O manifesto político mais famoso do ocidente é datado de 1215 e chama-se Magna Carta, que foi escrita pelos barões ingleses e apresentada ao rei João, dele reivindicando direitos econômicos relacionados a um abrandamento da tributação, e até socioculturais como, nos casos de crimes, os cidadãos serem julgados por seus pares segundo os costumes locais, também chamados de lei da terra. A importância da Magna Carta pode ser medida pelo fato de que o seu nome se transformou em sinônimo de constituição política dos países.
O segmento cultural aparenta gostar de criar cartas, sendo exemplo destas, as duas Cartas de Fortaleza (1997 e 2007), ambas para o patrimônio cultural imaterial, e a Carta Ibero-Americana de Direitos da Cultura (2006), costumeiramente elaboradas não por barões, mas por intelectuais que acreditam traduzir os anseios da cidadania no que concerne ao universo cultural.
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Um novo documento do gênero chegou recentemente à cena, a Carta de Ouro Preto para a Legislação Brasileira de Patrimônio Cultural, aprovada em 5 de abril de 2023, como último ato de um seminário nacional organizado pela universidade federal que leva o nome da cidade e pelo Ministério Público de Minas Gerais, reunindo, ademais, entre realizadores, colaboradores e apoiadores institucionais, mais de 150 entidades, órgãos, grupos e coletividades, que contribuíram com a elaboração do documento e com o evento que lhe deu luz, em todos os momentos do processo, desde o nome, passando por perguntas formuladas aos palestrantes, indo a sugestões sobre o preâmbulo, os considerandos, os critérios de interpretação e aplicação das normas sobre o tema, as diretrizes e a última cláusula, que não é necessariamente a final, dadas as breves explicações que cada uma dessas partes merece.
O preâmbulo indica genericamente quem participou dos debates, que foram os "representantes de entidades ligadas à proteção e salvaguarda do Patrimônio Cultural em suas mais diversas possibilidades; representantes de órgãos públicos com atribuições voltadas à eleição e gestão dos bens culturais; agentes da estrutura executiva, judiciária e legislativa brasileira; pesquisadores; especialistas; conselheiros; detentores de saberes tradicionais; e sociedade civil organizada: atuantes na pesquisa, difusão e valorização do patrimônio cultural".
Isso faz com que o documento fuja da ideia tradicional de Carta, pois junta remetentes e destinatários na reivindicação de direitos, sem que sejam precisas as fronteiras entre cada papel.
Os considerandos e as conclusões prévias enfatizam, para os pleitos, aspectos como o de direito humano, o fundamento constitucional, a manutenção de conquistas, a indissociabilidade das dimensões material e imaterial; diversidade, pluralismo, tratamento diferenciado aos vulneráveis, participação, autonomia, subsidiariedade, entre outros.
O mais firme indicativo deles resultante é o de que o regime patrimonial de 1988 deve ser aplicado em sua plenitude, sem prejuízo dos métodos protetivos até agora utilizados e que tenham sido recepcionados pela Constituição Cidadã.
As diretrizes foram agrupadas sob as designações de abrangência e principiológicas, para delimitar o universo e os valores de regência do patrimônio cultural; instrumentais, que versam sobre os instrumentos adequados a cada tipo de patrimônio; garantísticas, relacionadas às providências que devem ser adotadas para a efetiva concretização do direito do patrimônio cultural; orgânicas, que apontam os órgãos e respectivas configurações e competências considerados adequados a conduzir as políticas patrimoniais; e sancionatórias e compensatórias, com a previsão de punições e obrigações aos violadores da integridade dos bens culturais.
A cláusula final é uma janela aberta ao debate permanente sobre o tema, uma vez ser reconhecido "que as conclusões aqui havidas não se esgotam neste documento" sendo "preciso a sua permanente melhoria e ampliação", fecho que ao invés de mostrar titubeio, revela entendimento da dinâmica patrimonial, sempre viva e demandando a compreensão valorada dos modos de criar, fazer e viver, o que afeta positiva ou negativamente nossa relação com os bens culturais. Neste ponto, o documento não difere da Carta Magna, que mesmo resultante de um período que Zygmunt Bauman não chamaria de líquido, teve várias versões.
Por tudo isso, podemos concluir que essa é uma carta escrita em ouro, não apenas a forma reduzida de Ouro Preto, a primeira cidade-monumento do Brasil, também riquíssima em patrimônio imaterial, mas do bem mais valioso para a vida em sociedade: o debate plural, democrático e permanente.