpretação e aplicação das normas sobre o tema, as diretrizes e a última cláusula, que não é necessariamente a final, dadas as breves explicações que cada uma dessas partes merece.

O preâmbulo indica genericamente quem participou dos debates, que foram os "representantes de entidades ligadas à proteção e salvaguarda do Patrimônio Cultural em suas mais diversas possibilidades; representantes de órgãos públicos com atribuições voltadas à eleição e gestão dos bens culturais; agentes da estrutura executiva, judiciária e legislativa brasileira; pesquisadores; especialistas; conselheiros; detentores de saberes tradicionais; e sociedade civil organizada: atuantes na pesquisa, difusão e valorização do patrimônio cultural".

Isso faz com que o documento fuja da ideia tradicional de Carta, pois junta remetentes e destinatários na reivindicação de direitos, sem que sejam precisas as fronteiras entre cada papel.

Os considerandos e as conclusões prévias enfatizam, para os pleitos, aspectos como o de direito humano, o fundamento constitucional, a manutenção de conquistas, a indissociabilidade das dimensões material e imaterial; diversidade, pluralismo, tratamento diferenciado aos vulneráveis, participação, autonomia, subsidiariedade, entre outros.

O mais firme indicativo deles resultante é o de que o regime patrimonial de 1988 deve ser aplicado em sua plenitude, sem prejuízo dos métodos protetivos até agora utilizados e que tenham sido recepcionados pela Constituição Cidadã.

As diretrizes foram agrupadas sob as designações de abrangência e principiológicas, para delimitar o universo e os valores de regência do patrimônio cultural; instrumentais, que versam sobre os instrumentos adequados a cada tipo de patrimônio; garantísticas, relacionadas às providências que devem ser adotadas para a efetiva concretização do direito do patrimônio cultural; orgânicas, que apontam os órgãos e respectivas configurações e competências considerados adequados a conduzir as políticas patrimoniais; e sancionatórias e compensatórias, com a previsão de punições e obrigações aos violadores da integridade dos bens culturais.

A cláusula final é uma janela aberta ao debate permanente sobre o tema, uma vez ser reconhecido "que as conclusões aqui havidas não se esgotam neste documento" sendo "preciso a sua permanente melhoria e ampliação", fecho que ao invés de mostrar titubeio, revela entendimento da dinâmica patrimonial, sempre viva e demandando a compreensão valorada dos modos de criar, fazer e viver, o que afeta positiva ou negativamente nossa relação com os bens culturais. Neste ponto, o documento não difere da Carta Magna, que mesmo resultante de um período que Zygmunt Bauman não chamaria de líquido, teve várias versões.

Por tudo isso, podemos concluir que essa é uma carta escrita em ouro, não apenas a forma reduzida de Ouro Preto, a primeira cidade-monumento do Brasil, também riquíssima em patrimônio imaterial, mas do bem mais valioso para a vida em sociedade: o debate plural, democrático e permanente.

Autores

  • é professor de Direitos Culturais nos programas de graduação, mestrado e doutorado da Universidade de Fortaleza (Unifor), presidente de honra do IBDCult (Instituto Brasileiro de Direitos Culturais), comentarista do Instituto Observatório do Direito Autoral (Ioda) e autor, dentre outros, dos livros "Teoria dos Direitos Culturais" (Edições Sesc-SP) e "(F)Atos, Política(s) e Direitos Culturais" (Dialética-SP).

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