Opinião

Sistema de precedentes obrigatórios, decisionismo judicial e honorários

Autor

  • Fernando Albuquerque

    é advogado atua em questões relacionadas às áreas do Direito Tributário e do Direito Administrativo-Econômico com ênfase em Contratações Públicas e Improbidade Administrativa e membro da Comissão de Estudos Tributários da OAB/CE.

24 de abril de 2023, 11h22

O Código de Processo Civil vigente estabeleceu por regra que a fixação dos honorários advocatícios sucumbenciais se fará por critério ad lavorem, considerando-se para tanto "o valor da condenação, do proveito econômico obtido ou, não sendo possível mensurá-lo, sobre o valor atualizado da causa" (artigo 85, §§2º e 3º), excetuadas as "causas em que for inestimável ou irrisório o proveito econômico ou, ainda, quando o valor da causa for muito baixo, o juiz fixará o valor dos honorários por apreciação equitativa" (artigo 85, §8º).

Dada a inadmissibilidade do Julgamento por Equidade fora dos "casos previstos em lei" (CPC, artigo 140, parágrafo único), tem-se de fácil conclusão que a incidência do §8º do artigo 85 do CPC deve se restringir às hipóteses de valor "inestimável" (aquilo que é de difícil ou impossível apuração) ou "irrisório" (aqui, na concepção de insignificância).

Neste caminho, inexistindo margem razoável para a aplicação de critério hermenêutico diverso do literal, aplica-se a esta estrita espécie o aforismo hermenêutico no sentido de que "quando a lei é clara, não é necessário interpretá-la", impondo-se apenas a subsunção do fato à norma.

Conforme bem destacado no julgamento do Recurso Especial nº 1877883–SP, submetido à sistemática de recursos repetitivos, "o legislador tencionou, no novo diploma processual, superar jurisprudência firmada pelo STJ no que tange à fixação de honorários por equidade quando a Fazenda Pública fosse vencida, o que se fazia com base no artigo 20, §4º, do CPC revogado".

Em tal ocasião, e de forma bastante acertada, a Corte Especial do STJ (Superior Tribunal de Justiça) fixou Tese Jurídica no sentido de que "A fixação dos honorários por apreciação equitativa não é permitida quando os valores da condenação ou da causa, ou o proveito econômico da demanda, forem elevados" (Tema Repetitivo nº 1.076), destacando-se que "Apenas se admite o arbitramento de honorários por equidade quando, havendo ou não condenação: (a) o proveito econômico obtido pelo vencedor for inestimável ou irrisório; ou (b) o valor da causa for muito baixo".

Como tais Teses Jurídicas foram firmadas em julgamento de recurso repetitivo, estas são de observância obrigatória para "juízes" e "tribunais" (CPC, artigo 927, inciso III), e não meras "orientações", as quais somente poderão deixar de ser aplicadas quando houver "distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento" (CPC, artigo 489, §1º, VI), sob pena de carência de fundamentação e consequente nulidade (CF/88, artigo 93, inciso IX; CPC, artigo 11).

A despeito disto, não raramente nos deparamos com decisões proferidas por juízes e tribunais fixando os honorários advocatícios sucumbenciais pelo critério da equidade em razão do grande vulto econômico da ação, o exemplo do acórdão proferido pela 20ª Câmara Cível do TJ-MG (Tribunal de Justiça de Minas Gerais), a qual, sem suscitar eventual distinguishing, overruling ou overriding, minorou os honorários sucumbenciais para R$ 2.000 — no caso concreto, aproximadamente sete vezes inferior ao mínimo legal, fazendo-o por considerar equivocadamente que "o juiz estaria autorizado a fixar o valor dos honorários por apreciação equitativa" diante da exorbitância do proveito econômico [1].

Tal julgamento causa perplexidade não apenas por deliberadamente "modificar o critério legal de fixação dos honorários sucumbenciais", como também por infringir o efeito vinculante de Tese Jurídica recentemente firmada pelo STJ em sede de recurso especial repetitivo.

Não bastasse, confere-se que a seletividade de argumentos deste jaez, desconhecendo-se a existência de questionamentos semelhantes quanto aos honorários sucumbenciais arbitrados em favor da Fazenda Pública, mesmo que estes se revelem "exorbitantes", os quais são fixados de plano no Despacho Inicial em estrita observância ao percentual legal [2], o que por si só demonstra a ausência de visão isonômico-paritária das partes quanto aos ônus do processo (CPC, artigo 7º).

Não podemos deixar de destacar ainda que o valor arbitrado no referido julgamento em ínfimos "R$ 2.000"  importância esta reputada por aquele Tribunal de Justiça como "assaz suficiente", isto "já considerada a majoração recursal" de 2% (R$ 40)  denota um desapreço pela advocacia, diminuindo a sua importância e a sua indispensabilidade à administração da Justiça (CF/88, artigo 133).

A eventual baixa complexidade da matéria discutida não diminui a importância da atividade advocatícia para a resolução de tal demanda, e tampouco consiste em critério válido para mensurar o zelo profissional e o tempo despendido pelos advogados, o qual não se resume à pesquisa-jurídica e à elaboração das peças processuais, mas também à participação de audiências, despachos com magistrados, sustentações orais e contatos constantes com os serventuários da Justiça, de sorte que tal eventual circunstância "não pode ser considerada como elemento para afastar os percentuais previstos na lei" (STJ, REsp Repetitivo nº 1.877.883–SP).

