Embargos Culturais

O romance histórico "A Última Hora", de José Almeida Júnior

Autor

  • Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

    é livre-docente pela USP doutor e mestre pela PUC- SP advogado consultor e parecerista em Brasília. Foi consultor-geral da União e procurador-geral adjunto da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional.

23 de abril de 2023, 8h00

José Almeida Júnior tem-se destacado nesse difícil selo da literatura, que é o romance histórico. Em "A Última Hora", livro que levou o Prêmio Sesc, o pano de fundo é o jornal de Samuel Wainer, no contexto do suicídio de Getulio Vargas (1954). Os dois temas, e homens, e trajetórias, são entrelaçados, na vida real, e no universo ficcional do autor. Não se sabe onde começa um, e onde termina o outro. Essa é a grande chave operacional do romance histórico: não se sabe o que é verdade, e o que não é.

Rigorosamente, o problema não é de teoria literária. É de historiografia. Remete-nos à metáfora do salto do tigre, como colocada por Walter Benjamin, em suas teses sobre a história. Para o filósofo da melancolia, o historiador, tal como um tigre que salta, de fato busca e seleciona do passado o que lhe interessa. A valer essa translação, a história também pode ser invenção, e então o romance histórico torna-se história. Nada de novo.

Spacca
Rubem Fonseca (que faleceu em 2020) também tem um romance com o mesmo pano de fundo: "Agosto". Um excelente livro. Penso, no entanto, sinceramente, que o livro de José Almeida Júnior conta com um enredo mais bem-acabado. A profusão de pormenores nos dá a sensação da leitura de jornais, de pesquisa direta em fontes primárias.

Em "A Última Hora" há também uma profunda discussão sobre a relação entre ética e jornalismo. O leitor é surpreendido com um roteiro paralelo de deontologia. Marcos, o personagem principal, vai rompendo todas as barreiras. Egresso da esquerda, torturado no Estado Novo, vai paulatinamente caindo para o lado de Carlos Lacerda. Este último, o demolidor de presidentes, viveu trajetória parecida, ainda que mais ostensiva.

Há uma discussão sobre o relativismo dos propósitos. O autor também se refere a Luís Carlos Prestes, que apoiou Getulio no fim do Estado Novo. Getulio foi justamente quem mandou Prestes para a prisão. Nesse momento do livro, José Almeida Junior nos desafia a esclarecermos se os princípios são negociáveis.

Em "A Última Hora" contempla-se um pouco da história da imprensa brasileira da primeira metade dos anos 1950. O personagem central, Marcos, trabalhou com Nelson Rodrigues, com quem viveu um triângulo amoroso. Nelson Rodrigues era reputado como um "tarado", e o apelativo era ouvido inclusive na apresentação de suas peças teatrais. O livro fecha com um inusitado momento desse triângulo.

Há informações sobre Nelson Rodrigues que talvez sejam encontradas tão somente na deliciosa biografia que Ruy Castro escreveu sobre o príncipe dos reacionários. Outros jornalistas importantes, como David Nasser, também transitam pelo enredo.

Há uma descrição de tortura, impressionante, de tirar o fôlego, que nunca li nem mesmo em relatos de torturados, como Flávio Tavares. Nessa cena tem-se também uma chave interpretativa central para compreensão do drama familiar, o que dá ao livro um tom bem sinistro de romance policial. Há um mistério, o leitor vai se surpreender. E quando descobrir o que houve na família, vai ficar furioso por não ter percebido antes.

Do ponto de vista mais substancialmente histórico, "A Última Hora" é um livro que coloca uma questão muitas vezes esquecida: por que Carlos Lacerda não teria entregue a arma que usava na noite do atentado da rua Toneleros? Até que ponto pode-se presumir que a bala assassina que derrubou o major Rubem Florentino Vaz não fora do revólver de Lacerda, ainda que por descuido ou acaso? O autor também faz referências ao famoso caso Elza, real, que teria sido executada pelos comunistas, e que também é tema de outro fascinante romance histórico, de autoria de Sérgio Rodrigues.

O autor é muito preciso nas descrições fáticas. Lourival Fontes, Ricardo Jafet, Danton Coelho, Danusa Leão, entre tantos outros, são personagens que aparecem na hora certa: são reais. O leitor vai encontrar na galeria de personagens (reais) de José Almeida Júnior o colunista Jacinto de Thormes. Não se trata do personagem de Eça de Queiróz; trata-se de Maneco Muller, que adotou o pseudônimo do célebre personagem de "A Cidade e as Serras" com o qual conduzia sua coluna social, talvez pioneira no Brasil. José Almeida Júnior até ressuscitou o colírio Moura Brasil. Parece que trabalhou como Oduvaldo Viana Filho, que para escrever a famosa peça "Rasga Coração" fez um intenso trabalho de pesquisa em hemerotecas.

Em "A Última Hora" há dois enredos que se entrelaçam. Um enredo imaginário, vivido por Marcos, Anita e Fernando, e um enredo real, no ambiente de uma política marcada pelo ódio e pela perseguição. Em "A Última Hora" Samuel Wainer não é herói, e também não é vilão. Sua autobiografia (Minha Razão de Viver) e sua recente biografia, excelente e muito bem documentada, escrita por Karla Monteiro, complementariam a visão romanceada de José Almeida Júnior. Os diálogos de Wainer com Vargas, que o chamava de "profeta", talvez nos indiquem que o político gaúcho era de fato maquiavélico, como afirmou um de seus biógrafos, Affonso Henriques, em livro dos anos 1960.

Marcos, Anita e Fernando reaparecerão no terceiro livro de José Manuel Almeida Júnior, "Bebida Amarga", que resenharei nesse espaço, completando a análise da trilogia desse jovem autor potiguar que vive em Brasília.

Autores

  • é advogado em Brasília (Hage e Navarro), professor livre-docente pela USP, doutor e mestre pela PUC-SP, professor titular mestrado-doutorado na Uniceub (Brasília) e professor visitante (Boston, Nova Déli, Berkeley, Frankfurt e Málaga).

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