Observatório Constitucional

A judicialização da saúde novamente em pauta no Supremo Tribunal Federal

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22 de abril de 2023, 10h17

O tema da judicialização da saúde é velho conhecido dos constitucionalistas e volta ao radar do STF (Supremo Tribunal Federal).

No último dia 17, o ministro Gilmar Mendes, relator do Tema 1.234 da sistemática da repercussão geral (RE 1.366.243), deferiu em parte a tutela provisória incidental requerida pelo Colégio Nacional de Procuradores Gerais dos Estados e do Distrito Federal, para estabelecer alguns parâmetros quanto à legitimidade passiva da União e a competência da Justiça Federal nas demandas que versam sobre fornecimento de medicamentos.

A medida cautelar foi referendada, por unanimidade, na sessão do Plenário Virtual de 18 de abril e restou assim ementada:

"EMENTA: TUTELA PROVISÓRIA INCIDENTAL. RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM REPERCUSSÃO GERAL. TEMA 1234. LEGITIMIDADE PASSIVA DA UNIÃO E COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL NAS DEMANDAS QUE VERSAM SOBRE FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS REGISTRADOS NA ANVISA, MAS NÃO PADRONIZADOS NO SUS. DECISÃO DO STJ NO IAC 14. DEFERIMENTO PARCIAL DA MEDIDA CAUTELAR PLEITEADA.
1. O julgamento do IAC 14 pelo Superior Tribunal de Justiça constitui fato novo relevante que impacta diretamente o desfecho do Tema 1234, tanto pela coincidência da matéria controvertida – que foi expressamente apontada na decisão de suspensão nacional dos processos – quanto pelas próprias conclusões da Corte Superior no que concerne à solidariedade dos entes federativos nas ações e serviços de saúde.
2. Reflexões conduzidas desde a STA 175, em 2009, inclusive da respectiva audiência pública, incentivaram os Poderes Legislativo e Executivo a buscar organizar e refinar a repartição de responsabilidades no âmbito do Sistema Único de Saúde. Reporto-me especificamente (i) às modificações introduzidas pelas Leis 12.401/2011 e 12.466/2010 na Lei 8.080/1990, (ii) ao Decreto 7.508/2011; e (iii) às sucessivas pactuações no âmbito da Comissão Intergestores Tripartite.
3. Há um esforço de construção dialógica e verdadeiramente federativa do conceito constitucional de solidariedade ao qual o Poder Judiciário não pode permanecer alheio, sob pena de incutir graves desprogramações orçamentárias e de desorganizar a complexa estrutura do SUS, sobretudo quando não estabelecida dinâmica adequada de ressarcimento. O conceito de solidariedade no âmbito da saúde deve contemplar e dialogar com o arcabouço institucional que o Legislador, no exercício de sua liberdade de conformação, deu ao Sistema Único de Saúde.
4. No julgamento do Tema 793 da sistemática a repercussão geral, a compreensão majoritária da Corte formou-se no sentido de observar, na composição do polo passivo de demandas judiciais relativas a medicamentos padronizados, a repartição de atribuições no SUS. A solidariedade constitucional pode ter se revestido de inúmeros significados ao longo do desenvolvimento da jurisprudência desta Corte, mas não se equiparou, sobretudo após a reforma do SUS e o julgamento do Tema 793, à livre escolha do cidadão do ente federativo contra o qual pretende litigar.
5. Tutela provisória concedida em parte para estabelecer que, até o julgamento definitivo do Tema 1234 da Repercussão Geral, sejam observados os seguintes parâmetros:
5.1. nas demandas judiciais envolvendo medicamentos ou tratamentos padronizados: a composição do polo passivo deve observar a repartição de responsabilidades estruturada no Sistema Único de Saúde, ainda que isso implique deslocamento de competência, cabendo ao magistrado verificar a correta formação da relação processual;
5.2. nas demandas judiciais relativas a medicamentos não incorporados: devem ser processadas e julgadas pelo Juízo, estadual ou federal, ao qual foram direcionadas pelo cidadão, sendo vedada, até o julgamento definitivo do Tema 1234 da Repercussão Geral, a declinação da competência ou determinação de inclusão da União no polo passivo;
5.3. diante da necessidade de evitar cenário de insegurança jurídica, esses parâmetros devem ser observados pelos processos sem sentença prolatada; diferentemente, os processos com sentença prolatada até a data desta decisão (17 de abril de 2023) devem permanecer no ramo da Justiça do magistrado sentenciante até o trânsito em julgado e respectiva execução (adotei essa regra de julgamento em: RE 960429 ED-segundos Tema 992, de minha relatoria, DJe de 5.2.2021);
5.4. ficam mantidas as demais determinações contidas na decisão de suspensão nacional de processos na fase de recursos especial e extraordinário."