De igual relevância, destacamos que o Princípio da Sucumbência vai muito além da "remuneração do advogado", mas também em medida da Política Judiciária no controle de demandas temerárias e excesso de beligerância, de sorte que, os riscos da sucumbência devem ser ponderados pelas partes em qualquer demanda judicial.

Com efeito, ainda que a fixação da verba honorária dependa do exercício do Juízo de Razoabilidade, este deve ser realizado dentro dos percentuais "mínimos" e "máximos" estabelecidos nos §§2º e 3º do artigo 85 do CPC, inadmitindo-se a adoção de critério subjetivo extra e contra legem, e ainda em afronta à autoridade do STJ, sob pena de violação ao princípio da legalidade e à estrutura jurídico-hierárquica do Poder Judiciário.

Ademais, carece de melhor fundamentação a ilação divagada pela 20ª Câmara Cível do TJ-MG no sentido que a eficácia vinculante da Tese Jurídica fixada pela Corte Especial do STJ em sede de recurso repetitivo dependeria do atendimento de quórum qualificado de 2/3, uma vez que 1) este não é estabelecido no Código de Processo Civil e/ou no regimento interno daquele tribunal superior.

Da mesma forma, além de haver regramento legal específico aos recursos repetitivos, 2) descabe o emprego análogo da Lei nº 11.417/2006, posto que o quórum qualificado previsto nesta se faz necessário apenas em relação à edição, revisão e cancelamento de súmula vinculante (artigo 2º, §3º), a qual tem efeito cogente "em relação aos demais órgãos do Poder Judiciário e à administração pública" (CF/88, artigo 103-A, caput), situação diversa da tese fixada pelo STJ, que é restrita aos órgãos do Poder Judiciário sobre a sua hierarquia, revelando significativa diferença entre os instrumentos jurídicos cotejados.

Também, 3) não é possível traçar validamente qualquer paralelo com a Lei nº 9.868/1999, mormente que 3.a) o quórum estabelecido em seu artigo 27 alude apenas à modulação temporal dos efeitos da decisão proferida pelo STF (Supremo Tribunal Federal) em sede de ADI e ADC, sendo certo que 3.b) o efeito vinculante de tais decisões decorre do próprio julgamento destas ações (CF/88, artigo 102, §2º), o qual será proclamado por "maioria absoluta" (CF/88, artigo 97).

Não menos importante, destaca-se a inconsistência argumentativa no sentido de que, referindo-se à julgamentos anteriores do STJ, "o tema não se encontra satisfatoriamente amadurecido", quando, em verdade, a sistemática de precedentes obrigatórios tem o propósito e o efeito de pacificar a matéria jurídica, fazendo-o em superação de julgamentos anteriormente divergentes à tese jurídica fixada, atribuindo assim Segurança Jurídica acerca da aplicação do Direito [3]  a qual está mais associada à previsibilidade das decisões judiciais do que à manutenção do status atual [4], notadamente em decorrência da sua eficácia vinculante como meio para proporcionar estabilidade, integridade e uniformidade ao entendimento do STJ, o qual detém da missão constitucional de uniformizar a interpretação da lei federal em todo o Brasil (CF/88, artigo 105, inciso III, alíneas "a", "b" e "c").

Decisões como a rebatida são frutos do decisionismo judicial que busca moldar o Direito à interpretação discricionária do julgador, por vezes "ignorando até mesmo o conteúdo mínimo-estrutural do texto jurídico" [5], e que quase sempre são fundamentadas em princípios jurídicos de ampla aplicabilidade e que podem implicar em qualquer resultado possível, a exemplo do princípio da razoabilidade, cuja subsunção deste ao fato concreto depende exclusivamente conforme da subjetividade do intérprete, contribuindo negativamente para um ambiente de insegurança jurídica acerca da aplicação do ordenamento jurídico.

 


[1] Processo nº 1.0000.22.035971-5/001 (julgado em 04/05/2022). Acordão disponível em https://www.conjur.com.br/2022-mai-10/tj-mg-contraria-stj-fixa-honorarios-equidade-causa-alto-valor

[2] No caso das Execuções Fiscais promovidas pela União, por exemplo, inclui-se na CDA o "encargo" de 20% independente da complexidade da matéria ou da autuação, contrariamente aos percentuais estabelecidos no §3º do artigo 85.

[3] "A obrigatoriedade de observar as orientações já firmadas pelas cortes aumenta a previsibilidade do direito, torna mais determinadas as normas jurídicas e antecipa a solução que os tribunais darão a determinados conflitos". (BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campos. Trabalhando com uma nova lógica: A ascensão dos precedentes no direito brasileiro. Revista da AGU. Brasília, v. 15, nº 05, jul./set. 2016. p. 23).

[4] Sobre a temática, sugerimos a obra "Controle das decisões judiciais por meio de recursos de estrito direito e de ação rescisória: recurso especial, recurso extraordinário e ação rescisória o que é uma decisão contra a lei?" (WAMBIER, Teresa Arruda Alvim, Revista dos Tribunais, 2002).

[5] STRECK, Lenio Luiz. Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Uma exploração hermenêutica da construção do Direito. 7. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2007, p. 115.

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