O pedido de tutela provisória incidental foi posterior ao julgamento do IAC 14, pelo STJ (Superior Tribunal de Justiça), em 12 de abril de 2023, que firmou a seguinte tese:

"a) Nas hipóteses de ações relativas à saúde intentadas com o objetivo de compelir o Poder Público ao cumprimento de obrigação de fazer consistente na dispensação de medicamentos não inseridos na lista do SUS, mas registrado na Anvisa, deverá prevalecer a competência do juízo de acordo com os entes contra os quais a parte autora elegeu demandar.
b) as regras de repartição de competência administrativas do SUS não devem ser invocadas pelos magistrados para fins de alteração ou ampliação do polo passivo delineado pela parte no momento da propositura ação, mas tão somente para fins de redirecionar o cumprimento da sentença ou determinar o ressarcimento da entidade federada que suportou o ônus financeiro no lugar do ente público competente, não sendo o conflito de competência a via adequada para discutir a legitimidade ad causam, à luz da Lei nº 8.080/1990, ou a nulidade das decisões proferidas pelo Juízo estadual ou federal, questões que devem ser analisada no bojo da ação principal.
c) a competência da Justiça Federal, nos termos do artigo 109, I, da CF/88, é determinada por critério objetivo, em regra, em razão das pessoas que figuram no polo passivo da demanda (competência
ratione personae), competindo ao Juízo federal decidir sobre o interesse da União no processo (Súmula 150 do STJ), não cabendo ao Juízo estadual, ao receber os autos que lhe foram restituídos em vista da exclusão do ente federal do feito, suscitar conflito de competência (Súmula 254 do STJ)."

O ministro Gilmar Mendes, aliás, um dia antes do julgamento do IAC 14 pelo STJ, havia determinado a suspensão nacional do processamento dos recursos especiais e extraordinários que tratam da questão controvertida no Tema 1.234 da Repercussão Geral, inclusive dos processos em que se discute a aplicação do Tema 793 da Repercussão Geral, até o julgamento definitivo deste recurso extraordinário, ressalvado o deferimento ou ajuste de medidas cautelares.

Todos sabemos que a Constituição de 1988, ao desenhar o SUS, reconhece o direito à saúde como universal e igualitário às ações e serviços de promoção, proteção e recuperação.

Diante do complexo sistema engendrado e das dificuldades de implementação de tal sistema em um país continental, extremamente desigual, ainda na década de 1980 começou a prática de judicialização das demandas de saúde. No início dos anos 2000, o STF já possuía vasta jurisprudência indicando o dever do Estado de fornecer as mais variadas prestações de saúde pela via judicial:

MANDADO DE SEGURANÇA – ADEQUAÇÃO – INCISO LXIX, DO ARTIGO 5º, DA CONSTITUIÇÃO FEDERAL. Uma vez assentado no acórdão proferido o concurso da primeira condição da ação mandamental – direito líquido e certo – descabe concluir pela transgressão ao inciso LXIX do artigo 5º da Constituição Federal. SAÚDE – AQUISIÇÃO E FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS – DOENÇA RARA. Incumbe ao Estado (gênero) proporcionar meios visando a alcançar a saúde, especialmente quando envolvida criança e adolescente. O Sistema Único de Saúde torna a responsabilidade linear alcançando a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios. (RE 195192, Rel. MARCO AURÉLIO, Segunda Turma, julgado em 22/02/2000)

EMENTA: CONSTITUCIONAL. ADMINISTRATIVO. MEDICAMENTOS: FORNECIMENTO A PACIENTES CARENTES: OBRIGAÇÃO DO ESTADO. I. – Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita: obrigação do Estado em fornecê-los. Precedentes. II. – Agravo não provido. (AI 486816 AgR, Rel. CARLOS VELLOSO, Segunda Turma, julgado em 12/04/2005)

EMENTA: AGRAVO REGIMENTAL NO AGRAVO DE INSTRUMENTO. FORNECIMENTO DE MEDICAMENTOS A PACIENTE HIPOSSUFICIENTE. OBRIGAÇÃO DO ESTADO. Paciente carente de recursos indispensáveis à aquisição dos medicamentos de que necessita. Obrigação do Estado em fornecê-los. Precedentes. Agravo regimental a que se nega provimento. (AI 604949 AgR, Rel. EROS GRAU, Segunda Turma)

Logo, a judicialização da saúde alcançou patamares tão elevados que o tema se tornou o 6º. da Sistemática da Repercussão Geral:
"SAÚDE – ASSISTÊNCIA – MEDICAMENTO DE ALTO CUSTO – FORNECIMENTO. Possui repercussão geral controvérsia sobre a obrigatoriedade de o Poder Público fornecer medicamento de alto custo." (RE 566471 RG, Relator(a): MARCO AURÉLIO, Tribunal Pleno, julgado em 15/11/2007)

O ministro Gilmar Mendes, ao assumir a Presidência do STF e do CNJ, diante dos muitos pedidos de suspensão de tutelas liminares que chegavam à presidência do Supremo discutindo tais demandas, resolveu realizar a audiência pública, no âmbito da Suspensão de Tutela 175, e enfrentar o tema. No primeiro semestre de 2019, durante seis dias, 50 especialistas em saúde foram ouvidos na Audiência Pública n 4. O resultado desse debate foi traduzido no Acórdão da STA 175-AgR, assim ementado:

"Suspensão de Segurança. Agravo Regimental. Saúde pública. Direitos fundamentais sociais. Art. 196 da Constituição. Audiência Pública. Sistema Único de Saúde – SUS. Políticas Públicas. Judicialização do direito à saúde. Separação de poderes. Parâmetros para solução judicial dos casos concretos que envolvem direito à saúde. Responsabilidade solidária dos entes da Federação em matéria de saúde. Fornecimento de medicamento: Zavesca (miglustat). Fármaco registrado na Anvisa. Não comprovação de grave lesão à ordem, à economia, à saúde e à segurança públicas. Possibilidade de ocorrência de dano inverso. Agravo regimental a que se nega provimento." (STA 175-AgR, Rel. Ministro Gilmar Mendes, Tribunal Pleno, julgado em 17 de março de 2010)

No âmbito do CNJ, o ministro Gilmar Mendes, então presidente, criou Grupo de Trabalho para elaborar estudos e propor medidas concretas e normativas referentes às demandas judiciais envolvendo assistência à saúde (Portaria n. 650, de 20/11/2009, do CNJ). Como resultado, o Plenário do CNJ aprovou a Resolução n. 107, que institui o Fórum Nacional do Judiciário para Monitoramento e Resolução das Demandas de Assistência à Saúde, atual Fonajus.

O ministro ainda aprovou a Recomendação nº 31, de 30 de março de 2010, recomendando que os Tribunais de Justiça dos estados e os Tribunais Regionais Federais: a) celebrassem convênios com o objetivo de disponibilizar apoio técnico composto por médicos e farmacêuticos para auxiliar os magistrados na avaliação das demandas de saúde; b) orientassem os magistrados a instruir as ações com a maior quantidade de informações médicas possíveis e ouvir os gestores antes do deferimento dos pedidos cautelares, sempre que possível; c) incluíssem a legislação do SUS nos respectivos concursos para ingresso na magistratura; d) visitassem as unidades do SUS da sua região, entre outras.

O trabalho feito no STF e no CNJ, no âmbito da judicialização da saúde, rendeu frutos. A legislação do SUS, Lei 8.080, foi atualizada. A Lei 12.466, de 2011, incluiu o artigo 14-A, reconhecendo as Comissões Intergestores Bipartite e Tripartite como "foros de negociação e pactuação entre gestores", e o artigo 14-B, atribuindo ao Conass e ao Conasems o papel de entidades representativas dos entes estaduais e municipais. Também alterou a assistência terapêutica e a incorporação de tecnologia em saúde com a inclusão dos artigos 19-M a 19-U.

Diante desse novo panorama, o Supremo voltou a julgar o tema da judicialização da saúde em 2015, ao analisar em conjunto os temas 6, 500 e 793 da sistemática da repercussão geral. Em razão de pedidos de vista, os julgamentos de mérito só foram concluídos em 2019, restando pendente a fixação da tese do Tema 6, agendada para a sessão do dia 18 de maio deste ano.

No tema 6, discutiu-se o "dever do Estado de fornecer medicamento de alto custo a portador de doença grave que não possui condições financeiras para comprá-lo". No tema 500, analisou-se o "dever do Estado de fornecer medicamento não registrado pela Anvisa". No tema 793, buscou-se definir a "responsabilidade solidária dos entes federados pelo dever de prestar assistência à saúde".

Embora os votos proferidos sejam profundos e abordem aspectos variados envolvendo a complexa controvérsia do direito à saúde, restou evidente o empenho de todos os ministros em privilegiar as políticas públicas de saúde existentes e observar as divisões de competências estabelecidas dentro da hierarquia do SUS, sempre buscando o melhor atendimento do cidadão.

Ao que parece, seguir os novos direcionamentos do STF tem gerado algumas dúvidas e resistências. O STJ, ao concluir o julgamento do IAC 14, inclinou-se na direção do passado, a mais segura e simples, apontando para a volta da jurisprudência do início dos anos 2000: diante da estrutura única do SUS, permite-se que o cidadão escolha contra quem promover a ação judicial: União, Estado ou município, impedindo o juiz de direcionar a ação para a justiça federal se identificar responsabilidade da União pela demanda.

Diante do aparente retrocesso na matéria, buscando fazer valer as teses fixadas no Tema 793 da sistemática da repercussão geral, o ministro Gilmar Mendes agiu rápido e deferiu a cautelar no âmbito do Tema 1.234.

Resta, agora, o Supremo definir a tese fixada no Tema 6 e julgar o mérito do Tema 1234, definindo se o cidadão tem o direito de pleitear em juízo prestações de saúde não incorporadas ao SUS e qual ente deve responder por tais ações.

Certo é que o referendo unânime da cautelar deferida no Tema 1.234, ao determinar que “as demandas judiciais envolvendo medicamentos ou tratamentos padronizados” deverão ter no polo passivo os entes responsáveis pelo fornecimento da demanda segundo normas do SUS, demonstra que o STF não está disposto a retroceder em sua jurisprudência.

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